Nos últimos dias da campanha eleitoral, o presidente Donald Trump queixou-se repetidas vezes sobre como os Estados Unidos fazem a contagem dos mortos da COVID-19, afirmando que “este país e seu sistema de notificação não estão fazendo isso da forma correta”. Trump culpou o sistema de registro pelo número de mortes e acusou os médicos de receberem US$ 200 a mais por paciente diagnosticado com COVID-19. Tudo isso alimentou as dúvidas políticas que cercam a pandemia, e pôs em xeque a forma como as mortes são registradas e contabilizadas. Pedimos a especialistas que explicassem como isso é feito, e analisassem se os dados que falam em mais 252 mil mortos nos Estados Unidos, desde o início da pandemia, são confiáveis.
As recentes declarações de Trump alimentaram as teorias conspiratórias nas redes sociais, de que médicos e hospitais falsificam números para ganhar mais dinheiro. Elas também enfureceram a comunidade médica. “A sugestão de que, no meio de uma crise de saúde pública, médicos estão inflando o número de pacientes com COVID-19 ou mentindo para encher os bolsos de dinheiro é maldosa, ultrajante e mal-intencionada", diz a Dra. Susan R. Bailey, presidente da American Medical Association (AMA).
Hospitais são pagos por atender pacientes da COVID-19 e de outras doenças da mesma forma embora, geralmente, quanto maior a gravidade da doença, maior o pagamento. Assim, para um hospital, atender um paciente de COVID-19 – ou de qualquer outra doença – que precise de intubação representa um pagamento maior do que de outro que não precise.
Já uma diferença financeira no caso do Medicare, o programa de saúde que atende idosos e inválidos, paga 20% acima de seu reembolso máximo pelos pacientes de COVID-19, como resultado do CARES Act, um estímulo do governo federal aprovado no primeiro trimestre deste ano. Esse adicional vale apenas para os pacientes do Medicare.
Especialistas garantem que simplesmente não há nenhuma evidência de que médicos ou hospitais estejam diagnosticando pacientes com COVID-19 apenas para obter esse pagamento adicional. Rick Pollack, presidente da American Hospital Association, escreveu uma coluna de opinião em setembro sobre o que chamou de “mitos” acerca desse adicional. Segundo ele, embora muitos hospitais estejam passando por problemas financeiros, não estão inflando o número de casos, até porque existem normas que desencorajam esse tipo de comportamento. “As normas do Medicare para a COVID-19 exigem a confirmação dos casos e punem criminalmente os hospitais ou descredenciam o hospital do Medicare”, escreveu.
Funcionários do sistema de saúde também descartam essa possibilidade. Jeff Engel, consultor para COVID-19 do Council of State and Territorial Epidemiologists, explica: “A saúde pública é obrigada a coletar dados precisos e completos. Não temos nenhum incentivo para aumentar ou diminuir a contagem de doentes por qualquer motivo político ou financeiro”.
E os peritos médicos? Fariam parte de um esforço coordenado para aumentar o número de mortos e ter algum ganho financeiro? “Peritos e legistas nos Estados Unidos não são suficientemente organizados para tramar uma conspiração. São 2.300 jurisdições diferentes”, diz Sally Aiken, presidente da National Association of Medical Examiners. “Isso não está acontecendo de jeito nenhum”.
Ainda assim, continua o debate sobre quais mortes devem ser atribuídas à COVID-19. Tanto os Centros de Controle e Prevenção de Doenças (CDC) quanto organizações não-governamentais como o Covid Tracking Project, além da Johns Hopkins University compilam diariamente os dados sobre as mortes pela COVID-19. As suas estatísticas se baseiam em dados oficiais, que partem de números locais.
Os estados têm uma certa margem de manobra para decidir como coletar e reportar dados. Muitos optam pelos certificados de óbito, que registram causa da morte e comorbidades. Essa fonte é considerada bastante precisa, mas os certificados podem levar até duas semanas para ser finalizados, por causa dos processos de preenchimento, revisão e registro desses documentos. Esses registros geralmente demoram mais para ficar prontos que os dados sobre testes e hospitalização.
A outra forma de registrar as mortes é através do que é conhecido como método de classificação de casos, que reporta as mortes de casos previamente identificados de COVID-19, listados como confirmados ou prováveis. Mortes por COVID-19 confirmadas são aquelas que deram positivo por meio de testagem, enquanto as classificadas como prováveis partem de registros médicos, suspeita de exposição ao vírus, e testes sorológicos para anticorpos para a COVID-19. O método de classificação de casos é mais rápido do que o de certidões de óbito e fornece números mais próximos do tempo real. Epidemiologistas dizem que essa informação pode ser muito útil em meio a um surto, para entender quantas pessoas estão morrendo e onde.
Alguns especialistas ressaltam que, embora ambos os métodos tenham suas vantagens, cada um mostra números diferentes em períodos de tempo diferentes e, por isso, o ideal é reunir dados das duas metodologias.
Mas o governo federal tem dado orientações conflitantes. O Centro Nacional de Estatísticas de Saúde, um braço do CDC, recomenda o uso preferencial das certidões de óbito para a contagem. Mas, em abril, o CDC pediu que as várias jurisdições passassem a acompanhar a mortalidade com base no método de classificação de casos confirmados e prováveis. Por isso, atualmente, os estados usam um método apenas, e só um punhado emprega os dois. Essa abordagem produz dados conflitantes do total de mortos.
