Chegou a época das profecias de Ano Novo!

Artigo
19 dez 2018
Autor
Capas de revistas de previsões astrológicas

Em 2018, o planeta Júpiter esteve na casa da sorte de Luís Inácio Lula da Silva, o que fazia dele um forte contendor nas eleições presidenciais.  Jair Bolsonaro, por sua vez, teve o gigante gasoso, com seu diâmetro de 140 mil quilômetros, numa posição menos favorável, o que compreensivelmente prejudicava – sobremaneira – suas chances de vitória.

Essas ponderações, de autoria do astrólogo João Bidu, foram imortalizadas pelo jornal popular carioca O Dia, em sua edição de 14 de dezembro de 2017. Outra fonte consultada por O Dia, a cartomante Sara Zaad, previa que Lula faria alianças com a direita, sairia do PT e acabaria eleito.

A terceira vidente ouvida pelo diário, a “sensitiva” (?) Márcia Fernandes, apostou em Bolsonaro para presidente e previu “muita falcatrua na política” (precisava ser sensitiva para isso?). Acrescentou ainda que “vai ter uma epidemia nova no mundo e a cura de outra epidemia”. Sobre a Copa do Mundo, Bidu e Fernandes foram cautelosos – Brasil tinha chances, só que talvez não levasse – mas Zaad cravou Brasil vice. Nos pênaltis.

E chegamos mais uma vez a esta época do ano: quando a imprensa resolve gastar papel, tinta e bits recorrendo àqueles que se dizem capaz de prever o futuro e pedindo palpites para o ano seguinte; palpites que, no fim, não são melhores (e às vezes são piores) que os chutes dos cidadãos não-iluminados, enquanto enchem a cara na mesa do bar.

O fato é que, como profeta político, João Bidu é um excelente empresário (sua editora Alto Astral, que publica uma ampla linha de periódicos esotéricos, é uma potência do interior paulista). E o tarô da cartomante Zaad definitivamente não entende nada de futebol.

Brincadeiras à parte, no entanto, é curioso notar como essa indústria da previsão de fim de ano opera: o segredo é prever muito, ser vago na maior parte do tempo, mas cravar um ou dois chutes bem específicos. A ideia é que as previsões vagas podem ser facilmente renegadas ou reinterpretadas, e os chutes específicos raramente serão lembrados – a menos que o próprio profeta chame atenção para eles mais tarde, caso se confirmem.

Também é importante reparar na multiplicidade de vozes, que garante que alguém sempre estará certo sobre alguma coisa: das três fontes ouvidas por O Dia, por exemplo, Bidu poderia reivindicar um acerto até mesmo no caso de vitória de Haddad ou de qualquer nome apoiado pelo PT (afinal, Lula estava “com sorte”, o que é vago o suficiente). Fernandes, enfim, previu Bolsonaro.

Quando se trata de dizer as coisas de modo vago, fica difícil encontrar alguém que faça isso melhor do que “a astróloga mais famosa do mundo”, Susan Miller, que no fim do ano passado leu o mapa astral do Brasil a pedido da revista Cláudia, a fim de nos aconselhar sobre 2018.

O resultado mistura exortações genéricas (“É hora de fazer, Brasil! Chega de só planejar. Saturno insistiu no crescimento, mostrou o que é benéfico, mas não há ganho sem muito trabalho”), obviedades (”são necessários líderes que busquem resultado, uma visão de futuro diferenciada. Esses postos precisam ser preenchidos com pessoas com tino para tal”) e uma tentativa de profecia um tanto quanto constrangedora (“três setores devem obter maior crescimento [...] São eles a pesquisa científica, o trabalho humanitário e o desenvolvimento”).

Almanaque

Mas dar palpites em publicações para o público em geral é apenas parte do trabalho dos gurus esotéricos no fim do ano. Esta é a época em que as bancas de jornal ficam abarrotadas de guias astrológicos, manuais de profecia e almanaques místicos, tudo direcionado a quem deseja erguer o véu e vislumbrar o que o próximo ano nos reserva.

Uma das mais tradicionais dessas publicações é o Almanaque do Pensamento, que se orgulha de estar em sua 107ª edição anual.

O almanaque traz muitas informações interessantes, ainda que de utilidade duvidosa para o mundo urbano contemporâneo – data e horário do início das estações, das mudanças de fase da Lua. A parte preditiva, enfim, se divide entre a que depende de ciências duras (por exemplo, datas de eclipses), e que é bem precisa, e a que se vale de astrologia, numerologia e misticismo chinês – onde imperam os tempos subjuntivos.

