Vacina não é time de futebol para ter torcida

Artigo
17 set 2020
bola na rede

 

Nunca antes na história deste país, ou de qualquer outro país, o desenvolvimento e testes clínicos de uma vacina foram acompanhados tão de perto pela população. De repente, não mais que de repente, expressões como resposta imunológica, fase 1, fase 2, fase 3, anticorpos, imunidade de rebanho, RNA, adenovírus foram incorporadas às conversas do dia a dia, como se os quase 210 milhões de técnicos de futebol brasileiros se transformassem em um número igual de imunologistas. Dia sim, outro também, pesquisadores envolvidos nos testes são entrevistados na TV e questionados sobre os avanços nas pesquisas, da mesma forma que técnicos de futebol são ouvidos após os treinos – em que também não costuma haver novidade nenhuma.

No futebol, como nas vacinas, as perguntas se repetem: quais os avanços, quando os testes serão concluídos, quando as vacinas estarão disponíveis, quem vai ser vacinado primeiro. “Afinal, professor, o Júnior se recupera a tempo de jogar o clássico de domingo?”, pergunta o repórter vacino-esportivo, que ouve a mesma resposta: “O Júnior está indo bem, mas quem libera é o departamento médico”. No Brasileirão da Vacina, não faltam nem as mesas redondas, quadradas e retangulares com especialistas, nem as torcidas, no caso das vacinas, um tanto desorganizadas.

Tem o pessoal que torce para a vacina chinesa da Sinovac, a turma que cruza os dedos pela Oxford/AstraZeneca, o pessoal que carrega a bandeira da Pfizer e a turma bem reduzida da Sputinik V/Gamaleya, que não enche nem metade do Estádio Conde Rodolfo Crespi, do Juventus, ali na Rua Javari, no paulistano bairro da Mooca. Menor que essa torcida, só mesmo a dos fãs da Soberana 01, a vacina que está sendo desenvolvida em Cuba, entrou em fase 1 recentemente e que promete resultados iniciais para fevereiro do ano que vem. Existem, é claro, os que detestam futebol. Mas o fato é que também vão disputar a preferência dos torcedores a vacina da Johnson & Johnson, que deve aportar logo por aqui, e dezenas de outras também virão para o país em que o vírus se dissemina alegremente, até porque boa parte da população declarou o fim da pandemia e resolveu lotar praias, bares e reencontrar amigos e parentes para churrascos nos fins de semana.

 

Jogador lesionado

Quando vazou a informação de que um voluntário britânico da vacina de Oxford/AstraZeneca tinha tido um problema neurológico, as equipes de TV mal conseguiram disfarçar o choque diante da notícia de que os testes clínicos da vacina seriam suspensos naquele 8 de setembro, nem o alívio quando especialistas garantiram que isso é comum. Só que o público não estava habituado a tomar conhecimento dos tropeços que acontecem em testes de vacinas e de medicamentos. Amigos em redes sociais correram para postar “Deu ruim” ou “Não vai ter vacina, gente”.

Essa informação só chegou ao público porque Pascal Soriot, diretor executivo da AstraZeneca, mencionou o caso do voluntário para investidores durante uma reunião fechada, promovida pelo J.P. Morgan. O site americano Stat News, que trabalha com reportagens da área de saúde, divulgou a informação, mais tarde confirmada por analistas do banco. Só depois a AstraZeneca fez um comunicado oficial.

Normalmente, episódios assim são investigados internamente, no grupo de pesquisa, e relatados no trabalho final, se estatisticamente expressivos. Quando muito, são reportados à agência reguladora do país onde o teste ocorre. Não vêm a público. Tanto que um outro caso, na fase 2 de teste da mesma vacina, alertou pesquisadores, mas foi descartado porque se tratava de um caso diagnosticado como esclerose múltipla, não associado à vacina. Ninguém ficou sabendo.

Se todo problema registrado em testes clínicos de medicamentos e vacinas fosse noticiado, os jornais trariam matérias e mais matérias diariamente, com ou sem pandemia. Os testes com a vacina foram retomados no Reino Unido, no Brasil e na África do Sul, mas não nos Estados Unidos, onde a Food and Drug Administration (FDA) exige o envio de amostras de sangue e tecidos do voluntário, para análise própria.

