Boa parte da sociedade está perplexa frente a um mundo onde a ciência e a tecnologia avançam com uma velocidade nunca vista. Esta perplexidade coexiste, e reforça, as variadas formas de explicar fenômenos observáveis.
Há poucos anos, essencialmente ninguém no planeta tinha um celular inteligente nem estava conectado à internet. Mas este fato não permitiu nem entender como funciona o celular, e muito menos o que é a internet.
As mudanças tecnológicas que nos acompanham decorrem de dados e de teorias científicas. Assim, poderia parecer que o termo "explicação científica" tem um significado claro para a sociedade. Será?
A pandemia de COVID-19 mostra, no Brasil e em muitos países da Terra, que parte da sociedade não distingue, ou se recusa a distinguir, explicação científica das muitas outras formas de explicar o observável. Um fenômeno pode ser explicado usando ciência, preceitos religiosos, mágicos, ideológicos, para mencionar somente alguns. O que causa a polêmica não é o fenômeno, mas sua explicação.
As explicações de muitos fenômenos são chamadas de científicas. Na polêmica sobre transgênicos, por exemplo, fenômenos observáveis por todos foram explicados de formas distintas por setores envolvidos na discussão.
Outras polêmicas, como a explicação da distribuição de fósseis, provêm de interpretações diferentes por religiosos criacionistas, que não aceitam a existência da evolução, e pela maioria da população que pode, ou não, aceitar esta teoria. Em ambos os casos, mas especialmente na questão dos fósseis, não se trata de que as distintas comunidades discutam o fenômeno, os fósseis estão aí para todo mundo ver e a sua antiguidade é, quase sempre, aceita.
Numa sociedade que se quer democrática é essencial que os cidadãos tenham consciência do significado das palavras. O que se quer dizer com "explicação científica"? Porque adicionar "científico" a um termo aparentemente tão bem conhecido como "explicação"?
Decisões políticas de impacto social, decorrentes de avanços científicos e tecnológicos, ou de fenômenos como esta pandemia, são tomadas com frequência crescente. Estas decisões têm a ver com aspectos que têm impacto sobre a sociedade como: o uso de vermífugos para tratar COVID-19, embriões para fins terapêuticos, alimentos vindos de plantas geneticamente modificadas, remédios com proteínas obtidas por engenharia genética, fichas de identificação com códigos de DNA do usuário, e aqui se vão uma infinidade de etc.
Os cientistas que descobriram os fenômenos, ou formularam as teorias, não são os que tomarão as decisões. Certamente, também não podem ser as empresas que fornecem os produtos decorrentes das invenções ou teorias as que podem determinar seu uso. É a sociedade organizada que deve decidir, com plena consciência das melhores "explicações científicas" disponíveis, pois os remédios, e/ou os alimentos, não foram descobertos por magos, religiosos nem ideólogos, mas sim por cientistas.
Uma "explicação" é um enunciado verbal (proposição) que reformula, ou recria, as observações de um fenômeno num sistema de conceitos aceitável para um grupo social que compartilha um sistema de validação daquilo que pode ser verdadeiro ou falso (esta parte do texto, e muito do seguinte, tem forte influência de Maturana e Varela, cientistas chilenos que, entre outros livros, escreveram “A Árvore do Conhecimento”).
Assim, a religião ou a magia são tão explicativas, para aqueles que as aceitam, como a ciência, para aqueles que a aceitam. A diferença central entre a explicação religiosa ou mágica, e a explicação científica, é a forma com a qual se gera uma explicação "científica".
Quatro condições devem ser satisfeitas para que uma explicação possa ser chamada de "científica":
1. Descrição do fenômeno a explicar de uma forma aceitável para a comunidade dos observadores. A comunidade dos observadores é a comunidade científica, que também define, de forma consensual, o que é observável;
2. Proposição de um sistema conceitual capaz de gerar o fenômeno a explicar, de uma maneira aceitável para a comunidade de observadores. Este sistema se denomina hipótese explicativa;
3. Dedução, a partir da hipótese explicativa, de outros fenômenos não considerados explicitamente na proposição inicial, assim como das condições de observação para a comunidade de observadores. Este conceito se denomina previsão;
4. Observação destes e outros fenômenos. Estas novas observações podem, ou não, validar a hipótese explicativa. Se não for validada, volta-se à primeira condição.
Somente se estes critérios são obedecidos, e somente com este sistema de validação, uma explicação é científica. Assim, embora possam existir variadas explicações, só será científica, dentre todas as possíveis, aquela que obedecer aos critérios acima.
A previsibilidade decorrente da explicação científica da estrutura do DNA, proposta por Watson e Crick em 1953, deu origem à engenharia genética que, por exemplo, permite hoje que pacientes diabéticos possam ser tratados com insulina humana obtida em bactérias usando DNA recombinante. Esta explicação resistiu até hoje a todos os critérios de validação, e é aceita até hoje.
Prever e resistir ao crivo da observação no tempo caracteriza a explicação científica. Explicações científicas, portanto, não são verdades absolutas, podem prever fenômenos que não foram ainda observados ou ter que se restringir, quando fenômenos observados não são compatíveis com as previsões.
Contudo, o avanço do conhecimento e da tecnologia, a partir das explicações científicas, ainda faz com que estas sejam, até agora, as melhores para descrever e prever fenômenos. Estes conceitos deveriam ser debatidos quando uma sociedade democrática é chamada a decidir politicamente sobre assuntos que dizem respeito a avanços tecnológicos, como as vacinas contra o SARS-CoV-2, que podem modificar a condição da sociedade.
Hernan Chaimovich é professor emérito do Instituto de Química da Universidade de São Paulo