O presidente que espalha medo de vacina

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10 dez 2020
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Seguindo o exemplo da criança que aponta a nudez do imperador no conto de Hans Christian Andersen, faço aqui minha revelação do que está na cara de todos: o atual presidente da República é "antivaxx". No país que até pouco tempo atrás era modelo mundial de vacinação, não há vacina, não há seringas, não há agulhas e sequer há um plano nacional de vacinação digno do nome. Nunca, em dois anos de mandato, Jair Messias Bolsonaro pronunciou uma palavra sequer em favor de vacinas, quaisquer que fossem. Seja por convicção, seja para agradar seus seguidores, o presidente é "antivaxx", negacionista da ciência e da realidade.

Nas redes sociais bolsonaristas, nenhuma vacina contra a COVID-19 presta. Preferem vacinas “clássicas” como é o caso da Coronavac, desenvolvida na China, mas essa não presta porque é chinesa, porque é promovida pelo governador de São Paulo, João Doria, ou, no caso dos mais delirantes, vem com chip para que os “comunistas” de Pequim dominem o mundo, exterminem negros e latinos ou espalhem uma pandemia ainda mais letal pelo planeta.

As vacinas de RNA mensageiro, como as da Pfizer e da Moderna, também não prestam porque causam mutações no DNA, vão causar uma pandemia de câncer dentro de uma década ou, nas memoráveis e risíveis palavras do ex-deputado e bolsonarista Roberto Jefferson, “os globalistas prepararam uma vacina para mudar nosso DNA, que nos foi dado por Deus. Esse Bill Gates é um assassino, genocida, satanista. Ele quer matar milhões de pessoas e trocar o nosso DNA pela marca da Besta. Ele é um demônio!”

Jefferson

 

As vacinas que têm adenovírus como vetor também "não prestam" porque misturam um vírus com uma proteína do coronavírus. Isso deve causar doença, câncer, caspa, unha encravada e, claro, viola a palavra de Deus – não sei que versão da Bíblia esse povo lê, porque nas minhas edições (Edições Paulinas e St. James Bible) não há nenhuma passagem dizendo que Deus criou o nosso DNA à imagem e semelhança do d'Ele. Fora isso, há os bolsonaristas que fazem campanha contra vacinas que previnem a COVID-19 “porque temos a cloroquina” e a turma que combate qualquer vacina porque “todas são feitas com fetos abortados”. Curiosamente, por aqui o bobajal de que vacinas causam autismo, estopim do movimento antivaxx mundo afora, não colou. Os "antivaxxers" tupiniquins têm “teorias” próprias.

 

Vacinas do mundo real

Por mais que me esforce, não consigo entender gente antivacinas. Talvez porque eu seja louca por vacinas. A minha geração foi uma das últimas a tomar a vacina contra a varíola, a única doença erradicada por ação humana. Tive uma crise de choro aos 5 anos quando a vacinadora do posto de saúde da Avenida Ceci, no Jabaquara, perto de minha casa, me disse que eu não precisava mais tomar a vacina da pólio. Chorei porque achei que ia pegar pólio. Tem vacinação, estou lá na fila. Quando me contrataram no Instituto de Psiquiatria (IPq) do Hospital das Clínicas de São Paulo, foram seis vacinas no mesmo dia, três num braço, três no outro. Tomo a vacina contra gripe todos os anos desde 1996, quando fiquei diabética. Comecei quando ela só estava disponível em clínicas particulares. Preciso tomar uma nova dose da vacina contra a pneumonia, que mudou bastante desde que a tomei pela última vez.

Adoro vacinas porque detesto doenças. Não, não consigo entender antivaxx, festa de sarampo, caxumba ou o que for para criar “imunidade natural” em crianças. Que mães e pais são esses que preferem ver filhos doentes, sofrendo durante dias e com risco de vida, a dar uma picadinha rápida no braço e protegê-los? Eu gosto tanto de vacina que me inscrevi em teste clínico de vacina contra a COVID-19 e estou esperando ansiosamente ser chamada.

Bolsonaro não gosta de vacina, desconfia do aquecimento global e talvez até tenha dúvidas sobre a redondeza da Terra. E é negacionista porque a ciência teima em bater de frente com suas crenças e com as de seus seguidores mais fanáticos. É para eles e para os filhos que o presidente governa. As alíquotas de importação de produtos para a pesquisa científica são de 60%, como se fossem artigos de luxo, mas para agradar o filho 04, Jair Renan, Bolsonaro reduziu duas vezes as alíquotas de importação de videogames. Nesta quarta-feira (10), eliminou as alíquotas para importação de armas de fogo, para alegria de seus eleitores. No mesmo dia, também para satisfazer a sanha dos seguidores presidenciais, o Ministério da Saúde retirou a população carcerária da lista de prioridades na vacinação.

Nos presídios brasileiros, já descritos como medievais, os presos vivem amontoados. A incidência de tuberculose é alta, e nessas condições será fácil transmitir COVID-19 para guardas, advogados e familiares. O Ministério da Saúde alega que não “existem estudos científicos” que justifiquem a inclusão dessa população como prioridade, mas sabe-se que a ordem partiu do Palácio do Planalto.

