Durante a Segunda Guerra Mundial, ou logo após, apareceu uma curiosa religião entre as populações de certas ilhas do Pacífico. Durante o confronto com o Japão, os americanos haviam usado algumas ilhas como bases, construindo pistas de pouso, torres de comunicação e pousado ali aviões repletos de “maravilhas” como lanternas, baterias elétricas, alimentos processados.
Depois que os militares foram embora, algumas populações nativas passaram a erguer simulacros de torres e a abrir pistas de pouso precárias, para tentar atrair magicamente do céu os aeroplanos contendo a “carga” que tamanha impressão havia causado. Essa forma peculiar de culto religioso acabou sendo chamada de “cargo cult”.
Joanna Helmuth , Gil D. Rabinovici e Bruce L. Miller, em artigo publicado no periódico médico JAMA, em 12 de janeiro deste ano, usam o termo “cargo cult” para o que eles chamam de “pseudomedicina”: são estudos, até publicados, que parecem ciência, mas não são.
Só usam o formal de artigos científicos, mas ao invés de estudos duplo cegos randomizados usam “testimonials” (depoimentos pessoais), não têm grupo controle – e dão razões que fingem ser éticas para a ausência do grupo controle.
Se este suplemento alimentar ou estes remédios alternativos são tão bons, já que há testemunhos (que possivelmente não são inventados, são verdadeiros, graças ao fenômeno placebo) da sua eficiência, não seria ético deixar pessoas do grupo controle sem estas maravilhas...
Alguns argumentariam que muitas destas práticas não fazem mal – o que é discutível. Existem estudos sérios mostrando que alguns suplementos fazem mal, sim, isto mesmo quando são devidamente produzidos. Nos Estados Unidos, e mesmo por aqui, o que é batizado de suplemento nutricional e muitos medicamentos ditos “naturais” e outros alternativos não passam pela avaliação da FDA ou da Anvisa – e nem se submetem a estas instituições, porque elas exigem que se definam as toxicidades e a eficiência de cada droga que aprovam.
Alguns médicos compactuam com o uso destas coisas, mas não deveriam. Primeiro, porque eles custam: nunca vi medicina alternativa gratuita...nem suplementos idem...Portanto, há exploração da credulidade humana, frequentemente em pessoas já fragilizadas pela doença.
Segundo, porque nem sempre medicamentos alternativos são sem ação colateral – tais medicamentos são produzidos sabe-se lá onde e como, e o que está dentro deles é outra caixa preta – nem sempre o que consta da bula, quando a bula existe, é o que está nas pílulas...
Pior ainda, quando há interesse financeiro de quem prescreve, para que o paciente consuma tais ou quais suplementos ou produtos naturais ou seja direcionado a farmácias naturalísticas. Isto chega na fronteira da sacanagem...
Como evitar este tipo de coisa ? Com educação dos pacientes, com interação mais prolongada ( consulta de 15 minutos, como a que muitos convênios obrigam a praticar, não são adequadas a uma educação melhor do paciente). É preciso perguntar aos pacientes se eles não estão usando alguma mezinha* – em doenças graves, ouso dizer que mais da metade usa.
É preciso explicar o que é cientificamente documentado e o que não só não é, como nunca vai ser. E se ainda assim o seu paciente quiser usar alguma coisa deste tipo, paciência, mas pelo menos ele foi informado. Na verdade, o fundamental é minorar a falta de conhecimento científico da nossa população.
E não é só nossa: afinal nos Estados Unidos ainda existem criacionistas – mais que aqui – e gente que considera a vacinação um erro, induzido por multinacionais e outras teorias conspiratórias, e com isso consegue fazer com que doenças já muito bem controladas retornem, caso do sarampo.
Temo que precisemos esperar mais algumas gerações para que o conhecimento científico de fato se dissemine por toda a população: nosso atual sistema de ensino não me anima neste sentido.
Jacyr Pasternak é médico infectologista e pesquisador
* mezinha: cura caseira, remédio improvisado (N. do E.)