O artigo que abre o almanaque, intitulado “Um Vislumbre para 2019”, tem 11 expressões condicionais (“parecem”, “possível”, “tende”, “grande possibilidade”, “pode”...) em 35 linhas. A média é praticamente de uma incerteza a cada três linhas.

Já o horóscopo para o Brasil mistura afirmações abertas a ampla interpretação (“Plutão recebe um sextil [...] evidenciando a efetividade do poder Judiciário” – o que é “efetividade?”) a condicionais evidentes (“pode indicar mais transparência”, “o governo poderá se empenhar”, “poderia colocar em evidência”...).

Mesmo previsões com foco mais fechado vêm acolchoadas dessa forma – o setor imobiliário “poderá ser afetado” (o texto não crava que “será afetado”) por certos “aspectos tensos” entre os planetas. E assim por diante: novas lideranças políticas “podem surgir”, a violência urbana “pode” continuar, e a ação da Justiça “poderá oxigenar a vida política”.

Experimento

Mas mesmo esses “podes” podem (com o perdão da ironia involuntária) ser testados: afinal, de todo o universo de possibilidades – mercado imobiliário, bolsa de valores, crime urbano, culinária, futebol – alguns assuntos são destacados, outros não. É razoável supor que os temas selecionados tenham recebido alguma marcação especial dos astros.

Como testar isso? Tive a ideia de comparar os destaques do Almanaque do Pensamento com os de um produto similar, de uma fonte concorrente: no caso, o Grande Guia 2019 – Horóscopo Total de João Bidu.

A revista de Bidu, no entanto, não traz um horóscopo do Brasil: entra direto nas previsões para os consulentes individuais, separados por signo solar. Felizmente, o Almanaque do Pensamento também traz previsões por signo solar, o que permite um comparativo. Por meio de um processo de seleção aleatória (passando o polegar pelas páginas e parando quando dava vontade), cheguei a três signos – Touro, Escorpião e Gêmeos – e comparei as previsões e advertências feitas nas duas publicações.

O guia de João Bidu alerta os taurinos para possíveis (o modo subjuntivo não vai embora nunca) problemas de saúde nos primeiros 45 dias de ano. Também indica mudanças importantes para a vida profissional em janeiro. Já o Almanaque do Pensamento, ao tratar do mesmo período, não diz uma palavra sobre saúde, mas chama atenção para um período de “charme” excepcional, que facilita conquistas amorosas, entre 11 e 20 de janeiro, mesmo período em que Bidu adverte para fragilidades na saúde.

Os geminianos precisam tomar cuidado com a saúde, inclusive a saúde sexual – durante boa parte do ano, de abril a setembro, adverte João Bidu. Mas o Almanaque do Pensamento prevê “bem -estar físico e psíquico” em maio, durante o período crítico para saúde apontado pelo Grande Guia 2019.

Para os escorpianos, o Almanaque do Pensamento sugere atividades intelectuais, reparos domésticos, leituras e investimentos financeiros entre fevereiro e abril, mesmo período em que o Grande Guia 2019 promete que “o clima vai pegar fogo na conquista e ficadas incríveis”. Sucesso profissional deve chegar na segunda quinzena de novembro, segundo João Bidu, mesmo período em que, de acordo com o Almanaque do Pensamento, é hora de marcar uma viagem de lazer e descanso.

Em resumo, eventos e tendências que um guia considera relevantes são ignorados pelo outro, e vice-versa. Em questões de trabalho e saúde, há até mesmo, contradição direta – ou tão direta quanto possível, em textos recheados de condicionais, de “podes”, de promessas frouxas e afirmações fáceis de desmentir.  

Existe uma arte em produzir textos que parecem dizer coisas profundas e importantes quando, na verdade, não dizem nada; que podem ser interpretados como afirmando tudo e seu oposto. Infelizmente, os consumidores desse tipo de material não estão interessados em técnica literária ou precisão, mas em informação, mesmo que infundada. E, nesse caso, o melhor que vão conseguir – caso comprem o Almanaque – é saber que haverá um eclipse do Sol, visível no Brasil, na tarde de 2 de julho.

Carlos Orsi é jornalista e editor-chefe da Revista Questão de Ciência

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