O professor de Filosofia Peter Boghossian está sendo investigado pela instituição onde leciona, a Universidade Estadual de Portland, nos Estados Unidos, em duas acusações de má conduta científica – fabricar dados e conduzir experimentos em seres humanos sem autorização de um comitê de ética.
As investigações se seguem à publicação de uma carta anônima, aparentemente de autoria de outros docentes da Estadual de Portland, no jornal “Vanguard”, administrado por estudantes da universidade, acusando Boghossian de praticar “bullying no estilo da política dos tempos de Trump”.
Tudo isso por causa da participação do filósofo nos chamados “Grievance Studies” (“Estudos de Ressentimento”), a produção e posterior submissão, a diversos periódicos de Ciências Humanas e Humanidades, de 20 artigos científicos baseados em dados inválidos, ou recheados de argumentos absurdos.
O objetivo do “experimento” era testar até que ponto a imprensa acadêmica de Humanas abraçaria com avidez quaisquer ideias que soassem “politicamente corretas”, mesmo se veiculadas em material claramente imprestável do ponto de vista intelectual e científico.
Quando a fraude chegou ao fim, sete artigos haviam sido aceitos, quatro publicados (um, premiado!), seis rejeitados e sete ainda aguardavam parecer definitivo. Que conclusões podem ser tiradas disso? Muitas, ou talvez nenhuma. O debate continua, e eu mesmo já me manifestei a respeito.
A verdadeira demonstração da bancarrota intelectual de certo setor das Humanidades acabou tendo lugar na vida pessoal do trio de autores da proeza: além de Boghossian, participaram o matemático James Lindsay e a escritora Helen Pluckrose. Lindsay e Pluckrose seguem travando uma luta sem tréguas contra trolls de PhD nas redes sociais; Boghossian, o único a deter um posto acadêmico formal, corre o risco de perder o emprego.
As acusações contra ele são de uma perversidade que chega às raias do brilhantismo. Como Alan Sokal – autor da primeira grande impostura dedicada a mostrar que o rei do pós-modernismo acadêmico estava nu, em 1996 – observou em uma manifestação enviada à direção da universidade, e em artigo publicado no site Inside Higher Education (IHE), o professor de filosofia é, ao pé da letra, culpado das acusações feitas: ele, afinal, participou da produção de dados falsos; e também submeteu seres humanos (os editores dos periódicos visados) a um experimento (se aceitariam ou não publicar artigos ridículos) sem pedir-lhes permissão.
Mas a letra da lei não é totalidade da lei, fato que todos conhecem, exceto quando a conveniência ideológica manda esquecer.
Sokal, escrevendo para o IHE, vai direto ao ponto: “os editores de periódicos são profissionais que carregam uma responsabilidade para com o público, não gente ao acaso na rua. Se metem os pés pelas mãos, por que isso não deveria ser de conhecimento público? Além disso, eles têm voz: se suas ações são defensáveis (como podem muito bem ter sido), eles e seus apoiadores podem apresentar razões, e o restante de nós podemos avaliar seus argumentos com nossos próprios cérebros”.
É aí que se constata a falência intelectual: quando se tenta resolver um debate com uma interpretação perversa das regras que existem para preservar a integridade acadêmica, ignorando evidências e argumentos. Usar essa interpretação perversa para punir quem ousa pôr essa integridade a teste é um sintoma grave daquilo que Boghossian, Lindasy e Pluckrose se propuseram a denunciar – covardia moral (tudo começou com uma carta anônima!), preguiça mental, espírito de corpo e pensamento de manada – sobrepondo-se aos princípios do debate aberto e do exame crítico de ideias.
Boghossian tem recebido manifestações de apoio de diversos intelectuais públicos, como Richard Dawkins e Jonathan Haidt, mas seu destino ainda é incerto.
O uso de regras e manipulação política para sufocar debates sobre ciência e evidência que deveriam ser públicos não é prerrogativa dos acadêmicos americanos, ofendidos pela publicidade conquistada pelos “Grievance Studies”.
No Brasil, por exemplo, médicos que ousam criticar abertamente o reconhecimento da homeopatia como especialidade, pelo Conselho Federal de Medicina, colocam em risco sua licença para clinicar.
Nas universidades, raros são os acadêmicos dispostos a condenar as pseudociências que, muitas vezes, são ensinadas por colegas da mesma instituição – colegas cujos votos, no caso das universidades públicas, podem ser valiosos para os que têm pretensões políticas ou administrativas.
Carlos Orsi é jornalista e editor-chefe da Revista Questão de Ciência