STF precisa definir melhor o que entende por “consenso científico”

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30 mai 2020
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xilogravura século 16

 

O Supremo Tribunal Federal decidiu recentemente que o agente público que basear sua escolha política em consenso de entidade técnica ou científica, nacional ou internacionalmente reconhecida, não poderá ser responsabilizado por eventuais danos causados no contexto da pandemia da COVID-19. A decisão ocorreu no julgamento cautelar de sete ações diretas de inconstitucionalidade que contestam a Medida Provisória 966/2020.

A MP 966/2020 foi editada pelo presidente Jair Bolsonaro em 13 de maio, e teve como objetivo regulamentar a responsabilidade civil e administrativa de agentes públicos por atos e omissões no contexto da pandemia. Resumidamente, a MP estabeleceu que não basta a verificação do nexo de causalidade entre a ação (ou omissão) e o dano daí decorrente. É preciso que se prove que o agente público tenha agido ou deixado de agir com dolo ou com base em “erro grosseiro”. Além disso, caso a decisão do agente público tenha se baseado em opinião técnica, sua responsabilidade também dependerá da existência de “elementos suficientes” para aferir o dolo ou erro grosseiro por parte do técnico ou cientista que subscreveu a opinião; ou então, quando se provar a existência de conluio entre técnico e agente.

A MP 966/2020 deu o que falar. Muitos sustentaram a tese de que se tratava de um salvo-conduto para o próprio presidente Bolsonaro, uma vez que suas decisões relativas à pandemia nas áreas da saúde e da economia contrariavam as evidências e os estudos científicos. A verdade, porém, é que a MP não inovou em nosso ordenamento jurídico; apenas reiterou a disposição do artigo 28 da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (LINDB), cuja redação fora introduzida pela Lei 13.655/2018 e posteriormente regulamentada pelo Decreto 9.830/2019.

A única mudança real que a MP 966/2020 pode eventualmente trazer, caso venha a ser aprovada no Congresso, é atribuir status de lei a disposições regulamentadoras previamente instituídas por decreto. O conceito do erro grosseiro, por exemplo, está previsto na LINDB, mas toda a sua regulamentação foi feita por meio do Decreto 9.830/2019. Ainda, enquanto a LINDB aplicava o conceito de erro grosseiro a decisões ou opiniões técnicas do próprio agente público, o Decreto 9.830/2019 e agora a MP 966/2020 estendem a sua aplicação também para situações em que as decisões do agente público tenham sido baseadas em opiniões técnicas.

A decisão do Supremo foi celebrada por muitos juristas da área de Direito Administrativo, que se surpreenderam positivamente com o reconhecimento, por parte do STF, da relevância da nova redação dada ao artigo 28 da LINDB. Tal artigo foi pensado para coibir o voluntarismo dos controladores de agentes públicos e, dessa forma, aumentar a segurança jurídica dos gestores que atuam de boa-fé. A decisão também pode ser vista como uma vitória da ciência sobre o obscurantismo.

O voto do relator do caso, ministro Barroso, refletiu uma clara insatisfação com o negacionismo científico do presidente nos campos da saúde e da economia. Um dia antes da decisão, o Ministério da Saúde havia publicado um novo protocolo para o uso precoce da cloroquina e da hidroxicloroquina em pacientes com COVID-19; e, semanas antes, um decreto presidencial incluiu salões de beleza, barbearias e academias na lista de serviços essenciais.

Um olhar mais atento, contudo, aponta motivos para preocupação. O teste que o Supremo estipulou para verificar a existência de erro grosseiro do agente público pode não dar certo. O consenso emitido por entidade técnica ou científica reconhecida é, geralmente, um bom indicador de expertise para gestores e seus controladores cientificamente leigos. Mas o que justifica a deferência ao consenso não é a sua mera existência, e sim as condições de sua obtenção[i]. O acordo deve ter sido arduamente conquistado por meio de debates, contestações, trocas de argumentos e evidências entre experts.

Acreditamos no consenso formado por um grupo de experts porque acreditamos na qualidade do processo de deliberação. E não se pode ignorar os erros que costumam afetar a performance de grupos na busca por uma decisão consensual. Logo, consensos alcançados por entidades técnicas e científicas podem ser genuínos ou espúrios – mas como podemos saber? Em vez da aceitação acrítica do consenso de alguma entidade, por mais reconhecida que seja, o que se espera de agentes públicos e controladores responsáveis é a busca por elementos adicionais que o corroborem.

Não se trata de hipótese meramente acadêmica. O Parecer 04/2020 do Conselho Federal de Medicina (CFM), emitido em 16 de abril de 2020, propõe, dentre outras coisas, que o médico considere o uso da cloroquina e hidroxicloroquina em pacientes com sintomas leves, no início do quadro clínico, desde que informe o paciente a respeito dos riscos possíveis e da ausência de benefícios comprovados. Diante de uma eventual ação para se determinar a responsabilidade do presidente pelo novo protocolo do Ministério da Saúde, não seria absurda, ad argumentandum tantum (“para fim de argumento”), decisão de algum controlador que recorresse ao referido parecer do CFM para excluir a existência de erro grosseiro por parte dos técnicos do Ministério da Saúde que subscreveram o controvertido protocolo. Afinal, como afirmou o ministro Barroso, “consensos médicos e científicos são decisivos”.

