Diluindo o gasto público com homeopatia, até sobrar só a memória!
Desde a criação do Sistema Nacional de Saúde (NHS) – o sistema público de financiamento da saúde no Reino Unido, a homeopatia ganhou posição privilegiada: quando o serviço foi inaugurado em 1948, o Reino Unido contava com vários hospitais homeopáticos, alguns já com mais de um século. Assim, parecia natural que essa modalidade, tão estabelecida, de medicina alternativa fosse incluída no novo sistema público de saúde. Com o passar das décadas, cada vez mais ensaios clínicos demonstraram que remédios homeopáticos são ineficazes, e a presença da homeopatia no NHS começou a ser questionada. Contudo, sua reputação antiga e o apoio da família real inglesa impediram qualquer esforço sério para suspender o financiamento desta pseudoterapia.
Foi exatamente nesse cenário que, em 2014, a Good Thinking Society ( Sociedade do Pensamento Racional – tradução livre), decidiu investigar – e questionar – o gasto público com homeopatia. Ao fazê-lo, ficou claro que nosso primeiro desafio seria descobrir exatamente onde a homeopatia estava sendo oferecida, quem era responsável pela renovação dos contratos, e precisamente quanto dinheiro público estava sendo gasto com esses supostos remédios.
Foi uma grande surpresa quando constatamos – dada a maneira como decisões de financiamento são feitas por órgãos locais de saúde – que ninguém, em todo o Reino Unido, nem no NHS, nem no Ministério da Saúde, nem em qualquer outro órgão oficial do governo, sabia dizer exatamente quanto o país gastava em tratamentos homeopáticos! As secretarias locais de saúde decidiam como gastar recursos nos serviços locais, e ninguém era obrigado a prestar contas e organizar a informação em termos de um quadro nacional. Assim, percebi bem depressa que, se eu quisesse a informação, teria que investigar por conta própria.
Por sorte, o Reino Unido tem uma poderosa Lei de Acesso à Informação, o que me permitiu perguntar a cada uma das 237 autoridades locais de saúde quanto exatamente era gasto em medicamentos homeopáticos. Após seis meses de muito vai-e-vem de correspondência, lembrando e cobrando das autoridades sua obrigação de transparência para com as contas públicas, finalmente obtive um quadro geral.
Meus resultados mostravam um panorama claro: o financiamento público da homeopatia no Reino Unido estava intimamente relacionado aos locais onde ainda existiam hospitais homeopáticos, em Londres, Liverpool, Bristol e Glasgow. As áreas no entorno dessas cidades gastavam aproximadamente cinco milhões de libras (US$ 25 milhões) por ano com consultas e medicamentos. Nas áreas mais afastadas destes centros – a mais de 48 km de distância dos hospitais – os gastos com homeopatia eram praticamente inexistentes. Ficou claro que era preciso fazer uma análise mais detalhada desses hospitais.
Uma vez sabendo quais autoridades locais de saúde estavam gastando com homeopatia, foi possível observar atentamente e aguardar até que um contrato de compra de produtos homeopáticos se aproximasse da data de renovação. Como se trata de dinheiro público, obtido dos impostos pagos pelo cidadão, qualquer decisão financeira precisa passar por procedimentos legais, inclusive para garantir que não haja desperdício de recursos. Como o governo do Reino Unido já havia concluído que homeopatia não era eficaz para tratar nenhuma condição de saúde [em 2010, um comitê do Parlamento Britânico havia publicado relatório condenando a homeopatia – N. do E.], pareceu-nos evidente que qualquer decisão de realizar gasto público com tratamentos que não funcionam não poderia ser vista como uso responsável destes recursos.
Foi na minha cidade natal, Liverpool, que tivemos uma primeira chance. O município estava prestes a renovar seu contrato de compra de produtos homeopáticos, abrindo uma janela de oportunidade para que a Good Thinking Society, em parceria com a assessoria jurídica Bindmans LLP, contestasse a renovação! Em fevereiro de 2015, escrevemos para a Secretaria de Saúde de Liverpool, explicando por que acreditávamos que a decisão de seguir investindo em homeopatia era ilegal; em abril de 2015, em vez de nos contestar juridicamente, Liverpool preferiu cancelar a renovação do contrato, e realizou uma consulta pública para ver se a população ligava mesmo para homeopatia.
Esta foi uma oportunidade incrível para nós. Em uma consulta pública típica, geralmente as pessoas reagem de forma passional, e isso inclui pacientes que utilizam o serviço, homeopatas locais e outros cidadãos engajados em grupos pró-homeopatia, mas dificilmente mobilizam-se cientistas e céticos, que em geral nem se dão conta de que existe uma consulta aberta.
Por ser uma organização sem fins lucrativos, criada justamente para combater pseudociência, éramos as pessoas certas para encorajar cientistas locais, médicos, céticos e todo cidadão adepto do pensamento racional, a vir a público. Procurei todos os clínicos gerais que estavam listados online, e escrevi pedindo que dedicassem alguns minutos para responder à consulta pública. Em seguida, procurei em todos os websites das universidades locais os acadêmicos de medicina, farmácia, química, física, etc., e pedi o mesmo. Ao dedicar tempo para ir atrás de pessoas e comunidades que estariam interessadas na consulta, mas não estavam nem sabendo da sua existência, consegui apoio para sustentar uma posição em prol da ciência, equilibrando o lobby dos homeopatas.