Enquanto isso, cresce o número de vítimas. São quase 800 mortos por dia. As UTIs dos grandes centros estão lotadas, às vésperas de contabilizarmos 180 mil mortes por COVID-19. Todos esses cadáveres estarão no palanque dos adversários políticos de Bolsonaro daqui a dois anos.

 

Exemplo do Norte

Nos Estados Unidos, que o presidente tanto admira, seu grande amor, Donald Trump, perdeu as eleições para Joe Biden, em grande parte por sua inação em relação à COVID-19. Trump iniciou a maratona das festas de Natal na Casa Branca. Cada uma com cerca de mil convidados aglomerados, nenhum com máscara. Trump e Bolsonaro minimizaram o perigo, criticaram uso de máscaras, disseram que lockdowns e isolamento social comprometeriam a economia e que as pessoas morreriam de fome. Bem, hoje 50 milhões de norte-americanos se alinham nas filas dos Food Banks para receber comida. A Bolsa de Valores americana vai bem, obrigada, mas a população vai mal. Para piorar, lá como cá os auxílios emergenciais terminam em dezembro. Estima-se que, de agora a 1º de janeiro, os EUA somem 60 mil mortos aos seus quase 300 mil. Aqui, ninguém se arrisca a fazer essa conta. Mas lá, pelo menos, Trump botou dinheiro a rodo no desenvolvimento de vacinas e sua porta-voz na Casa Branca teima em se referir à vacina da Pfizer como “Trump vaccine”.

Depois de demitir dois ministros da Saúde que eram médicos, Bolsonaro entronizou na pasta um general da ativa supostamente especializado em logística. A despeito disso, Eduardo Pazuello manteve 7 milhões de kits para testes RT-PCR, usados para detectar o vírus SARS-CoV-2 em pessoas infectadas, esquecidos em Guarulhos (SP) até perderem a validade, que o Ministério da Saúde resolveu ampliar por decreto. 

Meses atrás, a Pfizer, responsável pela vacina de RNA mensageiro que Trump quer chamar de sua, ofereceu seu imunizante ao Ministério da Saúde. Pazuello saiu dizendo que a vacina não interessava ao governo porque era difícil de armazenar, a quantidade era pífia, ela não se adaptava ao território brasileiro e o governo preferia uma vacina de dose única. Abrindo um parêntese. Se essa é a questão, vale lembrar que uma das vacinas em teste pela Janssen é de dose única. Mesmo assim, por algum mistério, o pessoal do Ministério da Saúde nunca menciona a Janssen. Sabe-se lá o porquê. Fecha parênteses.

Eis que governador paulista João Doria anuncia que pretende iniciar a vacinação com a Coronavac - que os bolsonaristas chamam de “vaChina” - no dia 25 de janeiro. O pandemônio se instala em Brasília. Governadores são convocados para uma reunião em que nada se decide. E Pazuello enriquece seu perolário de frases absurdas afirmando que “se houver demanda” o governo comprará vacinas. Ministro, general, cidadão, presta atenção. A demanda existe, há quase 8 bilhões de viventes! Todos os países estão atrás de vacinas na feira internacional e você chegou depois da xepa!

O general ministro só se mexeu porque Bolsonaro ficou furioso diante da possibilidade de seu arqui-inimigo eleitoral começar a vacinar antes dele. Pazuello então vai atrás da Pfizer com o pires na mão, implorando “algumas” vacinas e sai dizendo que pode começar a vacinar ainda este ano. A Pfizer desmente o general ali na lata. Na quinta à noite, governo e Pfizer firmam uma carta de intenções para que o país receba 8 milhões de doses no primeiro semestre do ano que vem e mais 62 milhões no segundo. E só.

 

Guerra civil

Seguiu-se na disputa Bolsonaro x Doria uma memorável confusão de prazos. Primeiro, Pazuello saiu dizendo que a Anvisa, devidamente aparelhada com militares leais ao presidente, levaria pelo menos 60 dias para liberar o uso da vacina produzida pelo Instituto Butantan. Isso inviabilizaria o projeto de Doria. A Anvisa rapidamente encontrou “inconformidades” no laboratório chinês onde a vacina foi desenvolvida e está sendo produzida, e quer explicações. Eis que aparece a possibilidade de obter as vacinas da Pfizer e o general ministro sai dizendo que pode iniciar vacinação em janeiro ou até mesmo em dezembro. Ué, e os tais 60 dias que a Anvisa precisaria para avaliar estudos para liberação de vacinas? De repente dá para avaliar a vacina da Pfizer em 10 dias?

Com o mundo inteiro correndo atrás de vacina, o governo federal apostou todas as suas fichas na vacina AstraZeneca/Oxford, que largou na frente no início do páreo. Pesquisavam vacina contra coronavírus há quase dez anos, vinha com a grife Oxford, seria barata e poderia ser produzida aqui pela Fiocruz. Ninguém contava, claro, com o furdunço que ia ser o teste da vacina de Oxford: a pesquisa, publicada esta semana na Lancet, tem mais braços que um polvo.