 

Conspirações

A notícia causou furor nas redes sociais, especialmente entre um grupo que pode ser descrito como os dos neoantivacinas tupiniquins, bem diferentes dos “tradicionais”, que tendem a ter origens naturebistas, new age, alternativas. Esse pessoal é novo no riscado, geralmente é de direita, não acredita na COVID-19, afirma que não consegue respirar de máscara porque “tem trauma” e faz protesto reunindo uma dúzia de gatos pingados que gritam “Não precisamos de vacina. Nós temos a cloroquina”.

Claro que assim que saiu a notícia da suspensão temporária dos testes, a boataria se espalhou pelas redes sociais. Um desses boatos dizia que os testes da vacina de Oxford já tinham sido suspensos no Brasil há tempos, mas “estavam abafando os casos". A história seguia o modelito básico de fake news: o cunhado da prima da irmã da vizinha da pessoa que contava a história era clínico geral num hospital universitário e havia falado que o teste tinha sido suspenso por causa do “enorme número” de voluntários que apresentaram Síndrome de Guillain-Barré depois de tomar a vacina.

Administradora de um grupo fechado de mães em redes sociais, Acácia (vamos chamá-la assim em homenagem ao Conselheiro de Eça de Queirós) desandou a alertar suas seguidoras para não tomar nenhuma vacina “porque todas são feitas de milhares de fetos abortados e contêm células disploides (sic) desses inocentes”. A postagem coincidiu com o início dos testes de vacinas contra a COVID-19 no Brasil, mas se referia a vacinas em geral.

 

Fetos e terapia quântica

Na produção de algumas vacinas, culturas de células humanas são usadas para reproduzir milhares de vírus, que depois são coletados e inativados. Pelo menos quatro vacinas em desenvolvimento, entre elas a de Oxford, usam a linhagem HEK-293, produzida a partir das células de um único feto feminino, legalmente abortado na Holanda em 1972. Vacinas de hepatite A, pólio e catapora são produzidas da mesma forma numa cultura chamada de MRC-5, de células renais de um feto masculino abortado em 1966.

Bispos católicos americanos, representantes de 20 outras religiões, associações médicas e políticos antiaborto escreveram para a FDA pedindo que “linhagens de células obtidas por métodos e procedimentos antiéticos” não fossem usadas no desenvolvimento de vacinas contra a COVID-19. Mas desde 2005, a Pontifícia Academia pela Vida, do Vaticano, afirma que, na falta de alternativa, o católico pode tomar “vacinas produzidas em linhagens celulares históricas produzidas a partir de fetos”.

Assim que veio a suspensão dos testes, Acácia atacou outra vez, com um vídeo de uma certa Flavia Mollokay, “terapeuta vibracional quântica”, radicada em Aveiros, Portugal. A autodescrição faz jus aos 22 minutos intermináveis do vídeo, que fala em código: atchim pra gripe, cocó para COVID, hidro para hidroxicloroquina. O código é necessário, diz a terapeuta, porque se considera censurada (esteve banida, por algum tempo, do Facebook).

Mollokay se diz chocada porque acaba de saber que uma amiga querida, também (sic) do setor da saúde, casada com médico, está em estado gravíssimo. A família inteira foi voluntária para o teste da vacina, inclusive os filhos de 18, 16 e 13 anos, mas todos os três morreram por causa da vacina. No entanto, não há menores de idade participando de nenhum teste de vacina em lugar nenhum do planeta. Suas alegações são demonstravelmente falsas.

Lá pelas tantas, a quântica diz que ninguém precisa de vacinas “porque temos a hidro, não é mesmo?”, que além de tudo é recomendada pelo “nosso (dela) ‘Bolsinho’”. O vídeo ainda deve estar no Youtube, caso não tenha sido removido pelos mesmos motivos que levou o Facebook a excluir a vibracionista, mas a busca é por sua conta e risco: são 22 minutos de intenso sofrimento cerebral para quem assiste.

 

Crônica esportiva

Seja como for, aparentemente o tropeço temporário da vacina de Oxford parece ter tido a virtude de conter o oba-oba do Brasileirão da Vacina e botar a bola no chão. O tempo da ciência não é o tempo do noticiário em tempo real. Testes clínicos não são feitos em dois tempos de 45 minutos, às vezes com prorrogação, e fim de jogo. A maioria dos testes clínicos de vacinas e medicamentos acaba sem vencedor. Os campeonatos de vacina normalmente não duram meses, mas anos, ou mesmo décadas. E este é um torneio excepcional, por vários motivos.