O efeito foi significativo: em junho de 2016, a autoridade de saúde de Liverpool encerrou o financiamento de homeopatia. Foi uma grande vitória para o pensamento racional e o movimento cético em Liverpool. Além disso, foi um modelo a seguir: escrevi para todas as outras municipalidades que financiavam homeopatia, chamando a atenção para nossa intervenção legal em Liverpool, e seu resultado, deixando claro que não havia argumento legalmente aceitável para financiar a homeopatia no NHS, e que estaríamos de olho em todas as renovações de contrato de compra de produtos homeopáticos dali em diante.
Se Liverpool foi o primeiro sucesso, o seguinte não tardou: em outubro de 2016, uma cidade vizinha a Nordeste de Liverpool, The Wirral, também encerrou o financiamento da homeopatia, citando o “consenso esmagador” de especialistas e moradores locais que votaram na consulta pública. Mais consultas se seguiram em 2017, na área ao redor de Bristol, pondo fim a todo o financiamento da homeopatia no Sudeste da Inglaterra em agosto de 2018.
Neste meio tempo, escrevi para 17 autoridades regionais de saúde em Londres, que tinham contrato com o Hospital Real de Londres para Medicina Integrativa (RLHIM). Este contrato não deixava claro se os recursos públicos estavam sendo gastos com homeopatia, então eu as encorajei a exigir maior transparência de como seus recursos eram utilizados. No final de 2017, as autoridades de Londres auditavam formalmente cada paciente que dava entrada no RLHIM, fornecendo um quadro perfeito de quantos estavam sendo tratados com homeopatia. Assim, em março de 2018, as 17 autoridades regionais de Londres proibiram que todo e qualquer recurso fosse utilizado para consultas e remédios homeopáticos. O uso rotineiro de homeopatia do NHS na Inglaterra chegava ao fim, 70 anos depois de sua criação, e apenas quatro anos após o início do nosso desafio.
Conselhos de saúde no País de Gales aproveitaram a onda, e encerraram o pequeno financiamento ainda existente. A Irlanda do Norte confirmou que nunca haviam financiado homeopatia, e a Escócia reduziu significativamente seus gastos, apesar de não ter acabado com o dispêndio completamente, e continuamos trabalhando na Escócia até hoje.
Enquanto muito do nosso trabalho envolvia correspondência com órgãos do governo e conselhos de saúde, investigando documentos e contratos, e respondendo a consultas públicas, nós também conseguimos – na medida do possível – conduzir nossa campanha de maneira transparente com a população e com a mídia. Isso nos permitiu demonstrar as reais motivações da nossa campanha, e evitar – ou ao menos tentar evitar – a inevitável acusação de sermos financiados pela grande indústria farmacêutica malvada. Mais do que isso, permitiu-nos informar o público sobre o que a ciência realmente diz a respeito da eficácia da homeopatia.
Por muitos anos, acredito, a homeopatia teve passe livre no Reino Unido, em parte, pela falta de compreensão dos cidadãos britânicos sobre o que é a homeopatia de fato, e os conceitos que envolve. Estudos demonstraram que as pessoas confundem homeopatia com fitoterapia ou com medicina “natural”, sem entender, de fato, que essas pílulas de açúcar são inertes, sem nenhum vestígio do princípio ativo, que já foi diluído ao extremo muito antes das pílulas chegarem ao paciente.
Sabendo disso, em cada estágio da nossa campanha trabalhamos junto a jornalistas por todo o Reino Unido, o que resultou em mais de cem coberturas desde 2014, incluindo entrevistas na BBC e programas de rádio, reportagens em jornais de grande circulação, e até reportagens em tabloides (online e impressos). Com essa ampla cobertura, e em veículos tão variados, pudemos frisar nossa mensagem principal: que todo centavo gasto nestes tratamentos ineficazes é dinheiro que poderia ser gasto em coisas mais importantes, e que existe uma organização (e uma comunidade, no Reino Unido e no mundo), que se dedica a defender a ciência e desafiar a pseudociência.
Olhando para trás, para estes cinco anos de campanha contra a homeopatia no NHS, percebemos que nossa estratégia de mídia foi parte importante do sucesso, mas igualmente importante foi nossa habilidade de quebrar um problema nacional em uma série de decisões locais, e lidar com cada uma separadamente, aproveitando os picos de sucesso em uma região para estimular esforços em outras. Dedicamos tempo para entender como os órgãos de saúde tomam decisões, como essas decisões são estruturadas, e onde estão os pontos frágeis que podem ser explorados. Também construímos uma rede de apoio em cada região, mesmo que isso significasse passar horas criando listas de contatos de médicos, veterinários, acadêmicos, cientistas e membros da comunidade. Assim, foi possível criar interesse e entusiasmo em locais onde isso realmente fez toda a diferença.
Nossa campanha para banir o financiamento total de homeopatia no NHS não acabou. Ainda há financiamento na Escócia, e temos que monitorar fornecedores em Londres para garantir que a lei seja cumprida. Mas, se levarmos em conta que a homeopatia foi oferecida pelo NHS por 70 anos, e nossa campanha tem apenas cinco, creio que já percorremos um bom caminho, e bem mais rápido do que poderíamos imaginar.
Michael Marshall é diretor de projetos da Good Thinking Society, uma organização sem fins lucrativos dedicada a desafiar pseudociência e promover medicina baseada em evidências. O texto original em inglês pode ser lido aqui.