Na pandemia da COVID-19, Estados Unidos e Brasil encabeçam o ranking dos maiores números de mortes – mais de 186 mil americanos e mais de 120 mil brasileiros – e de infectados, com 6.100.000 americanos e mais de 3.800.000 brasileiros. Na maior economia do mundo e no país das crises eternas, faltam testes, não há rastreamento de casos, os dados oficiais são postos em dúvida, boa parte da população decidiu que a pandemia acabou e os dois presidentes são negacionistas e defensores de falsas curas, que vão da cloroquina à ingestão de desinfetantes. Além da pandemia, a infodemia faz estragos monumentais, em dois países em que a maior crise de saúde pública dos últimos cem anos foi politizada e ideologizada. Mas, no que se refere a uma futura vacina, as diferenças são gritantes. Pesquisas americanas indicam que apenas algo em torno de 65% da população tomaria uma vacina, por aqui, 89% dos brasileiros querem se vacinar. E, enquanto a vacina não vem, dia sim, outro também, repórteres de TV infernizam a vida de pesquisadores com a mesmíssima pergunta: quais são as novidades do teste e quando a vacina vai ficar pronta.
O que atrai as grandes farmacêuticas para o Brasil é a grande circulação do vírus, garantida por uma longa quarentena mal feita e uma reabertura econômica apressada, da qual a população se cansou a ponto decidir que é melhor tocar a vida normalmente porque só vacina resolve. Isso, a despeito da intensa campanha de grupos antivacinação, os "antivaxx" tupiniquins, nas redes sociais.
Ao contrário do que acontece nos estudos americanos, onde pesquisadores se preocupam com a falta de representatividade de negros, latinos e demais grupos étnicos nos testes clínicos, por aqui essa questão sequer é mencionada. “Na verdade, a questão da diversidade étnica é importante no caso de testes clínicos de medicamentos, mas, no caso das vacinas, não há, na literatura médica, registro de diferenças na eficácia de nenhum dos imunizantes que existem. No entanto, os dados dos testes clínicos de vacinas ganham mais peso, mais consistência, se elas forem testadas em diferentes populações”, explica o pediatra e infectologista Renato Kfouri, vice-presidente da Sociedade Brasileira de Imunizações (SBIm).
Imagine que uma indústria farmacêutica da Islândia, país pequeno, de população praticamente isolada e homogênea, desenvolva uma vacina ou medicamento. Os testes clínicos fase 1, que avaliam segurança e envolvem algumas dezenas de pessoas, podem perfeitamente ser realizados ali, bem como os de fase 2, que testam eficácia em algumas centenas. A saída para ter dados mais consistentes numa população diversificada é fazer uma fase 3 multicêntrica, envolvendo dezenas de milhares de pessoas em diferentes países. É isso que está sendo feito, por exemplo, com a vacina de Oxford, que está sendo testada no Reino Unido, Estados Unidos, África do Sul e aqui no Brasil.
Se nos testes clínicos para vacinas, a diversidade étnica não tem um peso tão decisivo, nos testes de medicamentos a coisa muda de figura. Daí a preocupação mostrada pelos pesquisadores norte-americanos ouvidos por Jonel Aleccia, especializada em temas associados a envelhecimento e fim da vida. Dois episódios estão muito vivos na memória da comunidade negra dos Estados Unidos, o caso Tuskegee, considerado o experimento mais infame da História dos EUA, e a história de Henrietta Lacks.
Tuskegee
Em 1932, pesquisadores da Universidade Tuskegee, e o governo federal americano, selecionaram 600 agricultores negros do Alabama, 399 deles com sífilis latente e 201 sem sífilis, para o tal “experimento”, sem informar aos 399 homens que eram portadores da doença. A todos foi dito que receberiam atendimento médico gratuito do governo federal. Na prática, receberam placebos, medicamentos ineficazes e fizeram exames apresentados como terapias para o que, na época, era conhecido como “sangue ruim”, que incluía uma série de doenças, como anemia, cansaço, sífilis e várias outras. Nem mesmo depois de 1946, quando se soube que a penicilina era eficaz contra a sífilis, os pacientes com a doença foram informados que havia tratamento, e os pesquisadores chegaram a dizer que a nova terapia deveria ser evitada.
