Abstinência sexual não é política pública séria

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13 fev 2020
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Cerca de 12 milhões de adolescentes, na faixa dos 15 aos 19 anos, e 777 mil meninas com menos de 15, tornam-se mães a cada ano, nos países em desenvolvimento. Pelo menos 10 milhões das gestações de garotas entre 15 e 19 anos são não planejadas. As complicações da gravidez e do parto são as principais causas de morte de adolescentes de 15 a 19.

Gestantes que têm de 10 a 19 anos correm um risco maior de eclampsia (complicação causada pela hipertensão durante a gravidez), endometrite puerperal (infecção do útero no pós-parto) e infecções sistêmicas do que as moças entre 20 e 24 anos. Estima-se que, por ano, 5,6 milhões de adolescentes façam abortos, 3,9 milhões delas em condições precárias, o que contribui para os índices de mortalidade e complicações de saúde. 

Os dados são da Organização Mundial da Saúde (OMS) , que destaca ainda o impacto socioeconômico da gravidez precoce, geralmente acompanhada pelo abandono da escola e consequente redução das chances de emprego. Estudos mostram que quanto menor o grau de instrução da mãe, menores as chances de que seus filhos consigam escapar do ciclo da pobreza.

As taxas de fertilidade de adolescentes – isto é, o número de adolescentes que engravida a cada mil garotas – varia de país para país, e em diferentes regiões do mesmo país. A média mundial gira em torno de 44 gestações a cada mil adolescentes por ano e, embora essa taxa venha caindo no Brasil – entre 2000 e 2017, houve queda de 36% nas gestações de adolescentes – , ela está acima da média globalcom mais de 60 gestações para cada mil adolescentes. No Estado de São Paulo, porém, esse índice é de 23 a cada mil meninas, algo próximo da taxa dos Estados Unidos, que é de 19,86 por mil.

Inspiração 

Nos países europeus, onde adolescentes têm educação sexual nas escolas, acesso a métodos contraceptivos e aborto seguro, essas taxas são bem mais baixas: 5,81 na Finlândia, 5,24 na Itália, 4,12 na Dinamarca, 3,79 na Holanda e 2,76 na Suíça, segundo dados de 2017 do Banco Mundial. 

Era de se esperar que, para reduzir a taxa acima dos 60 por mil, o governo fosse buscar exemplos de sucesso mundo afora. Mas a ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, Damares Alves, foi atrás da política de Uganda, que prega abstinência para os solteiros, fidelidade para os casados e preservativo para os que decidem iniciar sua vida sexual, e que ela apresenta como um programa de sucesso. 

Em Uganda, onde a meninas se casam entre 15 e os 17 anos (aqui é entre 27 e 29), a taxa de fertilidade adolescente, segundo dados de 2017, de 118,24 gestações por mil adolescentes, praticamente o dobro da taxa brasileira. 

Damares inspirou-se no movimento Eu Escolhi Esperar, do pastor Nelson Jr, para sua política de Estado para reduzir as taxas de gravidez na adolescência. Nelson Jr, ligado a movimentos evangélicos norte-americanos, só admite sexo dentro do casamento e desaconselha namoros com “carícias ousadas”.  

“Nós não pregamos só a abstinência sexual, também pregamos pureza na sexualidade. Na verdade, ampliamos a esfera de discussão. Pregamos contra a pornografia, contra os vícios sexuais, como a masturbação, por exemplo. Também falamos sobre pensamentos impuros, contra a imoralidade de uma forma geral. O sexo é a última instância do envolvimento sexual, que começa nos desejos, nos pensamentos. Por isso abordamos todas essas questões e ampliamos o discurso, indo até as preliminares, as carícias e vamos até mais fundo, tentando limitar os desejos e a vontade fora do contexto de um casamento”, declarou em entrevista . Damares, então, anunciou em dezembro que sua política na área iria se basear numa palavra: abstinência.

