Sem-teto morrem mais de COVID-19 do que moradores da maioria dos distritos de SP

Artigo
15 out 2020
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Avenida Paulista, SP, SP

 

“A ciência tem que explicar por que os moradores de rua são mais resistentes à COVID-19”. Essa foi a frase do candidato à prefeitura de São Paulo deputado federal Celso Russomanno (Republicanos). Convém, antes de mais nada, explicar ao candidato como a ciência funciona.

Em primeiro lugar, a ciência não se presta a confirmar ou comprovar crenças pessoais. Também não cabe à ciência explicar o que levou o candidato a fazer tal afirmação. Cabe, porém, testar se a afirmação procede.

Ao que tudo indica, o candidato tem duas hipóteses: a primeira, de que moradores de rua são mais resistentes à COVID-19 do que o restante da população. A segunda, se confirmada a primeira, de que isso se deve ao relaxamento da higiene – mais especificamente, ausência de banho.

Como fazer então para testar esse par de hipóteses, de acordo com a ciência, como o candidato demonstrou ser sua vontade, já que não se considera negacionista? Vamos começar com a primeira. Para saber se moradores de rua são mais resistentes, mais suscetíveis ou igualmente suscetíveis ao coronavirus do que o paulistano médio, podemos começar comparando o número de casos e óbitos, nessa população, com os encontrados na população geral da cidade de São Paulo.

Para fazer isso de forma efetiva, precisamos dos dados. Aí já começa o problema. Nossos dados sofrem de atraso e subnotificação. Imagine obter informações precisas a respeito de uma população informal, cujos integrantes são de difícil acompanhamento e monitoramento. Além disso, já testamos pouco para a infecção por COVID-19, e testamos predominantemente pessoas hospitalizadas. Quem está testando os sem-teto? Temos esse número? Precisaríamos, antes de mais nada, portanto, testar essa população para casos, e confirmar óbitos por COVID-19 entre os moradores de rua.

Parece-nos pouco provável que essa população seja mais ou menos suscetível do que a população como um todo. Poderíamos argumentar que seriam mais suscetíveis, pensando em comorbidades e desnutrição, e naqueles que frequentam locais fechados e aglomerados como abrigos, onde as condições para a transmissão do vírus são maiores.

Poderíamos, para construir o argumento contrário, imaginar que seriam menos suscetíveis, por serem mais expostos aos coronavirus sazonais de resfriado comum, e por isso talvez tivessem adquirido alguma imunidade cruzada. Ou ainda, se pensarmos naqueles que não frequentam abrigos e não se aglomeram, passando a maior parte do tempo em espaços abertos e com pouca companhia.

 

Mais mortes do que em Paraisópolis

Mas, basta de especulações. Aos números. De acordo com dados da Secretaria Municipal de Saúde, há um total de 26 óbitos de moradores de rua por COVID-19 confirmados entre março e setembro de 2020 (dados obtidos por equipes de Consultório na Rua, e fornecidos por solicitação via Lei de Acesso à Informação), e 14 óbitos suspeitos (por observação clínica). Redes de pesquisadores consideram a cifra subdimensionada, mas vamos nos ater aos dados resultantes das informações obtidas em cumprimento às normas de acesso à informação (Lei Federal 12.527/2011, e Decreto Municipal 53.623/2012), obtidos na primeira semana de outubro de 2020.

No dia 24 de setembro, a mortalidade por COVID-19 do município de São Paulo atingiu 162,33 óbitos para cada 100 mil moradores, variando por segmento espacial da cidade, desde a menor mortalidade por distrito, em Anhanguera, com 77,90 por 100 mil, até a maior, no distrito de Água Rasa, com 242,34 mortes por 100 mil habitantes.

Entre os sem-teto, em fins de setembro, esta taxa seria de 164,31 mortes por 100 mil (o total de sem-teto no município, em 2019, era de 24.344 pessoas). Nada desprezível,  com ou sem banho. Trata-se de uma taxa superior à de 55 dos 96 distritos da capital: ou seja, se fossem um “distrito”, os sem-teto estariam entre os 40% mais atingidos pela pandemia.

Para comparar: a taxa de mortalidade de Brasilândia (quarto distrito mais populoso da Zona Norte paulistana, com 280.069 habitantes) era, naquela data, de 156 óbitos por 100 mil moradores. E Brasilândia foi citada como um local de alta mortalidade. O “distrito sem-teto”, vamos recordar, tem uma mortalidade de 164,31/100 mil. Vila Andrade, onde 60% da população mora na favela de Paraisópolis, tinha taxa de mortalidade de 79,51 mortes para cada 100 mil habitantes. Menos da metade dos sem-teto.

Embora a média de idade entre a população de rua tenha subido de 38 anos, em 2009, para 39 anos, em 2019, trata-se de população adulta, não idosa, assim fora deste grupo de risco.

 

O efeito banho

Vamos à segunda hipótese, então. Considerando que a primeira fosse válida, e que moradores de rua fossem realmente mais resistentes à COVID-19 – o que já vimos que não é o caso – o que poderia explicar isso? Segundo Russomano, a relação de causa e efeito seria dada pela falta de banho. O primeiro fator que avaliamos em uma hipótese é sua plausibilidade. O SARS-CoV-2 é um vírus respiratório, transmitido por aerossol e contato. Ou seja, a maior probabilidade de transmissão é de pessoa para pessoa. Por isso, a proximidade e as aglomerações devem ser evitadas. Outro possível foco de transmissão é por superfícies contaminadas e pelas mãos. Por isso, lavar as mãos ou usar álcool gel também diminui a transmissão.

A hipótese de que não tomar banho pode diminuir a transmissão carece de plausibilidade biológica, para não dizer puro bom senso, mesmo. Mas se o candidato realmente quiser testar a ideia, e compartilhar de um desprezo pela ética e pela vida humana compatíveis com o de seu mentor político, podemos montar um estudo clínico controlado entre moradores de rua. Dividi-los em grupos, e fornecer boas condições de higiene para um grupo e nada para o outro, e comparar os dois grupos para ver quem adoece mais de COVID-19.

Ou podemos fazer algo mais inteligente, que é prover moradia e higiene adequadas para essa população.

 

Suzana Pasternak é professora titular da FAU-USP e pesquisadora do Observatório das Metrópoles

Natalia Pasternak é pesquisadora visitante do Instituto de Ciências Biomédicas (ICB) da USP, presidente do Instituto Questão de Ciência e coautora do livro "Ciência no Cotidiano" (Editora Contexto)

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