O relaxamento das medidas de distanciamento social e a consequente retomada da atividade econômica, com a reabertura de lojas e serviços, como salões de beleza e academias, e, em breve, escolas e outros espaços públicos, trouxe a reboque a necessidade de garantir a assepsia destes ambientes para o SARS-CoV-2, o coronavírus causador da COVID-19.
Como solução para o problema, algumas empresas aparecem agora oferecendo máquinas que geram uma espécie de “neblina” de produtos desinfetantes supostamente capazes de “eliminar o coronavírus” destes locais. A estratégia, no entanto, não conta com o aval das autoridades sanitárias, e tampouco da própria indústria da limpeza, para ser usada de forma isolada, é considerada um risco para a saúde das pessoas expostas e gera uma falsa sensação de segurança que pode facilitar a disseminação do SARS-CoV-2.
Água sanitária, água oxigenada, álcoois, ácidos, sais quaternários de amônio, terpenos. A lista de produtos provados e aprovados para eliminar bactérias e germes, inclusive vírus como o SARS-CoV-2, de superfícies, é extensa. A Agência de Proteção Ambiental dos EUA (EPA) conta quase 500 formulações, vendidas sob diversas marcas, enquanto a brasileira Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) tem um rol de mais de 2,8 mil. Isso não quer dizer, porém, que qualquer forma de aplicação gera resultados eficazes. Condicionantes a levar em conta incluem o tamanho das gotículas, a necessidade de fricção ou pré-limpeza, uma eventual distribuição desigual ou falha do produto e o tempo de contato do desinfetante com a superfície. Cada uma dessas questões pode se refletir em problemas no uso das máquinas de neblina.
“Em espaços internos, a aplicação rotineira de desinfetantes nas superfícies do ambiente via vaporização ou névoa (também conhecida como fumigação ou nebulização) não é recomendada para a COVID-19”, diz nota de orientação para limpeza e desinfecção de ambientes publicada pela Organização Mundial da Saúde (OMS) em maio. “Estudo demonstrou que a pulverização, como estratégia primária de desinfecção, é ineficaz na remoção de contaminantes fora dos locais atingidos diretamente pelo spray”, cita.
De acordo com a OMS, a estratégia não seria eficaz na remoção de material orgânico e pode deixar passar superfícies encobertas por objetos, tecidos dobrados ou superfícies com desenhos intricados. “Se for aplicar desinfetantes, isto deve ser feito com um pano ou lenço umedecido com o desinfetante”, recomenda o documento, que também faz objeção ao uso do método em áreas externas. Segundo a organização, “o desinfetante pode ser inativado por sujeira ou detritos”, o que torna a pulverização de superfícies porosas “ainda mais ineficaz”. Por fim, “mesmo na ausência de matéria orgânica, a pulverização provavelmente não vai cobrir todas as superfícies pelo tempo de contato necessário para a inativação de patógenos”, afirma a OMS.
A preocupação com a eficácia da aspersão de desinfetantes em neblina, no entanto, precede a pandemia de COVID-19. Em 2013, a EPA, numa mudança de sua política de regulação, passou a exigir que os fabricantes de produtos de limpeza por aspersão, com suposta ação germicida, comprovassem suas alegações, no que justificou:
“As razões pelas quais a EPA considera que os métodos de fumigação/nebulização podem não ser adequados incluem:
- A aplicação por fumigação/nebulização resulta em partículas de tamanho muito menor, diferentes características de cobertura de superfícies e eficácia potencialmente reduzida quando comparada com a sanitização ou aplicação de produtos por spray, esponjas, panos e esfregões;
- A ausência de uma limpeza prévia na presença de contaminantes, potencial reação com ou absorção do ingrediente ativo por diferentes superfícies e flutuações de umidade e temperatura também podem impactar a distribuição e eficácia do produto;
- Uma superfície tratada por fumigação/nebulização não recebe a mesma quantidade de ingrediente ativo por unidade de área do que usando os métodos padrões de aplicação, e, como resultado, o nível de eficácia de fato atingido pode não estar no mesmo nível do alegado no rótulo”.