Mas a maioria dos pesquisadores de saúde pública e peritos médicos concorda que o número de mortos da COVID-19 está sendo subestimado. “É muito difícil ter um número preciso numa situação como essa, que se modifica rapidamente numa escala tão grande”, afirma Sabrina McCormick, professora associada de saúde ambiental e ocupacional da George Washington University.
Para começo de conversa, os processos para certificação de óbitos variam enormemente. Médicos emitem a maioria dos atestados de óbito, mas legistas [coroners, autoridades municipais dos EUA responsáveis por certificar ou investigar mortes e que não precisam ser necessariamente médicos], peritos e até agentes policiais podem fazê-lo. Aiken, perita médica do Condado de Spokane, Washington, conta que quando alguém morre em casa com sintomas de COVID-19 em sua área, a pessoa é automaticamente testada para a doença. Mas, de acordo com ela, isso não ocorre em outras regiões, o que significa que algumas pessoas que morrem em casa não aparecem nos números de mortos pela doença.
Também não se sabe ao certo qual a precisão dos testes post-mortem para a COVID-19, porque nunca se fez uma pesquisa a respeito, o que também poderia aumentar o número de casos. Outro problema, segundo Aiken, é que médicos que atuam em hospitais nem sempre são treinados para emitir certidões de óbito. “Atestados de óbito não são prioridade para quem está na linha de frente, sobrecarregado nas emergências e UTIs”, explica.
Médicos que lidam com emergências reconhecem o desafio, lembrando que nem sempre têm os recursos de peritos e legistas para realizar autópsias. “Na maior parte das vezes, não temos uma resposta definitiva para a causa da morte de alguém, então acabamos recorrendo à parada cardíaca ou respiratória, o que os legistas odeiam”, diz Ryan Stanton, médico de pronto-socorro em Lexington, Kentucky, e membro da diretoria do American College of Emergency Physicians.
Isso mostra como é complexo determinar exatamente o quê causou uma morte – o que alguns dizem ser uma confusão entre morrer “com” COVID-19 – mas com comorbidades que teriam causado a morte – e aqueles que morreram “de” COVID-19. John Fudenberg, que foi legista do Condado Clark, Nevada, ao redor de Las Vegas, afirma que, por isso, algumas mortos com COVID-19 podem inflar as estatísticas. “Como regra geral, se alguém morre com COVID-19 é isso que vai constar na certidão de óbito, mas não significa que morreram de COVID-19”, diz Fudenberg, atualmente diretor executivo da International Association of Coroners and Medical Examiners. “Por exemplo, se alguém tem câncer de pâncreas em estágio terminal e COVID-19, ela morre com COVID-19 ou de COVID-19?”
Essa questão se mostrou controversa, e Trump afirmou várias vezes que a contagem desses que morreram “com” COVID-19 inflou os números dos Estados Unidos. Mas a maioria dos especialistas em saúde pública afirma que se a COVID-19 fez alguém morrer antes do esperado, então ela certamente contribuiu para essa morte. Além disso, aqueles que validam atestados de óbito afirmam incluir no laudo fatores que certamente contribuíram para aquele óbito.
“Médicos não escrevem em atestados de óbito coisas que não têm nada a ver com a morte”, afirma Amesh Adalja, médico e acadêmico sênior do Johns Hopkins Center for Health Security. “A COVID-19 pode causar diretamente a morte de alguém com câncer ou problemas cardíacos, mesmo com essas condições sendo graves e potencialmente fatais”, afirma.
E a história de que alguns estados contam pessoas que morrem em acidentes de trânsito, mas testam positivo para a COVID-19, como mortos de COVID-19, não tem base na realidade, dizem os especialistas.
“Não consigo imaginar uma situação em que um legista teste para COVID-19 alguém que morreu num acidente de carro ou que foi vítima de assassinato”, diz Engel, do conselho de epidemiologistas. "Essas histórias foram muito veiculadas em redes sociais”.
Há uma outra abordagem que permite avaliar as dimensões da pandemia e que vem sendo usada cada vez mais como indicador útil pelos especialistas. Ela se baseia no conceito de “mortes excessivas”, ou seja, na comparação entre o número total de mortes por todas as causas num determinado período com o total de anos anteriores no mesmo intervalo de tempo. Um estudo do CDC estima que este ano, entre o final de janeiro e 3 de outubro, morreram cerca de 300 mil pessoas a mais do que nos anos anteriores. Boa parte dessas mortes foram causas pela COVID-19, enquanto outras podem ter sido de pessoas que evitaram recorrer a hospitais por causa da pandemia e morreram por outras causas.
“Essas mortes excessivas são a melhor evidência de que os números da COVID-19 continuam a ser subestimados”, diz Jeremy Faust, médico da emergência do Brigham and Women’s Hospital, em Boston. “O timing dessas mortes excessivas é exatamente o mesmo das mortes por COVID-19, de modo que quando temos picos de mortes por COVID-19, todas as causas de morte também registram picos. Num gráfico, esses números parecem ferrovias paralelas”. Faust acredita que a maioria das mortes excessivas devem ser atribuídas à COVID-19 de alguma forma.
Ainda assim, é possível que nunca venhamos a saber o número exato de vítimas fatais da pandemia.
Aiken diz que é possível, mas que isso vai levar anos. “Quando isso acabar, vamos ter um número bem preciso”. McCormick, da George Washington University, não tem tanta certeza, porque esse número é um ponto crítico. “Sempre vai haver controvérsia, especialmente porque essa é uma questão que foi politizada”, afirma a especialista. “Não creio que vamos chegar a um número definitivo”.
Victoria Knight e Julie Appleby escrevem para a Kaiser Health News.