Um dos motivos dos distúrbios emocionais crescentes na população, causados pela pandemia de coronavírus, além do confinamento, é a loucura que invade a consciência quando se pensa o Brasil. Um exemplo desta dissonância é a contradição que se vive quando se considera: (a) o que este país está fazendo com a vacina da influenza e (b) o que algumas autoridades e influenciadores andam falando, e tentando fazer, sobre a pandemia de COVID-19.
O Instituto Butantan deve manufaturar este ano cerca de 75 milhões de doses de vacina de gripe. A fabricação de uma dose da vacina contra o vírus influenza requer a inoculação do vírus em um ovo de galinha, em um processo de fabricação extremamente delicado, precedido pela preparação, em segurança absoluta, de uma quantidade apreciável de quatro cepas de vírus que serão injetadas nos ovos. A purificação e inativação posterior dos vírus, o descarte seguro do material e o envase de cada dose constituem processos industriais dominados por poucos países do mundo. Este feito é pouco conhecido, pouco apreciado e ignorado por uma parte enorme da população brasileira.
Esta vacina é sensível à temperatura, mas não pode ser congelada. Perde eficiência se for congelada ,ou se permanecer por mais de alguns minutos acima de 8oC. Depois de fabricar e envasar, esta vacina deve, portanto, permanecer entre 1oC e 8 oC até ser ministrada. Dito isto, a vacina tem que ser ministrada a populações que residem no Brasil, um país continental, onde brasileir@s residem em megalópoles como São Paulo, ou em remotas regiões amazônicas, onde o único meio de transporte são embarcações frágeis, chamadas voadeiras. Um outro ponto a considerar é custo internacional da dose.
Dados recentes do CDC revelam que o preço internacional de cada dose de vacina flutua entre US$ 12,5 e US$ 32,5, dependendo do fabricante. Não pretendo calcular o custo de vacinar mais de 100 milhões de brasileiros, pois me escapa o cálculo do investimento logístico para chegar aos cidadãos. Pois bem, o Sistema Único de Saúde (SUS) faz isto SEM CUSTO para todos os brasileiros. E não é só. Como idoso que sou, cheguei tarde, pelas 11h da manhã, ao estacionamento do Shopping Raposo, onde, sem demora, fui vacinado junto com a minha esposa, sem a necessidade de estender o braço para fora da janela do carro.
Todo este processo, desde a fabricação da vacina, a logística que se estende desde as grandes cidades até os mais remotos cantos deste país, mantendo a cadeia do resfriamento que garante a estabilidade da vacina, o belíssimo treinamento de quem aplica a vacina, enfim o espetacular avanço tecnológico, logístico e social deste país, é garantido pela existência do SUS. Este feito tem uma história que não cabe aqui e deve, algum dia, ser contada. Mas qualquer resumo incluiria os experimentos longínquos com a virologia nas universidades e nos institutos de pesquisa, a formação de virologistas e engenheiros nas universidades públicas paulistas, os primeiros trabalhos sobre gripe aviária publicados por pesquisadores do Butantan, e a transferência de tecnologia de produção da vacina da gripe da multinacional francesa Sanofi.
Em paralelo, a formação de especialistas nas faculdades de Saúde Pública, Sociologia, Urbanismo e Política, a criação do SUS, as criações e publicações em logística de cadeias de frio e a sábia decisão política de vacinar gratuitamente a população. Este longo processo, onde ciência básica e aplicada, tecnologia e engenharia, sociologia e política operam juntas com um objetivo claro, evitar a morte de qualquer brasileiro pelo vírus influenza, é sem exagero algum um exemplo para o mundo.
Hoje, confrontados com a pandemia causada pelo vírus SARS-CoV-2, alguns governantes, articulistas, uma miríade de influenciadores e uma manada de youtubers esquecem tudo o que se sabe, isto é, que ciência, técnica e o SUS podem oferecer regras racionais e salvar vidas. A legião dos que tentam convencer a população que, no meio de um avanço exponencial do número de casos e mortes por coronavírus, seria conveniente relaxar as medidas de isolamento social é estimulada pelo presidente Bolsonaro e seu assim chamado “gabinete do ódio”.
A contraposição às sandices que se vê ou se lê em posts e vídeos no WhatsApp, Youtube, Instagram ou Twitter é uma tarefa que requer profissionais, estrutura e investimento. Prefiro referir-me a um exemplo que, por estar ao menos bem escrito, exemplifica a forma com que se distorce, se mente e se tenta influenciar. Um jornalista escreveu recentemente que “A ciência já mostrou que o vírus representa maior risco para pessoas com comorbidades e aos idosos.” Procurou mostrar também que Covid-19 “não é ameaça para população economicamente ativa, e que se os cuidados de higiene forem tomados, a população não precisa deixar de trabalhar, pode retornar lentamente aos seus postos evitando uma catástrofe ainda maior.”
Tais afirmações são mentirosas, ou como se costuma dizer hoje, constituem um “fake” evidente. Como o autor não cita as fontes onde foi buscar a sustentação para as suas afirmações, posso esclarecer os pontos seguintes: (1) O COVID-19 representa risco para seres humanos de qualquer idade; (2) A maior parte dos internados em hospital está na faixa dos 18 a 40 anos; (3) Os doentes que apresentam hipertensão, diabetes, comprometimento pulmonar prévio, imuno-comprometimento ou são maiores de 60 anos têm uma probabilidade muito maior de morrer quando precisam ser internados; (4) Todos os pacientes internados que precisam ser entubados ficam na UTI, em média, 14 dias; (5) Os pacientes entubados que vão a óbito podem ficar na UTI mais de duas semanas antes de morrer [obs: os ítens (4) e (5) explicam porque as UTIs e os respiradores ficam ocupados tanto tempo]; 6) O Brasil se encontra, como muitos outros países, numa fase de crescimento exponencial não controlado do número de pacientes, portanto o total de infectados e de mortes podem se multiplicar nas próximas semanas.
Todas estas afirmações podem ser conferidas em dados científicos, que por serem científicos, são públicos. Assim, retornar aos postos de trabalho numa fase de crescimento exponencial do contágio pode ser um ato suicida. Resumindo, a ciência não mostrou nada daquilo que o jornalista diz ser verdade.
A dissonância entre um país símbolo global, quando se trata de proteção a morte por influenza, e um país governado por um dos únicos líderes mundiais que continuam questionando os méritos das medidas de bloqueio social para combater a pandemia, contribui para que as neuroses dos que estão em quarentena só aumentem.
Hernan Chaimovich é professor Emérito do Instituto de Química da Universidade de São Paulo