Com poucos recursos e acesso restrito a informações, essas pessoas continuaram sem tratamento, o que resultou em 40 esposas infectas e no nascimento de 19 crianças com sífilis congênita. O caso só veio a público em 1972, através da imprensa, quando ainda havia 74 sobreviventes do “experimento”. O impacto dessa pesquisa absolutamente antiética é tamanho que uma pesquisa feita na comunidade negra, em 1999, mostrou que 80% dos entrevistados acreditavam que os negros de Tuskegee haviam sido deliberadamente infectados com sífilis pelo governo.
Henrietta Lacks
Henrietta Lacks, uma afro-americna atendida pela Johns Hopkins University, morreu de câncer de colo de útero, e as células de seu tumor foram coletadas e deram origem à primeira cultura de células humanas imortalizadas, a linhagem HeLa, usada até hoje em pesquisas. Como, nessa época, esse tipo de procedimento não exigia o consentimento do paciente e sua família, nem Henrietta nem seus parentes receberam um tostão pelo uso de suas células. Sua história e a de sua família chegaram ao público no ano 2000, graças ao livro da jornalista Rebecca Skloot, A vida Imortal de Henrietta Lacks, e ao filme de mesmo nome, produzido e estrelado por Oprah Winfrey, no papel de Deborah Lacks, filha de Henrietta, em 2007.
Diversidade na vacina
Segundo especialistas, esses casos estão na origem da enorme desconfiança das comunidades afro-americana em relação à comunidade médica, às orientações da saúde pública e que se estende também às recomendações para vacinação. Essas comunidades estão sendo duramente atingidas pela COVID-19 e há dúvidas sobre o grau de adesão que vão mostrar quando houver uma vacina eficiente contra a doença.
Outra preocupação, esta mais do que legítima, com relação aos testes clínicos de vacinas é a baixa participação de grávidas, idosos, pessoas com comorbidades e as que precisam de remédios de uso contínuo. No Brasil, apenas a Pfizer inclui pessoas com mais de 60 anos na sua convocação de voluntários para os testes de sua vacina. Idosos são essenciais nesses testes, tanto porque compõem o grupo de mais alto risco, como porque seu sistema imune é senescente, isto é, não responde tão bem a infecções e vacinas, como o de pessoas na faixa dos 40 anos, por exemplo. Por causa disso, mais recentemente, os Estados Unidos oferecem duas doses diferentes para a vacina contra gripe, uma delas reforçada para maiores de 65 anos.
“Normalmente, testes de novas vacinas se estendem por anos, muitas vezes cerca de 10 anos, então a situação que estamos vivendo é completamente inédita”, explica Kfouri. “Nos testes convencionais, de início se buscam voluntários jovens e saudáveis e só depois de dois ou três anos de bons resultados é que se começa a buscar pessoas com comorbidades, gestantes e idosos para inclusão nos testes clínicos”. Nesta pandemia, porém, alguns estudos já estão convocando essas pessoas dentro dos quadros de profissionais da saúde, com mais probabilidades de serem expostas ao SARS-CoV-2. A torcida é para que as vacinas se mostrem eficientes e não ofereçam efeitos colaterais graves também nesses grupos.
Ruth Helena Bellinghini é jornalista, especializada em ciências e saúde e editora-assistente da Revista Questão de Ciência. Foi bolsista do Marine Biological Lab (Mass., EUA) na área de Embriologia e Knight Fellow (2002-2003) do Massachusetts Institute of Technology (MIT), onde seguiu programas nas áreas de Genética, Bioquímica e Câncer, entre outros