Pseudoarqueologia da Netflix chega à Amazônia

Apocalipse Now
19 out 2024
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Ancient Apocalypse

 

Uma nova série “documental” da Netflix acaba de incluir os indígenas da Amazônia na lista de grupos humanos que, segundo a pseudoarqueologia moderna, são incapazes de inventar ou descobrir coisas por si mesmos: assim como os antigos egípcios supostamente precisaram de ajuda – de ETs ou dos sobreviventes da Atlântida – para projetar e erguer as pirâmides, os povos amazônicos receberam o segredo da terra preta e a fórmula da ayahuasca de sábios civilizadores estrangeiros. A série, “Revelações Pré-Históricas – As Américas”, em seis episódios (classificados pelos produtores como de não ficção), estreou semana passada.

“Revelações Pré-Históricas – As Américas” é segunda temporada de Ancient Apocalypse (literalmente, “Apocalipse Antigo”, mas que a Netflix brasileira preferiu traduzir de outro modo). Assim como a temporada anterior, a série é baseada na obra de (e apresentada por) Graham Hancock, um ex-jornalista convertido em autor de best-sellers pseudocientíficos sobre arqueologia.

Essa nova temporada bebe, principalmente, no livro “America Before: The Key to Earth Lost Civilization”, publicado por Hancock em 2019. O livro tem uma seção de quase cem páginas dedicada ao Brasil, e que ao menos para mim se lê como uma espécie de “gêmeo do mal” de outra obra, publicada dois anos antes: “1499: O Brasil Antes de Cabral”, de autoria do jornalista Reinaldo José Lopes.

Tanto Lopes quanto Hancock expressam admiração por feitos como o desenvolvimento da terra preta – um solo “antropizado”, ou artificial, altamente fértil – e a domesticação da flora amazônica. Mas para Hancock essas não foram conquistas tecnológicas dos povos indígenas e de seus ancestrais, e sim dádivas de mestres-civilizadores vindos de algum outro lugar (a palavra “Atlântida” não chega a ser mencionada nesta segunda temporada, mas ocorre na primeira). A lista de tecnologias indígenas que Hancock atribui aos atlantes, no livro, inclui ainda o curare, a ayahuasca e a desintoxicação da mandioca brava. Na série, a ayahuasca aparece.

(Hancock tem um fraco por experiências místicas: na série e, com mais ênfase, no livro, ele sugere que a ciência da civilização perdida usava “não apenas métodos empíricos, mas também técnicas xamânicas, visões, encontros fora-do-corpo com o ‘mundo espiritual’”. Ele escreveu um livro inteiro, “Supernatural”, de 2005, relançado em 2022 numa edição ampliada com o título “Visionary”, todo sobre suas viagens psicodélicas.)

 

Erros

Graham Hancock é o principal promotor moderno de dois erros que historiadores e arqueólogos sérios abandonaram há muito tempo: o difusionismo e o evemerismo. E assimila a ambos um terceiro, importado dos negadores da Teoria da Evolução: a ideia de complexidade irredutível.

“Difusionismo” é a ideia de que inovações tecnológicas, descobertas científicas e mesmo conceitos estéticos, religiosos e filosóficos surgem apenas uma vez na história da Humanidade, e se espalham a partir da fonte original. Assim, por exemplo, o fato de haver pirâmides no Egito e no México indicaria algum tipo de contato entre os antigos egípcios e os maias – ou dos maias e egípcios com “alguém” – e não o simples fato de que pirâmides são um modo bem eficiente de empilhar pedras.

É claro que ideias, conceitos e tecnologias se difundem – basta pensar na moda, no cinema, no automóvel, para ficar em apenas alguns exemplos contemporâneos. O problema está em tratar a difusão como única explicação viável.

Mas, sendo os seres humanos todos membros de uma mesma espécie, com uma mesma herança genética e habitando um planeta onde, a despeito das diferenças locais de fauna, flora e clima, operam em toda parte as mesmas leis da física, da química e da biologia, não é difícil imaginar que problemas comuns possam levar a soluções comuns ou muito semelhantes, soluções que provavelmente surgiram, de forma independente, em diferentes tempos e lugares – da conquista do fogo à invenção da roda à constatação de que prestar atenção nos movimentos do Sol, da Lua e das estrelas pode ajudar a prever coisas importantes como mudanças do clima, migrações de animais, o amadurecimento de plantas etc.

