O filósofo Peter Boghossian foi punido pela Universidade Estadual de Portland (EUA), onde atua como professor-assistente, por “violar os direitos de sujeitos humanos” e as diretrizes ética da pesquisa científica com seres humanos, por sua participação no experimento dos chamados Grievance Studies (“estudos de ressentimento”), em que 20 artigos acadêmicos falsos e deliberadamente ridículos foram enviados a periódicos da área de Humanidades – sendo que sete acabaram aceitos para publicação (e um até foi premiado!). Os “sujeitos humanos” que tiveram seus “direitos” violados, de acordo com a Universidade, foram os editores que caíram na pegadinha e publicaram os artigos ridículos.
A pressão contra Boghossian teve início em novembro do ano passado, quando o jornal “Vanguard”, administrado por estudantes da Estadual de Portland, publicou uma carta anônima – supostamente escrita por uma dúzia de docentes da instituição – acusando o filósofo de má conduta acadêmica e de praticar “bullying”.
A punição o proíbe de realizar pesquisas envolvendo seres humanos até que complete um curso e demonstre ser capaz de respeitar direitos humanos. A proibição congela todos os projetos envolvendo sujeitos humanos dos quais Boghossian participa, mesmo os em que ele é apenas colaborador. Se violar a ordem, o professor pode perder o emprego.
Durante a investigação conduzida pela Universidade, Boghossian declarou-se culpado apenas de plágio (um dos artigos falsos era um trecho de Mein Kampf, de Adolf Hitler, com algumas palavras trocadas para soar como um manifesto feminista). Ele foi absolvido nesse ponto.
A hipótese
O filósofo, juntamente com o matemático James A. Lindsay e a escritora Helen Pluckrose, lançou a fraude porque acredita, como diz o manifesto que os três autores publicaram online, que “alguma coisa deu errado na universidade – especialmente em certas áreas dentro das humanidades”.
O manifesto denuncia: “Trabalhos baseados menos na busca pela verdade e mais em prestar serviço a ressentimentos sociais estabeleceram-se com firmeza, quando não se tornaram dominantes, dentro dessas áreas, e acadêmicos que os produzem cada vez mais intimidam estudantes, administradores e outros departamentos a aderir a seus pontos de vista”.
A fraude consistiu na elaboração e envio de 20 estudos falsos, repletos de erros e conclusões ilógicas, mas alinhados com a ideologia dominante, para periódicos acadêmicos da área. O resultado: sete dos estudos foram aceitos, seis rejeitados e sete, devolvidos para correções, o que sugere que os editores pretendiam publicá-los.
Exemplos
Um dos artigos devolvidos parar revisão defendia que horóscopos fossem aceitos como parte da astronomia, como forma de reduzir o machismo, a homofobia e o etnocentrismo dessa ciência.
O artigo que não só foi aceito, como também publicado e premiado, afirmava que a interação entre humanos e cães nos parques públicos da cidade de Portland oferecia um laboratório de pesquisa para a “cultura de estupro” predominante na população humana.
Este trabalho, Human Reactions to Rape Culture and Queer Performativity in Urban Dog Parks in Portland, Oregon (“Reações Humanas à Cultura de Estupro e Performatividade ‘Queer’ em Parques Urbanos de Portland, Oregon”) – aceito pelo periódico “Gender, Place & Culture: A Journal of Feminist Geography” – caiu no radar da RealPeerReview, uma conta do Twitter dedicada a denunciar trabalhos acadêmicos de má qualidade. Isso chamou a atenção do Wall Street Journal, o que acabou “estourando” o disfarce dos três autores.
Significados
A iniciativa atraiu ataques e elogios. Algumas das críticas centraram-se nas pretensões científicas da fraude: todo esquema, afinal, havia sido concebido como um experimento para testar se o meio acadêmico dedicado a estudos de raça e gênero estaria disposto a publicar qualquer bobagem, desde que ela viesse a confirmar a ideologia dominante nesse meio.
Com apenas sete artigos aceitos, de um total de 20 submetidos, o resultado pode parecer menos conclusivo do que os autores supõem. Outros ataques, no entanto, voltaram-se para as supostas motivações por trás do experimento, que incluiriam a difamação das Humanidades em geral, ou das esquerdas.
Escrevendo para The New York Times na época em que a fraude veio a público, o jornalista de ciência William Egginton aponta que o verdadeiro problema dos “estudos de ressentimento” (ou “estudos identitários”, para usar uma expressão menos carregada) é que eles tendem a uma espécie de hiper-especialização que acaba favorecendo o tribalismo.
“A proliferação de periódicos que pouca gente lê, junto da pressão para publicar cada mais mais artigos, leva a mais trabalhos publicados com menos garantias de qualidade”, escreve Egginton. “Além disso, a hiper-especialização nas Humanidades significa que as mesmas pessoas que deveriam pensar de modo amplo sobre a cultura e as ideias, e ensinar os alunos a encontrar e lidar com as mais diversas posições e opiniões, acostumam-se a definir seus interesses do modo mais estreito possível”.
O professor de filosofia da Ciência Massimo Pigliucci concorda com Egginton, e lembra que a vulnerabilidade a pesquisa ruim ou a fraude não é exclusiva nem das Humanidades, nem dos estudos identitários dentro das Humanidades. Em 2016, uma conferência de Física Nuclear realizada nos Estados Unidos aceitou um artigo escrito pela função “autocompletar” do sistema operacional da Apple.
Castigo
No fim, mais do que o resultado da fraude em si, a reação extremada – e a condenação farsesca imposta a Boghossian – aos “Estudos de Ressentimento” sugere que o trio de autores está provavelmente certo em sua avaliação de que há algo como uma linha-dura ideológica atuando na sub-área das Humanidades a que Pigliuggi se refere como “estudos de X” (onde “X” pode ser raça, mulheres, gays, etc.), pelo menos nos Estados Unidos.
A condenação do filósofo aconteceu a despeito das cartas de apoio assinadas por figuras como Alan Sokal e Richard Dawkins. Mais de um comentarista já notou o absurdo kafkiano implícito em exigir pleno “consentimento informado” quando todo o estudo depende de algumas pessoas não saberem exatamente o que está acontecendo.
A interpretação das normas éticas para experimentação com seres humanos adotada pela Universidade Estadual de Portland no caso de Peter Boghossian inviabiliza, por exemplo, estudos como os que buscam avaliar racismo ou machismo no meio corporativo, enviando às empresas currículos idênticos, com variações apenas nos quesitos de raça e gênero. Como fazer isso de modo válido se o pesquisador passar a ser obrigado, pelo código de ética, a avisar os departamentos de RH com antecedência?
Como escreve o professor de História e Filosofia da Ciência Justin E.H. Smith para o Chronicle of Higher Education, “confesso-me espantado, embora não devesse mais, a esta altura, pelo moralismo e dogmatismo para com regras e procedimentos que muitos acadêmicos vêm expressando, como se fraudes fossem sempre antiéticas e sem nenhum efeito salutar em potencial”.
Carlos Orsi é jornalista e editor-chefe da Revista Questão de Ciência