Até agora, porém, a agência americana de monitoramento e proteção ambiental não registrou nenhum produto para este tipo de uso.
Tendo como referência as avaliações da EPA, o Centro de Controle e Prevenção de Doenças dos EUA (CDC) também não inclui a estratégia em suas orientações para limpeza e sanitização de estabelecimentos comerciais, escritórios e outros espaços amplos, privados, públicos ou comunitários. Seguindo e avançando as considerações do CDC, a brasileira Anvisa adverte textualmente em nota técnica sobre uso de produtos saneantes no contexto da pandemia de COVID-19, emitida em maio, que nebulizadores e termonebulizadores “não devem ser usados para desinfecção de superfícies e objetos”.
Na mesma linha segue o Ministério da Saúde da Nova Zelândia, país considerado um exemplo na contenção da pandemia. Nas suas orientações sobre o tema, a instituição afirma que “fumigação ou pulverização de áreas amplas (conhecida como ‘neblina desinfetante’) não limpa superfícies efetivamente, e há poucas evidências de que seja eficaz em matar (o vírus da) COVID-19. Além disso, se a nebulização não for feita corretamente, isto pode expor os trabalhadores e outros a substâncias químicas danosas”.
Esta última preocupação também já havia levado as autoridades sanitárias a condenarem a utilização de “túneis”, cabines ou outras estruturas do tipo para a descontaminação de pessoas com fumigação ou “banhos” de produtos sanitizantes. “Não foram encontradas evidências científicas, até o momento, de que o uso dessas estruturas para desinfecção sejam eficazes no combate ao SARS-CoV-2, além de ser uma prática que pode produzir importantes efeitos adversos à saúde”, ressaltou a Anvisa em nota técnica, também publicada em maio. “Um problema adicional é que a utilização dessas estruturas pode dar às pessoas uma falsa sensação de segurança e, desse modo, levar ao relaxamento das práticas de distanciamento social, de lavagem das mãos frequente com água e sabonete, de desinfecção de superfícies e outras medidas de prevenção”, complementa.
E não são só as autoridades sanitárias que desaconselham a assepsia de ambientes como “neblina”. O Instituto de Pesquisas da Indústria da Limpeza dos EUA (Ciri, na sigla em inglês) - organização sem fins lucrativos criada e mantida por empresas americanas do setor com o objetivo de produzir estudos científicos e informações técnicas independentes e revisados por pares neste campo – também lançou uma cartilha com orientações para sanitização de ambientes em que condena a simples nebulização de locais públicos como forma de eliminar e prevenir a infecção pelo SARS-CoV-2.
“Com tantas alegações sendo feitas em torno de certos produtos de limpeza e práticas, é mais importante do que nunca termos uma ciência sólida e documentada como a base de nossos programas de limpeza”, destacou John Downey, diretor executivo do Ciri, em comunicado sobre o lançamento do documento. “De academias a hotéis, escolas e lojas, as pessoas querem saber se é seguro visitar espaços internos à medida que as comunidades começam a reabertura. Usar a ciência para informar nossos protocolos de limpeza vai ajudar a nos assegurar disso”.
A tentação de uma solução fácil para um trabalho difícil, porém, é grande. Na Índia, que enfrenta uma disparada no número de casos e mortes por COVID-19, há relatos da oferta e venda de geradores de fumaça para shows como máquinas de desinfecção para o coronavírus. Já a gigante do varejo online Amazon foi alvo de críticas depois de apresentar a nebulização de seus armazéns e outras áreas operacionais como uma das estratégias adotadas para proteger seus trabalhadores, durante reportagem do programa “60 Minutes”, da rede de TV CBS. Questionada pela ausência de aval das autoridades para este método, a empresa posteriormente alegou que o uso dos nebulizadores era um “projeto piloto que nunca teve a intenção de uma utilização ampla”, tendo sido substituído por pulverizadores individuais portáteis, aprovados para aplicação dos produtos desinfetantes seguindo as orientações da bula.
Cesar Baima é jornalista e editor-assistente da Revista Questão de Ciência