A psicanálise e o infindável ciclo pseudocientífico da confirmação

Artigo
25 jun 2020
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Psicanálise. Imagino que o nobre leitor forme uma representação ou imagem mental quando esta palavra é apresentada. É provável que você já tenha assistido ou lido, em algum veículo de comunicação, uma reportagem em que um profissional, autointitulado psicanalista, é o especialista consultado para tratar de algum assunto. Quem sabe, em sua experiência pessoal, já tenha se analisado com um psicanalista, ou conheça algum parente ou pessoa próxima que o tenha feito.

No imaginário popular, profissionais de minha área de formação, Psicologia, são frequentemente confundidos com psicanalistas, e não é incomum que as pessoas imaginem que no consultório do psicólogo clínico, que trabalha com atendimentos individualizados, a principal peça do mobiliário seja o divã, aquele sofá indissociavelmente vinculado à representação coletiva da psicanálise. Não se confunda: o aspecto mais importante que a Psicologia partilha com a psicanálise é a história.

A psicanálise tem enorme apelo popular, contando com espaço de interlocução significativo em diversos setores da sociedade, como nas artes e na educação, e ainda possui, também, espaço dentro das instituições científicas. Todas essas inserções imprimem à psicanálise diversas características, dentre as quais a ideia de que seja uma abordagem científica a respeito da mente humana.

Essa ideia é reforçada pela presença da psicanálise em diversos departamentos de universidades, ainda que o processo de formação psicanalítica ocorra fora das instituições científicas e universitárias, nos institutos de psicanálise espalhados pelo mundo afora.

Mas a psicanálise é ciência? Seria relevante responder a essa pergunta? As respostas diretas a essas duas perguntas são, respectivamente: não e sim.

Agora, explico minhas respostas. A psicanálise, com sua estrutura de concepção sobre a mente humana, bem como o conjunto de desdobramentos do pensamento que nasceu da psicanálise, o que genericamente é nomeado de abordagens psicodinâmicas, partilham do caráter não-científico dessa perspectiva de compreensão.

Já, ao menos, na década de 1940 o filósofo Karl Popper, o nome mais importante da filosofia da ciência no século 20 e o sistematizador da ideia de falseacionismo, fundamental para demarcar o que é e o que não é ciência, utilizava a psicanálise como exemplo de conhecimento infalseável e, portanto, não científico. Ou seja, essa classificação da psicanálise como não-ciência não é recente. A característica de ausência de atitude falseacionista continua sendo replicada pelos psicanalistas na atualidade.

Basta abrir qualquer revista “científica” que publique artigos psicanalíticos que fica evidente o esforço confirmatório que a maioria dessas produções possui, seja pela maneira como os objetivos de pesquisa são estruturados, pelo emprego de métodos de investigação incapazes de produzir evidências de "desconfirmação" ou, o que é mais frequente, pela combinação das duas estratégias.

O espírito básico do pensamento científico é a busca de formas novas e mais acuradas de compreensão da realidade, o que demanda o contínuo trabalho de confronto entre ideias, evidências e fatos na busca de meios para testar nossas ideias e determinar se são falsas, indo aonde as evidências levem, promovendo espaço para melhoria do entendimento e para o avanço tecnológico.

A ação do pensamento psicanalítico é justamente o contrário, pois não abre espaço para testar concepções, muito menos para a produção de evidências empíricas que permitam concluir que as afirmações da doutrina foram falseadas. Do ponto de vista do desenvolvimento das ciências cognitivas e comportamentais ao longo do século 20, e especialmente após a revolução neurocientífica da década de 1990, é fato que a ciência reviu basicamente tudo o que se acreditava saber sobre mente, cérebro e comportamento. Aquilo que se sabia na época em que Freud postulou as bases do modelo psicodinâmico, no final do século 19 e princípio do século 20, é muito diferente do que sabemos hoje, graças ao avanço gradual e sequencial do conhecimento científico, calcado no pensamento falseável da psicologia e das neurociências.

Talvez o maior problema do movimento psicanalítico seja o autoalijamento do pensamento científico, ao longo desse mais de um século de história, ficando cada vez mais marginal à ciência. A concepção proposta pelo modelo psicodinâmico de Freud e seus discípulos, relevante para alguns segmentos da sociedade no princípio do século 20, perdeu seu sentido científico de existência nas últimas décadas, a não ser pelo valor histórico, como parte da evolução do estudo moderno do comportamento humano.

Mas porque seria relevante classificar e diferenciar ciência de psicanálise? Ao longo do século 20, alguns pensadores psicanalistas defenderam a ideia de que não seria necessário classificar a psicanálise como ciência, ainda que Freud tenha esposado essa necessidade em diferentes textos. Tentativas históricas de classificação da psicanálise como ciência, algo defendido por seu pai fundador, e a ampla vinculação dessa perspectiva a instituições científicas sempre fecundaram, no imaginário popular, uma concepção científica da psicanálise. E isso ainda perdura.

Quando, por exemplo, boa parte da população associa a psicologia diretamente à psicanálise, então há consequências relevantes na classificação implícita feita, de que psicanálise se trata de ciência. Como lembrava o saudoso Carl Sagan, a ciência desperta um sentimento sublime de admiração, bem como a pseudociência.

Tendo em vista o baixo grau de compreensão pública de como opera o pensamento científico em nossa população, os efeitos de práticas e pensamento pseudocientíficos são amplamente difundidos. Quando a psicanálise ocupa nichos e espaços na sociedade, então torna-se relevante responder à segunda pergunta desse texto.

Muito temos discutido, inclusive aqui na Revista Questão de Ciência, sobre o impacto social do emprego de práticas pseudocientíficas nas mais diversas áreas das atividades humanas. Por exemplo, todo o tipo de escolha sobre estratégia terapêutica, visando a prevenção ou o tratamento da saúde, deve ser baseado em evidências. Isso vale para a homeopatia, cromoterapia e as tantas outras práticas pseudocientíficas que ganham os “simpáticos” qualificativos de complementares e integrativas. Na verdade, esses qualificativos escamoteiam o fato científico relevante de que tais práticas não possuem evidência empírica favorável de eficácia.

O mesmo raciocínio deve ser aplicado à psicanálise. A população deve ser informada de que, quando alguém opta por uma psicoterapia com essas características, a opção feita é por algo que não tem evidências de efetividade a apresentar.

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A presença de evidências científicas, metodologicamente robustas e favoráveis ao funcionamento de uma prática, infelizmente, nunca foi condição necessária para o seu sucesso de público. Mas uma coisa que caracteriza essas práticas é sua constante tentativa de parecerem científicas, com discursos e formas de organização social que mimetizam as formas e aparências da ciência, em busca daquele “sublime sentimento de admiração”. A psicanálise não é diferente, com suas associações locais, nacionais e internacionais, revistas e outras estratégias para manter sua comunidade mimetizando comunidades científicas.

No caso da psicanálise, inclusive, há um processo de formação que envolve milhares de pessoas e muitos milhões de reais anualmente, perfazendo um enorme mercado. Como toda prática pseudocientífica, especialmente na área de saúde e adjacências, existe um ávido público consumidor que alimenta a cadeia, incentivando a entrada de novos profissionais e a ampliação do mercado.

Ronaldo Pilati é doutor em Psicologia, professor do Instituto de Psicologia da Universidade de Brasília (UnB). Autor do livro “Ciência e Pseudociência: Por que acreditamos apenas naquilo em que queremos acreditar.” As opiniões expressas neste artigo são pessoais do autor e não representam a visão oficial da SBP.

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