As teorias conspiratórias da COVID-19 ganham sua musa

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11 mai 2020
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plandemic

Nos últimos dias, vários amigos me enviaram um vídeo chamado Plandemic, que faz o papel de trailer de um documentário ainda a ser lançado e de peça de promoção de um livro da ex-pesquisadora Judy Mikovits, uma estrela em ascensão na bolha "antivaxx", os mais aguerridos negacionsitas dos benefícios das vacinas. Bastam dois intermináveis minutos para ver que se trata de mais uma teoria conspiratória, repleta de absurdos. O vídeo, visto por mais de oito milhões de pessoas, foi removido diversas vezes pelas plataformas do YouTube e do Facebook por conter informações falsas e perigosas para o combate à pandemia, mas continua pipocando nas redes socais, inclusive com legendas em português. O livro de Mikovits, "Plague of Corruption", encabeça a lista dos mais vendidos da Amazon, e ela já se tornou a mais nova queridinha das publicações da extrema-direita norte-americana.  

No trailer de 26 minutos, Judy Mikovits é entrevistada pelo cineasta, ex-ator e ex-modelo Mikki Willis, que em seu canal do YouTube dissemina diversas teorias de conspiração. Willis apresenta Mikovits como “uma das mais destacadas cientistas de sua geração”, embora ninguém tenha ouvido falar dela até poucas semanas atrás, e ouve, sem questionar, uma infinidade de estultices, entre elas a de que a COVID-19 não precisa de vacina e pode ser tratada por “métodos naturais” – entre eles, claro, a hidroxicloroquina –, que as vacinas contra gripe de 2013 a 2015 tinham uma “falha” que tornou as pessoas suscetíveis à nova doença, que o uso de máscaras é perigoso porque “ativa o vírus” e que o isolamento social é perigosíssimo porque reduz a exposição a micróbios e, consequentemente, a capacidade de reação do sistema imune. Nenhuma dessas afirmações é baseada em fatos.

Mikovits afirma, ainda, que uma futura vacina só vai servir para enriquecer Bill Gates e o imunologista Anthony Fauci, 79 anos, chefe do Instituto Nacional de Alergias e Doenças infecciosas (Niaid), um dos institutos que compõem o National Institutes of Health (NIH), e que integra a equipe de consultores de Donald Trump para a COVID-19. De acordo com ela, ambos têm uma vacina prontinha, para vender a peso de ouro. Como é de rigueur em toda teoria da conspiração envolvendo biologia e os supostos benefícios de produtos "naturais", há a obrigatória citação pejorativa à Monsanto.

 

Fauci como vilão

É Fauci, porém, que Judy Mikovits elege como oponente, responsabilizando-o por sua demissão e pelo fato de ter caído em desgraça na comunidade científica. Sob o olhar bovino do entrevistador, que tenta simular choque diante das “revelações”, a ex-pesquisadora desfia bravatas, entre elas a exigência de que toda equipe de saúde que assessora Donald Trump seja demitida; ela se declara a principal consultora do presidente americano. Mikovits se vale, é claro, da ausência de Fauci, recolhido em autoisolamento desde que dois assessores da Casa Branca, próximos ao presidente, testaram positivo para a COVID-19. Ao comentar o vídeo, David Gorski, cirurgião oncológico, editor do site Science-Based Medicine e crítico feroz e ferino da medicina alternativa e do movimento antivaxx, afirmou que “a quantidade de absurdos, desinformação, informação deturpada e baboseira conspiratória presente nas respostas de Mikovits é realmente épica”.

No vídeo, Judy Mikovits conta uma triste história em que pinta a si mesma como vítima de perseguição. Ela teria sido simplesmente a descobridora do HIV, não fossem Fauci (ele de novo...), Robert Gallo, pioneiro da Aids, e Robert Redfield, atual diretor do Centers for Disease Control and Prevention (CDC) terem se apropriado de suas pesquisas para “ganhar milhões em patentes”, ameaçando-a e recebendo todo crédito pelos avanços no tratamento contra o HIV.

“Não tenho a menor ideia sobre o que ela está falando”, afirmou Fauci, que nega conhecer Mikovits, que na época era estudante no Instituto Nacional do Câncer, enquanto Fauci já era diretor do Instituto Nacional de Alergias e Doenças Infecciosas.

