Ceci n’est pas un fait (“Isto não é um fato”)
A epígrafe do artigo é um trocadilho com o título de uma famosa pintura do surrealista belga René Magritte (1898-1967). Em A Traição das Imagens, aparece em primeiro plano um grande cachimbo (pipe) nas tonalidades marrom e preto e logo abaixo com letras em itálico a frase “isto não é um cachimbo” (Ceci n’est pas une pipe). A reação de quem vê o quadro pela primeira vez é, normalmente, de espanto, dúvida ou, até mesmo, de indignação. “Mas como assim não é um cachimbo?”. Somos obrigados a nos questionar frente à negação de uma aparente obviedade.
O que se busca com este artigo é provocar uma inquietação semelhante quanto à natureza de algo que somos levados a presumir como “fato óbvio”. Mais especificamente, os “dados objetivos” que entram nas análises de custo-benefício.
A análise de custo-benefício ou cost-benefit analysis (CBA), em sua versão original, é um método econômico que auxilia no processo de tomada de decisão, tornando-o mais racional e parametrizado. Expressa todos os custos e benefícios relevantes para a decisão em termos monetários a fim de quantifica-los para posterior análise. A sua origem prática remonta à década de 30 nos EUA, com a publicação do Flood Control Act, e teórica aos desenvolvimentos da escola econômica sobre o welfare State.
A reiterada referência ao mercado, nesse tipo de análise, representa menos uma obsessão pelo campo econômico no âmbito privado e mais uma tentativa de quantificar a importância que pessoas dão a certos itens ou valores a partir da “vontade de pagar” (willingness to pay). A fim de quantificar preferências, pede-se às pessoas que ponham um “preço” em cada uma delas.
Neste momento já é possível apontar alguns aspectos que devem ficar sob suspeita. O primeiro deles, trazido por parte dos autores que escrevem sobre a CBA[i], refere-se à vagueza mesma do conceito de “benefício”. Seriam esses benefícios necessariamente monetários, ou os de ordem não-econômica, como um ganho de bem-estar ou na sensação de felicidade[ii], também entrariam no cálculo?
Podem-se questionar, ainda, os efeitos que o mercado e a economia geram na disposição individual de pagar. Indivíduos com menor poder aquisitivo talvez expressem uma vontade de pagar menor do que os mais ricos, ainda que a questão fosse mais “cara” aos primeiros. O próprio preço em questão, utilizado como parâmetro da análise, pode ser posteriormente afetado pela política regulatória que fará uso da CBA.
O processo de coleta desses dados também pode ser questionado. Há dois métodos gerais que podem ser empregados: a preferência declarada, que faz uso de surveys[iii], ou a preferência revelada, a qual se faz uso de inferências a partir do comportamento real observado. Mas os questionamentos continuam. Como os formulários foram feitos, nos casos de preferência declarada? A quais indivíduos aplicá-lo? Como traduzir questões não-econômicas – por vezes até mesmo morais – em termos monetários? Como se daria a realização desses inputs de dados coletados? E, além disso, como interpretá-los? Os dados não são tão dados assim, requerem certo nível de interpretação e atribuição de valores.
Parto agora para outra série de problematizações, em especial sobre o grau de incerteza das consequências a qual a CBA está vinculada, qual seja, o dispêndio de recursos (monetários, humanos e de tempo) empregados no processo decisório e o risco de capturas. Acompanhe a seguinte história.
Imagine-se em uma situação na qual você tem algumas opções de escolha, mas que não haja completa certeza sobre as consequências futuras dessa decisão, ou até mesmo se ela será viável em um futuro próximo. Você é uma pessoa cautelosa e decide estabelecer todos os pontos positivos e negativos de cada possibilidade. Ao sistematizar os elementos que estão à sua disposição – obviamente não todos os que realmente existem, por uma questão de limitação racional –, você conseguiu estabelecer uma opção prioritária, qual seja, aquela que apresenta mais e, de certo modo, os melhores pontos positivos. Infelizmente, esta opção não é ideal. Ela tem um ponto negativo.
Tudo bem, você é otimista e resolve comparar esse único ponto ruim com os outros pontos positivos. No decorrer dessa comparação, duas características ficam evidentes. A primeira, de que esses “pontos” não falam por si sós, há uma atribuição (valorativa) de peso a cada um deles. A segunda, de que esse processo de tomada de decisão está demorando muito. Neste momento, você se dá três opções: abre mão do processo decisório racional e resolve jogar a moeda – “vai na sorte” -; decide não decidir; ou, ainda, toma consciência que sua subjetividade impõe um viés e decide convidar pessoas distintas, que pensam diferente de você, para ajudar.
