Na psicologia, a imagem da criança diante de um marshmallow, resistindo à tentação de comê-lo, é canônica: se ela consegue ter força de vontade para resistir o bastante, é recompensada quando o pesquisador retorna com outro marshmallow. Com esse “teste do marshmallow”, o psicólogo austríaco Walter Mischel demonstrou que crianças capazes de resistir à gratificação imediata e esperar por um segundo marshmallow progridem para obter maiores realizações na vida. Elas se saem melhor na escola, têm notas mais altas no SAT [exame de competência acadêmica realizado com adolescentes nos Estados Unidos] e até mesmo administram melhor seu estresse.
Os estudos pioneiros de Mischel, primeiro em Stanford, na Califórnia, e mais tarde na Universidade de Colúmbia, em Nova York, tiveram um impacto profundo, tanto especializado quanto popular, sobre a compreensão da paciência, suas origens e seu papel em nossas vidas. A partir desses estudos dos anos 70 e 80, as pessoas passaram a acreditar que deveria haver alguma profunda característica individual, algum traço de personalidade, capaz de levar as crianças a realizações cada vez maiores ao longo da vida.
Mas, e se essa não fosse a conclusão correta desses estudos? E se a paciência, e talvez outras características da personalidade, não fosse resultado de quem somos, mas sim de onde estamos?
Quando tentam estudar a relação entre ambiente e características da personalidade, pesquisadores enfrentam dois grandes desafios. O primeiro é duvidar da tendência de ver traços de personalidade – padrões de comportamento que são estáveis ao longo do tempo – como partes de nossa identidade, são inevitáveis e que surgem de dentro de nós.
Embora as pessoas realmente sejam resultado da interação de seus genes com o ambiente (a resposta para a pergunta “é inato ou adquirido” é sempre sim), o trabalho do psicólogo Nick Haslam da Universidade de Melbourne e de outros pesquisadores mostra que as pessoas erram em direção ao inato (ou seja, natureza) e veem traços de personalidade como algo quase fixo. Em outras palavras, é mais provável você dizer que sua amiga Jane é uma pessoa paciente e sempre será, mesmo num ambiente onde ter paciência não é a melhor estratégia – por exemplo, numa situação de perigo em que o amanhã é incerto. Paciência, você poderá dizer, é algo que vem de dentro dela, não do mundo ao redor.
O outro desafio diz respeito a quem os psicólogos vêm estudando há um século. Embora acadêmicos tenham uma boa ideia sobre como certos traços se desenvolvem, esse conhecimento tem origem em estudos feitos com um subconjunto bem específico e peculiar de seres humanos, os que vivem em sociedades industrializadas. Como foi quantificado num estudo que hoje é referência chamado The Weirdest People in the World? (As Pessoas mais Esquisitas do Mundo?), o antropólogo Joseph Henrich e sua equipe da Universidade da Colúmbia Britânica mostraram que cerca de 96% das pessoas avaliadas em estudos psicológicos são de sociedades WEIRD (Western, Educated, Industrialized, Rich, and Democratic, ou seja, ocidentais, educadas, industrializadas, ricas e democráticas).
Esse viés é problemático por uma série de motivos. Em primeiro lugar, as pessoas dessas sociedades são um modelo ruim de ser humano médio, já que representam apenas 12% da população . Mas essa assimetria que favorece as sociedades industrializadas é problemática por outra razão: ela representa um ambiente que é fundamentalmente diferente daquele em que os seres humanos evoluíram.
Se o ambiente em que vivemos molda nossas personalidades, como podemos capturar esse importante processo? E aqui o método de Mischel estava correto: ele foi direto à infância, um dos períodos mais sensíveis e flexíveis do desenvolvimento da personalidade. Recentemente, meus colaboradores e eu fizemos exatamente isso, ao planejar um estudo focado em dois traços de interesse, o quanto uma pessoa é paciente é e o quanto tolera de incerteza. Levamos nossa pesquisa a quatro diferentes sociedades: Índia, Estados Unidos, Argentina e crianças shuaras, que vivem na região amazônica do Equador.
As comunidades shuaras que visitamos vivem em áreas remotas e só é possível acessá-las de canoa, pelo Rio Morona. Muitos dos shuaras que visitamos nessas áreas ainda preservam um estilo de vida tradicional, caçam, pescam mantêm hortas e, por enquanto, produtos industrializados não são essenciais para seu estilo de vida.
