“A Igreja Evangélica perdeu espaço na história. Nós perdemos um espaço na ciência, quando deixamos a teoria da evolução entrar nas escolas. Quando nós não questionamos, quando nós não fomos ocupar a ciência. A Igreja Evangélica deixou a ciência sozinha, caminhar sozinha, e aí cientistas tomaram conta dessa área e nós nos afastamos.”
Este trecho, retirado de uma entrevista que a pastora evangélica e advogada Damares Alves – atual ministra da Mulher, Família e Direitos Humanos – concedeu, anos atrás, à pastora Cynthia Ferreira, do portal “Fé em Jesus”, tem causado alvoroço e indignação. Mesmo se abstrairmos o contexto político presente (a declaração, afinal, foi feita em 2013, bem antes das eleições que levaram à formação do atual governo), a fala, e a curta intervenção da apresentadora, traz à tona uma questão sobre a natureza da ciência que pode ser também causa de dúvida e confusão em muitas pessoas.
Em entrevista à Rádio CBN, o Ministro de Ciência e Tecnologia, Marcos Pontes, comentou a declaração de sua colega do primeiro escalão do governo Bolsonaro. Disse: “Ela deve ter falado isso em algum tipo de contexto que eu não sei exatamente. Mas, do ponto de vista da ciência, são muitas décadas de estudo para formar a teoria da evolução… Não se deve misturar ciência com religião”. E nesse ponto, Pontes está certo. A fé não faz parte da ciência.
Outro pastor se pronunciou sobre o tema. Silas Malafaia escreveu em seu Twitter, dirigindo-se a Pontes:
“UM AVISO AO MINISTRO MARCOS PONTES SOBRE A EVOLUÇÃO > Se a teoria da evolução fosse verdade comprovada , se chamaria lei da evolução. As leis da ciência são verdades comprovadas que não mudam. As teorias são verdades relativas q podem mudar a qualquer hora.”
É exatamente sobre essa mesma questão que vale a pena chamar atenção para um detalhe no vídeo de 53 segundos com a fala original de Damares. A entrevistadora faz uma pequena intervenção no meio da declaração da futura ministra e diz: “Detalhe, é SÓ uma teoria...” referindo-se à teoria da evolução proposta por Charles Darwin e Alfred Russel Wallace, no século 19.
Silas Malafaia continuou, em outro tweet: “As leis são comprovadas pelo experimento, não simplesmente por hipótese”.
Talvez, na cabeça de algumas pessoas, a palavra “lei”, mesmo quando usada em contexto científico, se confunda com o termo jurídico. A palavra é a mesma, e a distinção entre os significados talvez não seja muito clara, levando à confusão entre lei científica com algo como uma Lei Trabalhista ou uma Lei de Trânsito. Além disso, fica ainda a ideia de que uma lei científica é imutável.
A própria Lei da Gravidade, tal como formulada por Isaac Newton e citada por Malafaia em um de seus tweets, tem limitações. Quem demonstrou isso foi Albert Einstein, ao elaborar a Teoria da Relatividade Geral. Notem que uma “teoria” consegue explicar muito bem algo de que uma “lei” não dá conta.
O pensamento sobre a gravidade mudou desde Newton, porque novas observações sobre a natureza foram feitas, observações que não eram explicadas pelos resultados do grande gênio inglês. Por isso, não existe essa hierarquia de “certezas” entre leis e teorias na ciência. Ambas podem sofrer modificações, conforme novas observações são feitas, hipóteses são testadas e corroboradas.
Os canais do YouTube do Pirula, o Papo de Primata e o Primata Falante já trataram do assunto e produziram excelentes vídeos.
A própria Teoria da Evolução já sofreu modificações, para se adequar a descobertas e observações feitas desde o tempo de Darwin, e hoje temos o Neodarwinismo, como foi explicado no artigo da seção Questionador Questionado, nesta revista, que responde se viemos dos macacos (spoiler: não, nós e os macacos viemos de ancestrais comuns).
Em seu célebre livro A Origem das Espécies, Darwin deixa muito claro que a obra não trata da origem da vida. Existem hipóteses científicas que buscam explicar o surgimento da vida, hipóteses que levam em conta e não contradizem as teorias aceitas pela ciência – da Relatividade à Evolução.
Colocar criacionismo e evolução em um mesmo patamar não faz, portanto, o menor sentido. Além disso, o criacionismo oferece uma explicação sobrenatural para a vida na Terra, o que está fora do escopo da ciência.
Algumas formas de criacionismo são, de fato, incompatíveis com o conhecimento científico – por exemplo, a alegação de que todas as espécies surgiram praticamente ao mesmo tempo, poucos milhares de anos atrás – mas a hipótese geral de criação divina, sem mais detalhes, não tem como ser refutada, logo não pode ser chamada de ciência. É uma questão de fé.
Teorias e Leis científicas são exaustivamente testadas, e estão sempre abertas à refutação – basta que surjam evidências convincentes de que estão erradas. Os maiores esforços dos cientistas são voltados para descobrir como as coisas NÃO são, elaborar hipóteses e tentar explicar fenômenos naturais que observamos.
Todas as teorias e leis científicas têm que ser comprovadas por experimentos?
Teorias científicas podem ser (e são) elaboradas mesmo sem experimentos. Na área da Astronomia, não conseguimos realizar experimentos para testar muitas das hipóteses, porque o que observamos, ao olhar cada vez mais longe no universo, é o passado distante, e é um pouco difícil fazer com que dois buracos negros colidam sob condições controladas, dentro de um laboratório. Nem por isso a Teoria do Big Bang para a origem do universo deixa de ser válida. O Canal Nerdologia fez um vídeo bem didático sobre o assunto.
Além disso, as explicações dadas pela ciência podem mudar, contanto que novas hipóteses expliquem melhor os mesmos fenômenos, e outros cientistas consigam reproduzir ou chegar às mesmas conclusões, através de cálculos independentes, novos experimentos e observações. O que não acontece com a fé. A fé é baseada em dogmas imutáveis.
Agora, voltando à fala de Damares, a provocação inversa é válida para os cientistas: será que não é a ciência que cada vez mais perde espaço na sociedade? Estamos vivendo uma onda de obscurantismo com movimentos antivacinas, terraplanistas e, daqui a pouco, antigravidade. Temos de fazer um esforço tremendo para provar que a Terra não é plana, enquanto os terraplanistas participam de cruzeiros marítimos que dependem da cartografia esférica para não se perderem.
O cientista precisa estar presente, constantemente, na vida pública e nas decisões políticas para, inclusive, lembrar a todos que existe uma razão para a bola de futebol não ir parar na Lua quando é chutada. E a causa disso não é o poder da mente, nem os alienígenas do passado.
Luiz Gustavo de Almeida é biólogo e pesquisador do Laboratório de Genética Bacteriana do Instituto de Ciências Biomédicas da Universidade de São Paulo, coordenador dos projetos Cientistas Explicam e Pint of Science na cidade de São Paulo