São centenas de empresas e universidades correndo atrás da vacina pra uma doença que, em menos de 9 meses, infectou oficialmente mais de 30 milhões de pessoas em todo mundo, mais da metade delas nos EUA, Índia e Brasil, e logo deve alcançar a casa do 1 milhão de mortos. Há vacinas clássicas e tecnologias inovadoras nessa disputa. E uma série interminável de “não sabemos”: qual vai ser a sua eficiência? 70%, como as vacinas contra gripe? Mais? Menos? Serão duas doses, e muita gente vai tomar a primeira e nem aparecer para a segunda? Como os diferentes países vão se organizar para distribuir e vacinar a população? O que fazer se por acaso só as vacinas de RNAm se mostrarem eficazes? Elas precisam ser mantidas a uma temperatura de -80°C, o que gera enormes dificuldades logísticas.

 

Mais incertezas

Nesta quarta-feira, 16, o diretor dos Centros de Prevenção e Controle de Doenças (CDC), Robert Redfield, em depoimento ao Congresso americano, afirmou que a partir do momento em que uma vacina for aprovada, serão necessários pelo menos dois anos para vacinar a população americana. Como não vai ser possível saber em quem a vacina “pegou” ou não (a de gripe, por exemplo, “pega” em 70% das pessoas vacinadas), todo mundo vai continuar a ter de usar máscara.

Qual será o critério de vacinação? Se forem priorizados o pessoal da linha de frente da saúde, os idosos, portadores de comorbidades, então os professores e as crianças vão para o fim da lista. Se isso ocorrer, será que elas terão de ficar três anos longe das escolas – este que já está perdido, e mais dois? Só o tempo da ciência vai poder responder outra pergunta fundamental: por quanto tempo essa possível vacina vai nos proteger do SARS-CoV-2? Um ano? 10 anos? A vida inteira? Como vamos fazer se ela for como a da gripe, válida por apenas 12 meses, tendo de ser refeita a cada ano? O planeta vai concentrar seus recursos para produzir bilhões de doses de vacinas contra COVID-19, ano após ano?

Há muito mais em jogo, nesta corrida pela vacina, do que conter a COVID-19. No mundo polarizado dos Trumps e Bolsonaros, a pandemia, as formas de prevenção e as vacinas deixaram de ser questões de saúde pública para se transformar em questões políticas. Negacionistas que seguem seus ídolos no poder não usam máscara, torcem contra vacinas chinesas. Oposicionistas torcem pela vacina, mas desconfiam da rapidez dos testes e da segurança das vacinas e das promessas de políticos.

Também na última quarta-feira, Trump reagiu à fala do diretor do CDC com uma enxurrada de mentiras: disse que terá a vacina da Pfizer já em outubro; que assim que for aprovada, começará a ser distribuída pelo Exército em 24 horas; que em poucos meses todos estarão vacinados. Por aqui, o recém-confirmado ministro da Saúde Eduardo Pazzuello e o governador paulista João Doria, entre outros, prometem começar a vacinação em janeiro – sem saber se os testes estarão concluídos até lá, e quais serão os resultados: o nome é "teste" exatamente porque pode falhar.

Não à toa, nove grandes indústrias farmacêuticas firmaram e divulgaram documento na semana passada, comprometendo-se a só requerer liberação de vacinas quando estiverem certos de sua segurança e eficácia. Uma vacina segura e eficaz, neste momento caótico, pode ser decisiva para o futuro das vacinas, reafirmando a importância da descoberta da tecnologia. Um fiasco, porém, pode significar o avanço ainda maior do obscurantismo dos antivacinistas. A Copa do Mundo das Vacinas está apenas começando.

 

Ruth Helena Bellinghini é jornalista, especializada em ciências e saúde e editora-assistente da Revista Questão de Ciência. Foi bolsista do Marine Biological Lab (Mass., EUA) na área de Embriologia e Knight Fellow (2002-2003) do Massachusetts Institute of Technology (MIT), onde seguiu programas nas áreas de Genética, Bioquímica e Câncer, entre outros

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