Usamos um teste semelhante ao do marshmallow de Mischel, oferecendo a crianças e jovens dos 4 aos 18 anos uma escolha entre um doce hoje ou mais doces, se estivessem dispostos a esperar outro dia. Para a incerteza, eles tinham de escolher entre uma sacola segura, que sempre continha um doce, ou uma de risco, em que apenas uma a cada seis continha mais doces.
Encontramos muitas variações, especialmente entre os shuaras e as crianças americanas, indianas e argentinas, que se comportavam de forma similar, tendendo a ser mais pacientes e mais tolerantes quanto à incerteza. Já os shuaras eram mais impacientes e muito cautelosos em relação a incertezas: raramente pegavam as sacolas de risco.
Em um estudo de seguimento no ano seguinte, analisamos apenas as comunidades shuaras e encontramos os mesmos padrões. Crianças shuaras que viviam perto de cidades agiam de forma mais semelhante às americanas do que as crianças shuaras da floresta. Algo sobre viver perto de cidades – e talvez algo a respeito da industrialização – parecia estar moldando o comportamento das crianças.
Para entender por que a industrialização pode ser uma força influente no desenvolvimento do comportamento, é importante entender seu legado para a história humana. O advento da agricultura, 10 mil anos atrás, deu início ao que talvez tenha sido a mais profunda transformação na história da vida humana. Sem depender da caça e da coleta para sobreviver, as pessoas formaram sociedades mais complexas, com inovações culturais. Algumas das mais importantes dessas inovações envolviam novas formas de acumular, estocar e trocar recursos. Um efeito dessas mudanças, do ponto de vista da tomada de decisão, foi a redução da incerteza. Em vez de depender de recursos de baixa previsibilidade, como disponibilidade da caça, os mercados permitiram que criássemos combinações de recursos maiores e mais estáveis.
Como resultado, mercados também podem ter alterado nossa percepção de acessibilidade. Em sociedades mais afluentes, crianças podem sentir que é aceitável recorrer a estratégias como paciência e risco. Se pegam na sacola uma bolinha de gude em vez de um doce, tudo bem, não custou muito. Mas para as crianças shuaras na floresta, com menos recursos, a perda de um doce é algo muito sério. Elas preferem evitar o risco.
Com o passar do tempo, essas estratégias bem-sucedidas podem se estabilizar e se tornar recorrentes para interação em nosso mundo. Assim, num ambiente onde o preço por esperar é alto, as pessoas podem ser impacientes de modo consistente.
Outros estudos sustentam a ideia de que a personalidade é mais moldada pelo ambiente do que se pensava. Em estudo com adultos tsimané da Bolívia, antropólogos da Universidade da Califórnia, em Santa Bárbara, não encontraram muita base para o chamado modelo Big Five de variação da personalidade, que consiste em abertura para a experiência (openness to experience), conscienciosidade (conscientiousness), extroversão (extroversion), neuroticismo ou instabilidade (neuroticism) e amabilidade (agreeableness). Padrões semelhantes existem entre fazendeiros senegaleses e entre os aché do Paraguai. O modelo de personalidade Big Five é WEIRD.
Em outro estudo recente, o antropólogo Paul Smaldino, da Universidade da Califórnia em Merced, e sua equipe aprofundaram esses achados, associando-os a mudanças que foram catalisadas pela industrialização. Eles argumentam que, à medida que sociedades se tornaram mais complexas, elas permitiram o desenvolvimento de mais nichos – ou papéis sociais e ocupacionais – que as pessoas podem assumir. Diferentes características de personalidade são mais bem-sucedidas em certos papéis do que em outros e, quanto maior o número de papéis, mais diversos os tipos de personalidade podem ser.
Como todos esses novos estudos sugerem, nossos ambientes podem ter um impacto profundo em nossos traços de personalidade. Ao expandir o conjunto de sociedades com que trabalhamos, e abordando noções de personalidade com ceticismo, poderemos entender melhor o que nos faz ser quem somos.
Dorsa Amir é antropóloga evolucionária e pós-doc no Boston College. Seu trabalho já foi publicado no The Washington Post, BuzzFeed e TEDx talks. Artigo publicao originalmente em Undark.