A análise de custo-benefício, ao menos no Direito, está vinculada à visão consequencialista na tomada de decisão realizadas por juízes e gestores públicos. Ocorre que em boa parte das vezes, o tomador de decisão ou refuta por completo esta visão, chamando-a de “futurologia”, ou faz uso dela de forma deturpada, selecionando as consequências conforme melhor lhe aprouver. Há um olhar mecanicista sobre a realidade social, política e econômica, como se fosse um conjunto de causas e efeitos lineares. Mesmo que o tomador de decisão conceba a realidade como algo dinâmico e que, necessariamente, haverá consequências imprevistas ou indesejáveis, sempre restará um grau de incerteza. As consequências previstas podem não ser as consequências reais, ou as consequências secundárias danosas podem passar despercebidas até que seja tarde demais.
A despeito de todas essas limitações, a CBA, caso empregada com seriedade, traz, de fato, maior racionalidade e sistematização à tomada de decisão. Isso quer dizer, então, que deverá sempre ser utilizada em todo e qualquer processo decisório? Idealmente, a resposta seria sim. No entanto, esse ferramental consome recursos. Exige tempo, e a CBA pode acabar se prolongando mais do que o desejado. Exige, ainda, a participação de pessoas capacitadas (experts) em diferentes setores para a concretização das tarefas propostas, o que demanda o emprego de diferentes tecnologias e recursos financeiros.
Ao final de nossa história, a personagem se depara com a alternativa de conversar com outra pessoa para auxiliá-la na escolha. Essa escolha pode ser vista como representando o conjunto dos tomadores de decisão e seus auxiliares técnicos ou, ainda, à prática das consultas e audiências públicas. Uma composição plural, com pessoas que partem de diferentes concepções, é útil para evitar o risco de captura epistêmica[iv].
Críticos da realização de consultas públicas apontam para um outro tipo de captura que pode ser feita por empresas ou outros grupos com força econômica, a captura política. De todo modo, essas duas formas de captura apontam para um mesmo ponto de convergência: as instituições e seus agentes podem não ser tão neutros como somos levados a crer.
A análise de custo-benefício é louvada como um processo objetivo que dá pouca margem a subjetivismos, valorações idiossincráticas e construções de cunho voluntarista. Se realizada como previsto pelos melhores autores que a propõem, é realmente um limite aos arbítrios voluntaristas do tomador de decisão. Quanto às questões da objetividade e dos valores, defendemos uma posição um pouco mais cética. A objetividade nas ciências humanas é um fim a ser almejado, não algo previamente dado.
O estado de confusão que chegamos ao nos depararmos com o “absurdo” da negação do óbvio acaba se tornando um pouco menos estranho. Vamos naturalizando que a palavra pipe pode não corresponder ao objeto pipe. Mas isso no mundo da arte. Uma análise que propõe ser de custo-benefício tem de corresponder a uma análise que seja de facto de custo-benefício. Palavra e coisa não podem estar apartados. Não se pode usar de forma retórica a expressão “custo-benefício” a fim de gerar ares de racionalidade, quando o que se faz é exatamente o oposto.
A naturalização de falhas epistemológicas não nos leva, com toda certeza, a bons resultados. O primeiro passo é tomar consciência que essas falhas existem.
Frederico Augusto Auad é bacharel em Ciências Sociais e graduando em Direito (UFRJ). Pesquisador. Estagiário no UERJ Reg.
REFERÊNCIAS
[i] PEARCE, David William. Cost-Benefit Analysis. The Macmillan Press LTD, Second Edition, 1983, p. 15.
[ii] POSNER, Eric A.; SUNSTEIN, Cass. Moral Commitments in Cost-Benefit Analysis. Public Law and Legal Theory Working Paper n. 620, 2017, p. 1-28.
[iii] Pesquisas que possuem como metodologia a consulta direta por pessoas através de um formulário fechado.
[iv] SUNSTEIN, Cass. OIRA and the Public. The Regulatory Review, September, 12, 2013. Disponível em: https://www.theregreview.org/2013/09/12/12-sunstein-oira-and-public/ (Última visualização em: 25/06/2020).