Livro e série sugerem, com uma ingenuidade quase cativante, que a melhor explicação para a presença de geoglifos – figuras desenhadas no solo – em forma de quadrado e círculo tanto na Amazônia quanto em Ohio, nos Estados Unidos, é de que os povos pré-históricos dos dois lugares aprenderam geometria com os mesmos mestres. Isso tem tanta lógica quanto supor que a presença de música cantada em diferentes partes do mundo indica que uma raça ancestral de professores de canto percorreu o planeta na pré-história.

 

Ovo e galinha

“Evemerismo”, por sua vez, é a hipótese de que relatos mitológicos sobre deuses, monstros e heróis preservam histórias reais de reis e grandes vultos do passado. Hancock se apega ao fato de que diversos povos têm mitos sobre grandes desastres e heróis civilizadores para sugerir que um grande desastre global realmente ocorreu milênios atrás, e que os sobreviventes da civilização destruída nesse desastre tornaram-se refugiados que se dedicaram a educar os selvagens do resto do mundo.

Há um monte de problemas aí, a começar pela forma como Hancock distorce os mitos para que se encaixem em sua interpretação particular, passando pela desconsideração da possibilidade de que mitos semelhantes – como diferentes narrativas de dilúvio – possam simplesmente ter surgido de experiências semelhantes (assentamentos humanos tendem a se localizar perto de mares, rios e lagos, e enchentes acontecem), e de sincretismo (alguns “mitos indígenas” sobre dilúvio são, na verdade, adaptações e apropriações da história de Noé, trazida por missionários).

Já “complexidade irredutível” pressupõe que uma tecnologia – como a receita do chá de ayahuasca, ou a terra preta – só é útil em sua forma final. Na série, Hancock bate seguidas vezes na tecla da terra preta, uma invenção indígena que torna a agricultura viável no solo naturalmente pouco fértil da Amazônia. Como a terra preta depende de detritos produzidos por seres humanos, o autor vê um cenário “ovo e galinha”: é preciso uma população grande para gerar a terra preta necessária para sustentar uma população grande. Mas sem a terra preta, como poderia haver uma população grande? E sem a população, como foi feita a terra preta?

A ideia (que deveria parecer óbvia) de que os dois processos ocorreram de forma concomitante, em troca mútua – uma pequena população, no passado distante, gerando um pouco de algo que poderia ser um precursor da terra preta, o que permitiu ampliar a população, o que permitiu gerar um pouco mais do precursor, e nesse meio tempo as pessoas encontraram modos de tornar a terra ainda melhor, e a população cresce mais um pouco, e assim por diante – parece inconcebível para Graham Hancock, a ponto de ele decidir que a única explicação viável é “atlantes”.

 

Retórica

Esta segunda temporada de Ancient Apocalypse distingue-se da primeira não penas pelo foco – o Novo Mundo –, mas também pela retórica. E de duas maneiras.

A primeira é uma maior discrição. Na maior parte do tempo, desta vez Hancock se abstém de fazer afirmações claramente pseudocientíficas – um escorregão ocorre quando ele menciona, no episódio 4, “tecnologias inexplicáveis” dos incas, insinuando o uso de raios de calor e, talvez, levitação. Em vez de se expor abertamente, ele apela, de modo recorrente, para a falácia do non sequitur, em que uma conclusão claramente falsa é apensada ao final de uma série de afirmações mais ou menos correta, por exemplo: “o céu é azul, a terra é redonda, logo porcos voam”.

O truque é popular entre formuladores de teorias de conspiração, que adoram jogar com fatos díspares, isolados, apresentando-os de forma a criar a impressão de que estariam ligados por alguma conexão oculta – e sugerindo que, juntos, apoiam alguma conclusão insustentável.

No caso de Ancient Apocalypse, temos diversas informações reais, como o alinhamento astronômico de monumentos antigos, a forma geométrica dos geoglifos, a existência de tecnologias indígenas como a terra preta, elencadas para levar à conclusão – injustificada – de que o passado profundo da Humanidade esconde uma raça perdida de mentores civilizatórios.

