De acordo com projeções feitas pelo Instituto de Métricas e Avaliação da Saúde (IHME) da Universidade de Washington, o Brasil deve romper a marca de cem mil mortos pela COVID-19 em algum momento da primeira quinzena de agosto, talvez até antes do dia 10. Só para lembrar, quando os Estados Unidos atingiram esse número trágico, The New York Times fez uma capa histórica, com seis colunas repletas de nomes de vítimas da doença, a manchete “Uma Perda Irreparável” e a linha fina “They Are Us” (“Eles Somos Nós”).
Aqui no Brasil, com a aproximação do número emblemático — que, cá como lá, reflete, mais do que a presença do novo vírus, a incompetência, a soberba e o despreparo das autoridades — ouvem-se já os primeiros disparos de uma refrega de narrativas onde a turma da “gripezinha-e-daí” tenta escamotear a falha trágica de seus ídolos e panaceias, com cenas ensaiadas de revolta e indignação por conta de um suposto “alarmismo exagerado” em torno da pandemia.
Lendo certos feeds de rede social, fica a impressão de haver multidões que se sentem pessoalmente ofendidas cada vez que olham pela janela e não veem gente em trajes HazMat na calçada, aplicando lança-chamas a pilhas de corpos. Cem mil mortos, parece, é pouco para certas sensibilidades.
Já há até quem diga, espero que com boa dose de ironia, que Bolsonaro tem o mérito de evitar “90% das mortes previstas pela ciência”, por causa de projeções, feitas em março, que alertavam para um risco de 1 milhão de mortes no país até o fim de agosto, caso nada fosse feito para conter a disseminação do SARS-CoV-2.
O conto do milhão
Só para deixar claro, “a ciência” nunca previu um milhão de mortes no Brasil “até agosto”. Esse tropo específico — “um milhão de mortes até o final de agosto” — surgiu de uma extrapolação, para a realidade brasileira, de um dos cenários traçados para os Estados Unidos pelo Imperial College de Londres e publicado em 16 de março. Trata-se do famoso Relatório 9 do College, sobre “intervenções não farmacológicas” (distanciamento social, quarentenas, etc).
É importante notar que o Relatório 9 não menciona o Brasil. Ele discute cenários para o Reino Unido e Estados Unidos. Como Brasil e EUA têm características semelhantes (tamanho continental, população de centenas de milhões de habitantes), e na ausência de informações confiáveis e cálculos específicos para a realidade brasileira, a extrapolação, naquele momento, era um “chute informado”.
No cenário mais pessimista, “na (improvável) ausência de quaisquer medidas de controle ou de mudanças espontâneas de comportamento”, o relatório projetava um pico de dez milhões de mortes nos EUA em junho. Na realidade, o país fechou o mês com pouco mais de 120 mil óbitos. Como se vê, as expressões “improvável” e “quaisquer medidas” merecem especial ênfase.
Dez dias depois do Relatório 9, o Imperial College publicou outro documento, o Relatório 12, desta vez tratando do impacto global da COVID-19. Este Relatório 12 também não menciona diretamente o Brasil no texto principal, mas um de seus anexos é uma tabela Excel com projeções de diferentes cenários para diversos países, incluindo o nosso. E não são cenários “até o fim de agosto”, mas até o fim da pandemia. Seja lá quando isso for.
Méritos
Então, que cenários são esses? O College estimava que, se o Brasil fizesse uma quarentena decente e começasse na hora certa, poderíamos chegar ao final da pandemia com 44,2 mil mortos. Note que neste exato momento já sofremos o dobro disso, e não há fim em vista. “Bolsonaro tem o mérito”, sem dúvida.
Já se o país deixasse o SARS-CoV-2 rolar solto — sem distanciamento social, sem quarentenas, sem nada — o total de mortes, ao fim da pandemia, deveria ficar entre 1,08 milhão e 1,15 milhão. Com distanciamento social e quarentenas meia-boca, as estimativas variam de 450 mil a 900 mil mortes.
Por fim, em 8 de maio, o Imperial College publicou seu Relatório 21, esse sim, todo sobre o Brasil. O trabalho não projeta cenários futuros de número de mortes, mas tenta estimar os impactos das medidas tomadas pelos governos estaduais sobre a Rt. Essa é a taxa efetiva de transmissão do vírus, que é modulada pelo tipo e pela frequência das interações entre pessoas infectadas e não-infectadas. Quarentenas e lockdowns ocorrem exatamente para eliminar ou abreviar interações e, assim, achatar essa taxa. Uma Rt maior que 1 significa que a doença ainda está se espalhando de forma preocupante. A Alemanha decidiu relaxar o lockdown quando viu a Rt cair a 0,7.
“Os resultados apresentados aqui sugerem uma epidemia em andamento, na qual reduções substanciais do número médio de reprodução foram obtidas por meios não-farmacêuticos”, diz o texto. “No entanto, os resultados também mostram que, até agora, as mudanças em mobilidade não foram rigorosas e bastante para reduzir o número de reprodução abaixo de 1”.
Incertezas
Prever os rumos de uma pandemia já seria difícil se as características do vírus fossem bem conhecidas de antemão. Um complicador inevitável é que a doença responde à ação humana — as interações entre suscetíveis e contaminados, os deslocamentos humanos, os hábitos de higiene, os protocolos médicos.
É como um jogo, em que os movimentos do oponente acontecem em resposta aos nossos. Com o agravante de que os nossos movimentos e suas consequências, entendidos como a soma e os efeitos das atitudes individuais, coletivas e seus impactos na sociedade, também não são claros nem mesmo para nós.
Isso é totalmente diferente, por exemplo, do processo de enviar uma sonda à Lua: conhecidas as posições relativas do Sol, da Terra e da Lua num momento qualquer do passado, e as leis da Física, é possível projetar um foguete e prever, com exatidão, onde nossa nave vai pousar em qualquer momento do futuro, salvo alguma catástrofe altamente improvável. No caso da pandemia, o conhecimento das condições do passado nunca é perfeito e, mesmo se fosse, apenas sugeriria, mas sem determinar, o rumo futuro.
Com um patógeno novo, as incertezas multiplicam-se. A resposta do sistema imune humano ao SARS-CoV-2, por exemplo, está cheia de surpresas. Novas informações, como as evidências, que vêm se acumulando, de que o uso de máscaras pode oferecer proteção mensurável contra a COVID-19, eram desconhecidas quando as projeções dos relatórios 9, 12 e 21 do Imperial College foram feitas.
É mesmo concebível, provável até, que as projeções fossem por demais pessimistas. Mas se isso vale para o pior cenário — um máximo de 1,15 milhão de mortes — então, também vale para o melhor, de um mínimo de 44,2 mil mortes.
Vamos pensar um pouco nisso: se o Imperial College estava certo em 26 de março, o Brasil já perdeu a chance de salvar pelo menos 50 mil vidas. Se estava errado, se mesmo a previsão mais otimista do grupo britânico era, na verdade, “alarmista”, a oportunidade perdida, e a culpa de quem a deixou passar, é inconcebivelmente maior.
Carlos Orsi é jornalista, editor-chefe da Revista Questão de Ciência e coautor do livro "Ciência no Cotidiano" (Editora Contexto)