A eclosão da pandemia de COVID-19 desencadeou uma corrida por formas de tratamento e prevenção da doença. Ao redor do mundo, cientistas e médicos começaram a testar medicamentos existentes e já aprovados para uso em outras condições, na busca de “atalhos” para o enfrentamento rápido do novo coronavírus, enquanto grupos de pesquisa, empresas de biotecnologia e farmacêuticas se uniam na maratona de desenvolvimento de uma vacina para o SARS-CoV-2. Neste caminho, foram muitos becos sem saída e falsas esperanças, como a cloroquina e a ivermectina – ora apresentadas como profilaxia, ora como “cura” -, mas também algumas veredas que se mostram promissoras, ainda que de maneira limitada, como o antiviral remdesivir e o anti-inflamatório dexametasona.
Em paralelo, porém, também teve início a promoção desenfreada de soluções “milagrosas” para a emergência sanitária por gente desesperada, deslumbrada ou, mesmo, de má-fé. De prata coloidal a florais de Bach, passando por ozonioterapia, água “plasmada” e até alvejante, elas têm em comum muito prometer sem nada provar, além de pôr em risco a vida de seus usuários, seja diretamente, pelas substâncias nelas contidas, ou indiretamente, pelo relaxamento nas medidas efetivas de prevenção, como a higienização de mãos e superfícies, uso correto de máscaras e o distanciamento social.
Nesta seara “alternativa”, no entanto, o destaque fica para a homeopatia, tanto por seu viés pseudocientífico quanto pela legitimação conferida pelo reconhecimento como especialidade médica pelo Conselho Federal de Medicina (CFM). Nem bem a Organização Mundial da Saúde (OMS) declarou a COVID-19 uma pandemia, em 11 de março, a Associação Médica Homeopática Brasileira (AMHB) divulgava, duas semanas depois, “estudo preliminar” de qual seria o chamado “gênio epidêmico” da crise. Com base na sintomatologia de 27 indivíduos, desta “lâmpada maravilhosa” de “repertorização” saiu um “gênio medicamentoso” composto por cinco preparados que, pelas premissas da prática, seriam capazes não só de tratar a doença em seus estágios iniciais como preveni-la: Arsenicum album, Bryonia alba, China officinalis, Chininum arsenicosum e Phosphorus.
Foi a deixa para que alguns governos locais, no afã de demonstrar estar fazendo “alguma coisa” para proteger seus cidadãos, adotassem a homeopatia como profilaxia da COVID-19. Ainda no fim de março, o prefeito de Itajaí (SC) – e não por acaso médico homeopata -, Volvei Morastoni, anunciou que agentes de saúde iriam de porta em porta distribuir, de boca e boca, cinco gotas de cânfora – outra substância do “repertório” homeopático supostamente capaz de combater males epidêmicos por “melhorar a imunidade”, usada pelo criador da prática, o médico alemão Samuel Hahnemann, no enfrentamento de um surto de cólera em 1831 - diluídas em água para quem quisesse. Mais do que inútil, porém, a forma escolhida para administrar a droga se mostrou claramente perigosa no contexto de epidemia de uma doença transmitida por via aérea. Alarmado, o Ministério Público de Santa Catarina pressionou a prefeitura, que cancelou a distribuição.
Morastoni, no entanto, não desistiu. Um mês depois, no fim de abril, o prefeito de Itajaí retomou a suposta medida preventiva com uma nova estratégia. Desta vez, a profilaxia seria administrada por meio de “glóbulos” de cânfora 50 LM FC, solução na qual a substância foi diluída em uma proporção de 1 para 50 mil (escala cinquenta milesimais, ou LM) e simultaneamente “dinamizada” por agitação em “fluxo contínuo” (FC). Ou seja, bolinhas de açúcar aspergidas com uma solução de água, álcool e nada mais. Segundo a própria prefeitura de Itajaí, até agora foram distribuídos quase 100 mil destes glóbulos no município.
Mas o resultado da iniciativa de Morastoni na contenção da epidemia, como esperado, parece ter sido nulo, ou mesmo deletério. Dados compilados pela plataforma Brasil.io com base nos boletins epidemiológicos das secretarias estaduais de Saúde emitidos até 23 de setembro colocam Itajaí no 55º lugar entre os 295 municípios catarinenses em casos confirmados por 100 mil habitantes, com 3.502,39, acima da média do estado, de 2.931,67. Já em número de óbitos, Itajaí está na 18ª posição, com 73,34 por 100 mil habitantes, quase o dobro das 37,74 mortes por 100 mil habitantes de Santa Catarina, e 161 no total, numa letalidade de 2,09%, contra 1,287% na média do estado.
Situação que não é muito diferente de alguns dos outros municípios catarinenses que segundo a própria AMHB seguiram o exemplo de Itajaí: Entre Rios, Trombudo Central, Atalanta, Rio do Campo e Rio Rufino. Entre Rios, por exemplo, lidera o ranking municipal de casos confirmados por 100 mil habitantes do estado de Santa Catarina, com mais de 10 mil, e está em quarto lugar dos 295 municípios nos óbitos proporcionais, com 124,88.
Apesar disso, alguns governos locais continuam a se voltar para a homeopatia em busca de prevenção para a COVID-19. Caso recente é de Campo Grande, capital do Mato Grosso do Sul. Lá, porém, o “remédio” escolhido foi o Arsenicum album 30 CH (de centesimal hahnemanniana, em que o suposto princípio ativo é diluído em álcool ou água na proporção de uma parte por cem). Com apoio da Associação Médica Homeopática do Mato Grosso do Sul (AMHMS), federada da AMHB, e farmácias homeopáticas locais e unidades da Secretaria Municipal de Saúde da capital começaram a distribuir em meados de agosto 200 mil doses do preparado, em iniciativa que também alcançou as aldeias indígenas urbanas da região. Campo Grande é uma das cidades mais afetadas pela pandemia no estado, ocupando o 10º e 11º lugares dos 79 municípios sul-mato-grossenses na proporção de casos e de óbitos por 100 mil habitantes, com 3.140,02 e 55,58 respectivamente, acima das médias estaduais de 2.390,29 e 43,79 para os dois indicadores.
Mas a lista não para por aí. A AMHB informa que a iniciativa de atendimento às comunidades indígenas no MS foi estendida para as cidades de Dourados, Amambai, Ponta Porã, Corguinho, Cassilândia, Nioaque e Tacuru, com Corumbá e outros municípios com alta incidência da COVID-19 no estado também já planejando usar homeopatia no contexto da pandemia. Além disso, a campanha “Homeopatia na COVID-19” da associação chegou à Baixada Santista, em São Paulo, e em Maraú, Bahia, onde o protocolo incluiu o preparado Bryonia alba. Em Minas Gerais, por sua vez, a prática estaria sendo usada como profilaxia da COVID-19 nas cidades de Belo Horizonte, Moema, Airuoca e Betim.
Segundo a AMBH, também empresas implantaram a homeopatia como prevenção da doença. Em seu site, a associação relata suposto estudo controlado com um grupo de 1.703 trabalhadores no qual chega a afirmar que a intervenção homeopática se mostrou mais eficiente que o isolamento social como medida profilática. Sem detalhar ou publicar os dados, a AMBH alega que a incidência da COVID-19 nos funcionários que tomaram seus preparados foi de apenas 0,74%, contra 29,3% no grupo que não teria feito o tratamento profilático.
Cesar Baima é jornalista e editor-assistente da Revista Questão de Ciência