 

Sem contexto

“Abstinência não funciona nem para casais maduros, imagine para adolescentes cheios de hormônios”, afirma Luis Guillermo Bahamondes, ginecologista especializado em contraceptivos e professor da Universidade de Campinas (Unicamp). “Veja, não tenho nada contra retardar o início da vida sexual, mas esse tipo de proposta só cabe dentro de um contexto bem mais amplo, que envolva escolas, as secretarias da Saúde, educadores sexuais bem treinados para falar a linguagem dos adolescentes, que conheçam adolescentes e, claro, muita informação sobre sexo e métodos contraceptivos. E nada disso adianta, se esses adolescentes não tiverem acesso a métodos anticoncepcionais quando resolverem iniciar sua vida sexual. A menina que hoje assume o compromisso de se abster de sexo até o casamento, amanhã conhece um garoto, se apaixona e muda de ideia,” afirma.

Como vem acontecendo com certa frequência no atual governo, a ideia de promover a abstinência para reduzir a gravidez na adolescência sequer é original: é mais uma imitação das ideias da gestão Donad Trump nos Estados Unidos. Diante de uma nova corrida eleitoral nos EUA, Trump, que era a favor do aborto, agora se declara abertamente contra e – surpresa! – desde 2018 destinou financiamento e apoio aos projetos que promovem abstinência sexual , numa estratégia que busca garantir os votos de evangélicos americanos. O problema é que esses programas não dão certo.

Um estudo de 2016  mostra que adolescentes que se comprometeram com abstinência sexual até o casamento, e quebraram essa promessa, têm muito mais chances de engravidar do que meninas que jamais fizeram o voto. Pesquisa de 2002 mostrou que 12% dos adolescentes se comprometiam a só fazer sexo após o casamento, o que, de fato, fazia com que retardassem o início da vida sexual e reduzissem o número de parceiros. 

O problema é que apenas 3% deles mantinha a promessa, ou seja, a maioria é o que o pesquisador Anthony Paik chama de “quebradores de promessas”. Sociólogo da University of Massachusetts–Amherst, Paik resolveu estudar o que acontece com eles depois disso, o que fez a partir de milhares de entrevistas feitas dentro do National Longitudinal Study of Adolescent Health em 2002 e 2008. 

Efeitos indesejados

Cerca de 18% das adolescentes que não se comprometeram com abstinência engravidaram seis anos depois de iniciar sua vida sexual, mas 30% das que prometeram se abster de sexo até o casamento – e quebraram a promessa – engravidaram antes do casamento. 

Segundo Paik, o que acontece com elas é um cultural lag, um “atraso cultural”, em que elas rejeitam certos valores com mais rapidez do que atualizam os comportamentos necessários para sustentar essa rejeição. Ou seja, têm relações sexuais sem proteção. Programas de abstinência tendem a ensinar que não fazer sexo é o único modo 100% seguro de evitar gravidez e doenças sexualmente transmissíveis. 

A mensagem é que, se abstinência é o método 100% seguro, todos os outros são falhos. De acordo com Paik, a promessa de abstinência, para chegar virgem ao casamento, só funciona com adolescentes profundamente religiosos. Fora desses grupos, segundo o pesquisador, esse tipo de programa pode ter efeitos negativos, com aumento os casos de gravidez precoce e DSTs.

E essa é uma questão particularmente complicada no Brasil, especialmente para a população mais pobre, que depende do SUS. “Não é um problema apenas de adolescentes. No Brasil, 52% das gestações em mulheres de qualquer idade não são planejadas. A mulher vai ao posto de saúde em busca de anticoncepcional, a consulta demora quatro meses e quando ela retorna vai direto para o pré-natal porque está grávida”, afirma Bahamondes. No caso das adolescentes, o caso é ainda pior.

“Você precisa de uma certa disciplina para tomar a pílula, horário, não pode falhar um, não é como um comprimido para hipertensão ou diabetes que dá para esquecer de tomar um dia. Para a pílula isso faz diferença. O ideal para as adolescentes seriam os chamados contraceptivos reversíveis de longa duração, como injeções, implantes e o DIU, que não dependem da ação do paciente e são praticamente perfeitos em eficácia”, explica o especialista. “O problema é que raramente estão disponíveis no SUS, e quando estão, o médico diz que a adolescente é ‘muito novinha’ para usá-los.”

