Conhecida como a mãe da enfermagem, Florence Nightingale (1820-1910) foi também uma das pioneiras do uso do método científico na medicina. Em uma época em que o conhecimento médico era um virtual monopólio masculino, essa mulher incrível conseguiu provar seu ponto de vista usando evidência simples e sólida. Os dados apresentados por Florence eram irrefutáveis, e sua hipótese resistiu a uma barragem de tentativas de refutação. Qual hipótese? Simplesmente, a de que melhorar as condições de higiene em hospitais e nos cuidados com os doentes diminuiria a taxa de mortalidade!
Nascida em Florença, em 1820, recebeu sem nome em homenagem à cidade natal. Filha de um casal de posses, que acreditava que mulheres também mereciam uma boa educação, teve o privilégio de estudar com os melhores professores.
Mas apesar de investirem em sua educação, seus pais não gostaram nem um pouco da ideia fixa de Florence de tornar-se enfermeira. A enfermagem era uma profissão mal vista na época, e as mulheres que a praticavam eram geralmente associadas a bebida e promiscuidade. Florence era uma mulher de “boa família”, e esperava-se que conseguisse um bom casamento.
Determinada a seguir um caminho diferente, e contrariando os desejos de seus pais, Florence foi estudar na Alemanha, em 1844, no Hospital Luterano de Kaiserswerth. Em 1850, retornou à Inglaterra e conseguiu emprego no Hospital de Middlesex. Em apenas um ano, tornou-se superintendente. Durante uma epidemia de cólera, Florence percebeu que melhorar as condições de higiene diminuía a mortalidade. As péssimas condições sanitárias na época contribuíam para a disseminação da doença. Mas essa era uma ideia nova, proposta por uma mulher, e que não era nem sequer médica.
Em outubro de 1853, a Guerra da Crimeia irrompeu. Milhares de soldados britânicos foram enviados para lutar contra o Império Russo. Um ano depois, mais de 18 mil soldados estavam hospitalizados. Florence já gozava de uma boa reputação como chefe de enfermagem, e recebeu um pedido do secretário de Saúde, Sidney Herbert, para ir a Constantinopla, com uma equipe de enfermeiras, para ajudar a cuidar dos doentes.
Chegando ao hospital de Scutari, na Turquia, Florence encontrou condições extremamente precárias. Ficou claro, para ela, que a maioria dos soldados estava morrendo de doenças como cólera e tifo, e não de seus ferimentos.
Para termos uma ideia, as primeiras providências que ela tomou foram reunir todos os pacientes que estavam bem o suficiente e colocá-los, junto a sua equipe, para ESFREGAR o hospital com água e sabão, do piso ao forro. Em seguida, ela mandou limpar o sistema de esgoto, instalar um sistema de ventilação e enterrar as carcaças de dois cavalos, uma vaca e quatro cachorros que estavam ali apodrecendo. Imagina o estado do local! Mandou lavar toda a roupa de cama, e providenciou água limpa e alimentação adequada para os pacientes. Florence foi a primeira a instituir um serviço de lavanderia e uma dieta diferenciada para pacientes com necessidades específicas. Também montou uma biblioteca para o entretenimento dos pacientes.
Os médicos locais consideraram as mudanças um insulto ao seu profissionalismo, mas Florence reduziu a taxa de mortalidade de 43% para apenas 2 %, em menos de 6 meses. Foi nessa época que ficou conhecida entre os soldados como “a dama da lâmpada”, pelo seu hábito de fazer rondas noturnas, verificando os pacientes durante toda a madrugada.
Mesmo com todos esses avanços, o trabalho de Florence enfrentou muita resistência da comunidade médica. Foi acusada de tratar somente ferimentos menores, em uma época do ano que tinha o clima mais ameno, e por isso sua taxa de sucesso.
Mas Florence, além de ser uma notável enfermeira, era uma matemática brilhante. Ela compilou todos os dados dos prontuários de pacientes em Scutari que estavam sendo tratados antes de sua chegada, naquelas condições precárias de higiene, e comparou com os dados de um grupo de soldados feridos que estava sendo tratado, na mesma época, no acampamento militar, que tinha condições muito melhores do que o hospital.
Com isso, demonstrou que os soldados do acampamento tinham uma taxa de mortalidade de 27/1000, comparada com 427/1000 no hospital. Somando-se a isso as estatísticas de antes e depois da sua chegada em Scutari, ela conseguiu estabelecer que as medidas de higiene efetivamente reduziam o número de doenças, e a taxa de mortalidade.
Isso pode parecer óbvio para nós hoje, mas lembre-se de que falamos de uma época em ainda não existia o conceito de doença infecciosa, causada por micróbios, muito menos do método de transmissão dessas moléstias. Os trabalhos de Pasteur sobre a transmissão de doenças só começam a surgir em 1880, três décadas mais tarde. Florence Nightingale foi uma revolucionária. Graças a ela, achamos “óbvio” hoje que medidas de higiene sejam fundamentais para combater doenças.
Florence também contribuiu para a comunicação da ciência. Ela percebeu que seus cálculos estatísticos eram compreendidos por poucas pessoas, e que precisava de uma forma mais simples e direta de expor seus resultados, para convencer a classe médica. Ela inventou o precursor do gráfico pizza!
Sua paixão por estatística foi essencial para convencer o governo britânico a adotar uma série de medidas para melhorar as condições sanitárias dos hospitais. Ela também usou esse método para demonstrar a importância do treinamento na profissão de enfermagem. O consenso geral, na época, era de que o treinamento não era necessário, qualquer um podia cuidar de um doente. Florence advogava o contrário, e foi enfrentada com evidências de que mais pacientes morriam nas mãos de profissionais treinados do que com pessoas comuns. Determinada a demonstrar que isso só ocorria justamente porque os profissionais cuidavam dos casos mais graves, ela usou novamente o método científico e a estatística para sustentar seu ponto de vista.
Elaborou um experimento, no qual os pacientes eram distribuídos de maneira aleatória para pessoas treinadas e não treinadas. O resultado mostrou que os pacientes tratados por pessoas treinadas se recuperavam mais rapidamente. Ela também demonstrou que nascimentos em casa tinham menor taxa de mortalidade do que os feitos em hospitais, provavelmente devido às péssimas condições hospitalares de higiene.
Florence foi a primeira mulher agraciada com a Ordem do Mérito, em 1907, concedida a ela pelo rei Edward VII. E fundou a primeira escola de enfermagem da Inglaterra, a Escola de Treinamento Nightingale, em 1860. Em suas próprias palavras: “Atribuo meu sucesso ao seguinte: nunca dei, nem aceitei, desculpas”.
Natalia Pasternak é pesquisadora do Instituto de Ciências Biomédicas (ICB) da USP e presidente do Instituto Questão de Ciência