O uso exaustivo de non-sequiturs tem dois efeitos psicológicos: cansa o leitor/espectador, reduzindo momentaneamente a capacidade de atenção e as faculdades críticas; ao mesmo tempo, ao enumerar verdades com que o leitor/espectador vai concordar (porque são verdades), deixa-o propenso a, por inércia, concordar também com a conclusão.

A segunda mudança retórica é uma surpreendente (para quem está familiarizado com o modo usual de Hancock se apresentar) humildade. Não que ele se mostre especialmente modesto: nesta segunda temporada, temos Keanu Reeves (!!) aparecendo em momentos aleatórios para nos dizer como Graham Hancock é genial (e quem vai se expor ao risco de discordar de John Wick?). Também, Hancock não nos deixa esquecer de que está “numa missão de mais de 30 anos” para revelar a verdadeira história da espécie humana.

Desta vez, no entanto, suas invectivas contra a arqueologia “oficial” – aquela feita por arqueólogos que realmente entendem do que estão falando – são muito menos virulentas.

Hancock segue sendo incapaz de entender (ou fingindo ser incapaz de entender) que o fato de uma ciência mudar seus pronunciamentos com o passar do tempo e o acúmulo de novas evidências não é sinal de que os cientistas não sabem do que estão falando, ou de que a ciência vive saltando de um “dogma” para outro, mas sim de que o conhecimento evolui à medida que novas descobertas são feitas. E segue preso à ilusão de que “os cientistas podem estar errados” equivale a “eu posso estar certo”.

Mas, desta vez, essas falácias são introduzidas de modo muito mais respeitoso do que o usual. Ele até se mostra generoso a ponto de agradecer à “arqueologia científica” pelos fatos que apresenta. Entre as fontes que ouve e apresenta na tela, há cientistas legítimos, há cientistas legítimos que flertam com hipóteses pouco ortodoxas e há pseudocientistas de carteirinha. Hancock não faz nenhum esforço para distinguir uns de outros, e mal posso imaginar o que os pesquisadores de verdade que aceitaram participar da série vão sentir, ou estão sentindo, ao assistir ao produto finalizado.

 

Apocalipse... quando?

Hancock também volta a revisar sua previsão do fim do mundo. Na primeira temporada de Ancient Apocalypse, ele sugere que os atlantes teriam deixado avisos sobre alguma tragédia global iminente. O autor tem um longo histórico de datar o fim do mundo e, depois, agir como nunca tivesse dito nada a respeito.

Em seu livro de 1995, “Fingerprints of the Gods: The Evidence for Earth’s Lost Civilization” (“Digitais dos Deuses: A Evidência da Civilização Perdida da Terra”), ele leva a sério o suposto “apocalipse maia” de 23 de dezembro de 2012. Citando ao pé da letra (página 127): “Suponha que eles [os maias] soubessem algo que nós não sabíamos? Mais importante ainda, suponha que a data projetada para o fim do Quinto Sol estivesse correta? Suponha, em outras palavras, que alguma catástrofe geológica realmente terrível já esteja em andamento, nas profundezas das entranhas da Terra, como os sábios maias previram?”

Em “Magicians of the Gods”, de 2015, ele dá uma de desentendido e se refere à crença no apocalispse de 2012 como “nonsense”. Acrescenta que, na verdade, o fim do mundo está previsto pelos maias para uma “janela de 80 anos” que se estenderia de 1960 a 2040.

Agora, na segunda temporada de Ancient Apocalypse, a tal janela de 80 anos é movida para o período 2000 a 2080. Nascido em 1950, Hancock pelo jeito não quer mais correr o risco de ser desmentido pelos fatos em seu nonagésimo aniversário.

 

Carlos Orsi é jornalista, editor-chefe da Revista Questão de Ciência, autor de "O Livro dos Milagres" (Editora da Unesp), "O Livro da Astrologia" (KDP), "Negacionismo" (Editora de Cultura) e coautor de "Pura Picaretagem" (Leya), "Ciência no Cotidiano" (Editora Contexto), obra ganhadora do Prêmio Jabuti, "Contra a Realidade" (Papirus 7 Mares) e "Que Bobagem!" (Editora Contexto)

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