Radiografia de mulher com DIU implantado

Recomendações internacionais

Não à toa, a OMS, que tem um programa de recomendações para redução da gravidez adolescente nunca menciona abstinência como estratégia. A organização elenca seis áreas de ação para reduzir as gestações de jovens abaixo dos 19 anos, iniciado pelo combate aos casamentos infantis, comuns em certas regiões do planeta, onde a noiva é praticamente uma criança e o noivo, um homem bem mais velho. 

O segundo ponto é educação sexual ampla e abrangente, para meninos e meninas, com participação e apoio da comunidade. A OMS destaca que a maioria das gestações precoces ocorre em países pobres, ou em comunidades pobres de alguns países ricos. A terceira é garantir que os jovens tenham acesso a contraceptivos e aprenda a usá-los corretamente.

O quarto, é claro, é o combate à violência sexual contra crianças e adolescentes.

A quinta recomendação da OMS é a redução dos abortos inseguros, ou seja, clandestinos. “O índice de gestações não planejadas entre adolescentes no Brasil é de 62%, praticamente o mesmo que nos EUA. A diferença é que aqui praticamente todas levam a gestação a termo, enquanto lá, como nos países escandinavos, elas abortam”, diz Bahamondes. A sexta diretiva da OMS é para acesso e melhoria de pré-natal, parto e pós-parto para as grávidas adolescentes.

Diante da reação à proposta de abstinência, inclusive da Sociedade Brasileira de Pediatria ,a ministra fez uma leve correção no seu discurso, afirmando que vai “apenas” acrescentar a abstinência como opção, e que a educação sexual, com contraceptivos, permanece. Mas, diante das recentes posições tomadas pelo Brasil no Conselho de Direitos Humanos da Organização das Nações Unidas (ONU), é de se duvidar da sinceridade dessa correção de rumo. O Brasil tem votado contra educação sexual inclusiva, que vê como um estímulo à iniciação sexual e aceitação das pautas LGBTs, e contra os direitos de saúde da mulher, que encara como uma promoção do aborto, aliando-se à teocracia do Irã e a países ultraconservadores como Arábia Saudita e Afeganistão.

Abstinência na prática

O projeto, que deverá receber uma verba de R$ 3,5 milhões, prevê a distribuição de cartilhas (adolescentes acham que cartilhas são coisas para crianças) e palestras (basta saber que haverá palestra para alunos literalmente fugirem da escola pública ou privada. Diretores nem avisam sobre a programação por causa disso). De acordo com Bahamondes, a proposta deixa de fora alguns aspectos fundamentais para reduzir as taxas de fertilidade adolescente.

“Adolescentes não têm espaço para buscar informação num posto de saúde, por exemplo, aliás, eles não vão a postos de saúde, porque associam o local com as vacinas tomadas na infância, e não gostam de ser vistos como crianças. Além disso, existe a questão da privacidade, o receio de serem vistos por parentes ou vizinhos marcando consulta com ginecologista, por exemplo,” conta. 

O mais grave, porém, é que o programa não aborda uma questão fundamental e que se repete mundo afora com adolescentes, especialmente as de baixa renda: com a falta de perspectivas sociais, profissionais e de renda, muitas adolescentes pobres acabam vendo na maternidade precoce um projeto de vida e de realização pessoal. “E isso não se muda com um projeto de abstinência”, diz Bahamondes.

 

Ruth Helena Bellinghini é jornalista, especializada em ciências e saúde e editora-assistente da Revista Questão de Ciência. Foi bolsista do Marine Biological Lab (Mass., EUA) na área de Embriologia e Knight Fellow (2002-2003) do Massachusetts Institute of Technology (MIT), onde seguiu programas nas áreas de Genética,  Bioquímica e Câncer, entre outros

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