Em 2018, segundo The New York Times, Mikovits chegou a dizer que Fauci, por email, “a ameaçou de prisão se visitasse os NIH para participar de estudo que comprovasse sua pesquisa sobre síndrome da fadiga crônica”.

“Não tenho a menor ideia sobre o que ela está falando”, reafirmou Fauci. “Posso afirmar categoricamente que jamais enviei esse email. Eu jamais diria num email que uma pessoa seria imediatamente presa se pusesse os pés em propriedade do NIH”, declarou ele ao Snopes, site de checagem de fatos, que atualizou a história agora.

 

A musa da conspiração

Mikovits é formada em Biologia pela Universidade da Virginia e é Ph.D em biologia molecular pela Universidade George Washington, tendo trabalhado como pós-doc no Instituto Nacional do Câncer dos EUA de 1992 a 2001, e em seguida com pesquisadora e chefe de laboratório, até ser contratada como diretora de pesquisa do Whittemore Peterson Institute for Neuro-Immune Disease de 2006 a 2011, quando caiu em desgraça.

Em 2009, ela e outros 13 pesquisadores tinham publicado um estudo na Science associando um retrovírus de camundongo, o vírus xenotrópico associado ao vírus da leucemia murina (XMRV), à síndrome da fadiga crônica e outras doenças humanas, pesquisa que despertou interesse na mídia. Nenhum outro grupo de pesquisa, porém, conseguiu reproduzir os resultados e a publicação foi retirada pelos autores, o que é pouco comum. Na época, a própria Science escreveu: “Vários laboratórios, incluindo os dos autores, não conseguiram detectar de forma confiável” o vírus murino em pacientes humanos. “Além disso, há evidências de controle de qualidade ruim em vários dos experimentos”.

Por causa disso, Judy Mikovits foi demitida do Whittemore Peterson Institute, que a acusou de roubo de dados e de equipamentos, incluindo um computador. A pesquisadora foi presa e, apesar de um colega ter admitido que furtou os equipamentos a pedido dela, o caso foi arquivado e ela, libertada, caindo num solene anonimato. Até o aparecimento desse trailer.

 

Mais alegações

Entre outras pérolas, Judy Mikovits afirma que, em 1999, trabalhou no United States Army Medical Research Institute of Infectious Disease (USAMRIID) em Fort Detrick, Maryland, “ensinando o ebola a infectar células humanas sem matá-las. O ebola não infectava células humanas até que as ensinamos”, afirma a delirante pesquisadora, omitindo o fato de que o primeiro surto de ebola registrado ocorreu 23 anos antes, em 1976.

A Science deu-se o trabalho de desmontar todas as falas absurdas de Judy Mikovits num fact-checking detalhado, inclusive a parte em que ela afirma ser absurdo proibir as idas à praia durante a pandemia de COVID-19 “porque há sequências no solo, na areia. Há micróbios com poder de cura no oceano, na água salgada”... O esclarecimento da revista, seco e objetivo, produz um efeito de humor involuntário: "Não está claro o que Mikovits quer dizer com 'sequências' do solo ou da areia. Não há evidência de que micróbios no oceano possam curar pacientes de COVID-19". 

Até fevereiro, ninguém tinha ouvido falar nessa senhora, nem sequer em redes sociais. Em abril, segundo dados do Zignal Labs, as referências a ela saltaram a 800 por dia e, então, Darla Shine, esposa de Bill Shine, ex-executivo da Fox News e ex-assessor de Donald Trump, promoveu o livro de Mikovits no seu Twitter. Ela passou a ser entrevistada em mídias de extrema-direita e virou celebridade. Da pior espécie: aquela que põe seu público em risco.

Ruth Helena Bellinghini é jornalista, especializada em ciências e saúde e editora-assistente da Revista Questão de Ciência. Foi bolsista do Marine Biological Lab (Mass., EUA) na área de Embriologia e Knight Fellow (2002-2003) do Massachusetts Institute of Technology (MIT), onde seguiu programas nas áreas de Genética,  Bioquímica e Câncer, entre outros

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