Eu sabia que ia acontecer comigo, que sou idosa (60 anos), diabética e tenho outros probleminhas. Só não sabia quando. Não, não, que eu saiba, não contraí o SARS-Cov-2. Mas li alguns artigos em jornais europeus de pessoas que, como eu, sentem o sangue ferver (sem febre...) cada vez que o noticiário anuncia uma nova vítima com um “mas” subentendido. “Tinha 65 anos e era diabético”. “Tinha 88 anos e problemas cardíacos.” “Tinha 65 anos e doença respiratória.” Esta semana tivemos “o paciente tinha 27 anos, mas sofria de bronquite" e a enfermeira de 40 anos “portadora de diabetes”. É como se todas essas pessoas morressem não por causa do novo coronavírus, mas de suas doenças preexistentes, argumento, aliás, que anda na boca de negacionistas, para quem a pandemia não passa de exagero e invencionice da mídia – para não avançar no terreno fértil das mais variadas teorias conspiratórias.
E aí temos os mais descartáveis dos grupos populacionais: os idosos, no topo da lista das vítimas. Afinal, são um fardo, dão trabalho, não fazem nada e consomem os parcos recursos da previdência, mundo afora. Claro que fica fora desse raciocínio – se é que a estultice merece o nome – o fato de que idosos de várias faixas etárias estão por aí trabalhando, gerindo empresas, pagando impostos, fazendo cursos, aproveitando a vida, viajando, curtindo filhos, netos e a companhia dos amigos. Se são “velhinhos”, há quem os considere descartáveis.
Um desses idosos, Roberto Justus, 64 anos, viu um vídeo no YouTube, não entendeu muito bem e saiu comentando com um amigo que umas 7 mil mortes são irrelevantes. "Quem entende mesmo de estatística vê que os números são irrisórios. E quem morre mesmo são os velhinhos. E, mesmo dos velhinhos, só 10%, 15% deles morrem", disse o velhinho que fez as vezes de Donald Trump no Brasil, como apresentador de O Aprendiz. Não satisfeito, Justus deu entrevistas em que pronunciou pérolas como: “Eu nunca bebi álcool, nunca fumei cigarro. Eu sou esportista, tenho uma saúde boa, um pulmão bom, faço check-up todo ano, não tenho o menor risco de pegar o vírus e ir parar na UTI.” Não existe risco zero de pegar o vírus, pulmão bom o coronavírus pode detonar e, aos 64 anos, velhinho, seu sistema imune já não é o mesmo dos seus 20, 30 anos.
Claro que tem velhinho internacional que supera até mesmo os absurdos dos velhinhos brasileiros. Trata-se do vice-governador do Texas, Dan Patrick, republicano, que foi à Fox News – emissora preferida de Trump e seus seguidores – propor que os avôs (como ele, que tem 69 anos) se sacrifiquem – ou seja, morram – para legar o modo de vida americano aos netos. Dito de outro modo, a ideia é que todos abandonem a quarentena, voltem ao trabalho e que se danem os idosos e doentes crônicos, porque o importante é manter a economia saudável e, claro, garantir a reeleição de Donald Trump.
Velhinhos podem ser bem rebeldes quando se trata de convencê-los a ficar em casa. A feira aqui perto de casa, na última sexta-feira (20/03), estava praticamente vazia, exceto pelos idosos. No sábado, assim que o governador paulista João Dória anunciou que o comércio ia fechar e era para todo mundo ficar em casa, os supermercados lotaram e os idosos lá, com carrinhos cheios, em filas enormes.
Amigos com pais idosos têm cortado um dobrado para colocá-los na linha, impedir que encontrem amigos para um carteado ou um chopp. Uma amiga ficou aflita quando a mãe, funcionária pública com mais de 60, anunciou que iria para a repartição, mesmo tendo sido dispensada para trabalhar em home office. A gente que tem mais de 60 e alguma comorbidade (e quem não tem aos 60, ou mesmo antes disso?) acaba pensando o tempo todo que, se pegar Covid-19, vai ser caso gravíssimo e morrer.
Minha amiga Ana, que já passou dos 70 e é portadora de doença pulmonar obstrutiva crônica (DPOC), trancou-se em casa já há alguns dias, depois de última ida à farmácia. Como sente cansaço por causa da DPOC, só se queixou que andava mais cansada, com uma irritação de garganta que atribuiu ao tempo. O que incomodou mais foi que, de repente, foram-se o paladar e o olfato. A febrícola, 0,2°C acima da temperatura normal, também não preocupou. O leve mal-estar passou em cinco ou seis dias. Só agora a Ana ligou os pontos, ligou para o pneumologista, que acha muito provável que ela tenha tido COVID-19, e vai indicar teste rápido de sorologia, assim que os exames estiverem disponíveis.
No último domingo (22/03), amigo que ainda não é idoso, mas está longe de ser millenial, me telefona animado para contar que estava em casa fazendo churrasco para quatro amigos. Ainda por cima me mandou fotos das pessoas juntinhas, cabeças coladas e sorridentes posando para a câmera do celular. Tudo em que eu conseguia pensar era com quantas pessoas cada um deles tinha encontrado nos últimos dez dias, que poderiam ser assintomáticas ou ter sintomas leves. Um sujeito de 53 anos com mãe octogenária (que vive em outro local e está sossegada e isolada com seus videogames) deveria ter o que uma amiga chama de “senso de noção” e não se comportar como millenial.
Millenials são outro problema. Essa geração imediatista, adepta do prazer instantâneo, está deixando pais enlouquecidos porque, simplesmente, decidiu que a COVID-19 não é com eles. Não são idosos, não têm diabetes, asma, enfisema, problemas cardíacos e estão irritados e inquietos sem trabalho, sem academia, sem balada, sem o grupo de amigos. Se não podem ir para o bar, para a piscina do prédio, arrumam um jeito de se reunir na casa de algum amigo como se estivessem de férias, não numa quarentena. São saudáveis, só quem morre são os velhinhos, então, que se dane.
Só que não. Metade dos pacientes franceses em estado grave têm menos de 65 anos, metade dos internados no Rio de Janeiro com corona estão na faixa dos 30 a 39 anos e gente jovem, bonita e saudável também morre de COVID-19. Vírus tendem a ser democráticos: não escolhem classe social, cor, profissão ou idade. Também não leem atestado médico. Simplesmente infectam. E matam. Uns mais, outros menos, mas derrubam e, às vezes, matam. Está na hora de deixar isso claro enquanto contamos nossos mortos. O risco de contrair a forma grave da doença atravessa todas as idades e isso deveria bastar para por fim ao “morreu, mas...”
Ruth Helena Bellinghini é jornalista, especializada em ciências e saúde e editora-assistente da Revista Questão de Ciência. Foi bolsista do Marine Biological Lab (Mass., EUA) na área de Embriologia e Knight Fellow (2002-2003) do Massachusetts Institute of Technology (MIT), onde seguiu programas nas áreas de Genética, Bioquímica e Câncer, entre outros