Outro caso concreto que mostra como o critério do consenso pode não ser um bom indicador de confiabilidade epistêmica é a aprovação da homeopatia pelo CFM, e a recomendação do uso de terapias alternativas e tradicionais pela Organização Mundial da Saúde (OMS) – sendo esta uma das entidades renomadas citadas pelo Supremo. Em que condições o CFM sustenta a validade das evidências a favor da homeopatia? Houve espaço para debater os inúmeros estudos e consensos científicos contrários, de outras entidades nacional e internacionalmente reconhecidas? Por exemplo, causou alguma reação a extensa pesquisa divulgada em 2015 pelo Conselho de Saúde Nacional e Pesquisa Médica da Austrália, que afirmou que “a homeopatia não é um tratamento eficaz para qualquer condição de saúde”?

Novamente, de acordo com os parâmetros definidos pelo Supremo, um controlador poderia recorrer às recomendações do CFM e da OMS para justificar a inclusão da homeopatia na Política Nacional de Práticas Integrativas e Complementares do SUS; e, mais recentemente, a sua recomendação pelo Conselho Nacional de Saúde para uso no contexto de pandemia da COVID-19.

A busca por critérios de deferência epistêmica tem sido um dos temas mais debatidos na literatura sobre expertise e deliberação. A resposta a essa questão é urgente, pois vivemos uma verdadeira crise epistêmica da democracia: esperamos que politicas públicas sejam baseadas em evidência, mas carecemos dos meios para controlar o seu mérito. Precisamos de critérios de deferência à expertise que possam ser acessados não só pelos tomadores de decisão, agentes públicos e controladores, mas também por toda a população – legítima destinatária dos argumentos justificatórios de tais decisões.  

O Supremo poderia ter enfrentado uma série de perguntas importantes que servem como bons indicadores de expertise. Quais as credenciais do(s) expert(s) que sustentam tal opinião? Há alguma evidência de má-conduta acadêmica (como plágio ou fabricação, alteração ou omissão de dados ou resultados)? Existe alguma razão para acreditar que a opinião esteja enviesada, ou que haja conflito de interesse? Os pares podem atestar a expertise? A pesquisa realizada, ou na qual se baseia a opinião, foi publicada em periódico revisado por pares? O periódico em questão já foi classificado como predatório? A afirmação do expert é baseada em evidência? A opinião é consistente com o que outros experts da mesma área afirmam? Opiniões divergentes são enfrentadas? O que exatamente é afirmado pelo expert que justifica a decisão do agente público?

Precisamos discutir urgentemente sobre os bons indicadores de expertise – elementos de segunda-ordem que não envolveriam uma consideração do conteúdo do que é dito por um expert ou por uma entidade científica – capazes de evitar o erro grosseiro de tomadores de decisão cientificamente leigos[ii].

A discussão sobre a confiabilidade e implementação de cada um dos critérios acima é complexa demais para este breve artigo (cf. aqui e aqui). De toda sorte, a crítica que se deve fazer à decisão do Supremo é a suposição de que a suficiência para aferir o erro grosseiro possa ser pensada de forma atomística, como se um único elemento pudesse cumprir esta função probatória. O Supremo deveria ter avançado na estipulação de um conjunto de indicadores de expertise cuja maior satisfação fortaleceria a decisão dos agentes públicos, e o posterior julgamento por parte de seus controladores, a respeito da ocorrência ou não de erro grosseiro.

Hoje, mais do que antes, agentes públicos e controladores de todo o país, nas esferas administrativa e judicial, são obrigados a decidir a respeito da validade de políticas públicas baseadas em evidência. Contudo, o critério do consenso estipulado no presente julgamento não deve ser dito como suficiente. Enfrentar esta questão é fundamental para que possamos conciliar o papel dos experts na orientação de políticas públicas com a possibilidade de um escrutínio público exercido de maneira objetiva e epistemicamente confiável.

 

Rachel Herdy é Professora da Faculdade Nacional de Direito da Universidade Federal do Rio de Janeiro e lidera o Grupo de Pesquisa sobre Epistemologia Aplicada aos Tribunais (GREAT)

 

NOTAS

 

[i] Moore, Alfred. Critical Elitism: Deliberation, Democracy, and the Problem of Expertise. Cambridge: Cambridge University Press, 2017 (v. cap. 6).

[ii] Herdy, Rachel. “Appeals to Expert Opinion in High Courts”. In de Brito, Miguel Nogueira et al. (orgs.). The Role of Legal Argumentation and Human Dignity in Constitutional Courts. 1ed. Stuttgart: Franz Steiner Verlag, 2019, v. 1, p. 23-46; Herdy, Rachel. “Ni educación, ni deferencial ciega”. In Revista Discusiones, 2020 (no prelo).

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