Nos testes foram usados quatro protocolos diferentes, com diferentes placebos e prazos diversos entre a aplicação da primeira e da segunda dose: o laboratório juntou tudo isso como se fosse uma coisa só, num procedimento cuja confiabilidade ainda é alvo de debate entre especialistas. Foram testadas poucas pessoas com mais de 55 anos. Não bastasse, por engano alguns voluntários receberam apenas meia dose em vez da dose completa. Na média, a eficiência ficou em 70% (contra 94% da vacina da Pfizer), mas na aplicação das duas doses completas alcançou 63,7%. Ao que parece a meia dose seguida da dose completa é mais eficiente que duas doses completas, e esse virou mais um braço da pesquisa.

Resultado: a antes promissora vacina de Oxford está agora em último lugar na lista de análises da FDA americana. Nem mesmo a agência britânica de medicamentos parece animada. Por conta dos problemas, a tal vacina talvez seja liberada só em março, a data que Pazuello anunciou para o início da vacinação. 

 

Com ou sem pressa?

No final de outubro, Bolsonaro, ao falar sobre a possível judicialização da obrigatoriedade da vacina, disse não entender por que tanta pressa, e que só iria comprar vacinas depois de comprovada sua segurança e eficácia. A pressa, presidente, é porque tem um monte de gente morrendo, gente frágil, idosa, com comorbidades, gente que não é maricas nem covarde. Apenas gente. 

Poucos dias depois, o presidente saiu dizendo que não pode ser responsabilizado por eventuais danos de uma vacina contra a COVID, contrariando (ou ignorando) o contrato firmado entre Oxford e Fiocruz. Bolsonaro, claro, não se responsabiliza por nada, nem pelas mortes da COVID, nem por eventuais problemas com vacina, mas obviamente vai posar de salvador da Pátria se tudo correr bem.

O problema é a menção e o destaque dado a “danos”. Bombardeada por informações conflitantes, para a população a mensagem que fica é a de que vacinas são perigosas. Dias atrás, ao falar com apoiadores, um deles, médico, comentou a alta dos casos e Bolsonaro saiu-se com esta: “A princípio, o indicativo é quem tem maior poder aquisitivo, não é isso? O povão mesmo parece que já está... parece que já está mais imunizado, proporcionalmente. Parece... Mas eu não quero tecer suposições aqui. Deixo com o ministro da Saúde tratar desse assunto aí”.

Seguindo a estratégia derrotada de Trump, Bolsonaro aposta em minimizar a gravidade da doença, dar como inevitável a disseminação do vírus e tratar as mortes como resultado de uma lei natural que separa os fracos dos fortes. O tema vacinação irrita o presidente. Nesta quarta, Bolsonaro recebeu os prefeitos eleitos na Baixada Fluminense para o café da manhã. Washington Reis, prefeito reeleito de Duque de Caxias, levou a reboque seu irmão Rosenverg, deputado estadual, que lá pelas tantas perguntou ao presidente como estava o cronograma da vacinação. Bolsonaro fechou a cara, não respondeu e rapidinho deixou o evento alegando ter outro compromisso. Essa história de vacina contra a COVID-19 irrita Bolsonaro.

Nesta semana o Reino Unido começou a vacinar seus profissionais de saúde e idosos com pompa e circunstância. Os Estados Unidos vão fazer o mesmo em poucos dias. A China, que tem 12 vacinas em desenvolvimento e cinco delas na fase final de testes, já vacinou pelo menos 7 milhões de pessoas. A Suécia, que chegou a ser elogiadíssima pelo governo Bolsonaro por sua abordagem mais "relaxada" da pandemia, pediu arrego: agora tem UTIs lotadas, faltam médicos e o número de doentes não para de crescer.

O Japão tem registrado recordes diários de novos casos. Nos Estados Unidos há recorde atrás de recorde. Por dia são 200 mil novos casos, 107 mil internações e mais de 3 mil mortos. Por aqui, muita festa, comércio popular lotado de gente sem máscara e os novos casos e número de mortos sobem diariamente. Mas Bolsonaro faz um discurso afirmando que “a pandemia tá no finalzinho”. Não consigo imaginar em que planeta ou bolha ele vive, mas nesta Terra redonda e azul é que não é. No finalzinho está é a nossa paciência. Angela Merkel, primeira-ministra alemã, fez um apelo emocionado esta semana para que as pessoas evitem aglomerações, segurem as saudades, mas não se aglomerem no Natal porque pode ser o último Natal de vovôs e vovós. “Temos 590 mortes diárias por COVID e isso é inaceitável”, disse. Eu vi e revi o vídeo, que viralizou nas redes sociais, e todas as vezes senti uma inveja danada dos alemães.

Ruth Helena Bellinghini é jornalista, especializada em ciências e saúde e editora-assistente da Revista Questão de Ciência. Foi bolsista do Marine Biological Lab (Mass., EUA) na área de Embriologia e Knight Fellow (2002-2003) do Massachusetts Institute of Technology (MIT), onde seguiu programas nas áreas de Genética, Bioquímica e Câncer, entre outros

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