Alguns amigos, ao longo da semana, chamaram minha atenção para um material publicado num grande portal de imprensa promovendo a curiosa hipótese da simulação – a ideia de que o Universo em que vivemos é, na verdade, uma peça de software criada por algum tipo de inteligência alienígena. Talvez um videogame ou filme de animação, produzido numa escala, para nós, inimaginável.
A hipótese da simulação é um bom assunto para conversa de botequim, especialmente para o momento, por volta das duas da manhã, em que todos atingem aquele estado de lucidez mística, absoluta, que apenas o excesso de sono e o excesso de álcool, atuando em conjunto, são capazes de produzir.
Como hipótese científica, no entanto, deixa muito a desejar. No limite, é idêntica a uma teoria paranoica da conspiração – qualquer fenômeno curioso, aparentemente inexplicável ou inesperado pode ser interpretado como prova da inteligência superior (ou da malícia, ou de “erros de renderização”) dos programadores da simulação.
Mas nem é preciso ir tão longe. Uma hipótese científica razoável deve ter poder heurístico (capacidade de ajudar a resolver problemas), explicativo (capacidade de organizar e trazer lógica a fatos e dados empíricos) e preditivo (capacidade de sugerir a existência de fenômenos ainda não observados, ou os resultados de experimentos ainda não realizados) que se mostrem iguais ou superiores aos de hipóteses rivais tão ou mais plausíveis.
Além de ser extremamente frágil dos pontos de vista heurístico e preditivo, e potencialmente tautológica em termos explicativos (dizer “é uma simulação” dá a impressão de que explica tudo sem, na verdade, explicar nada), a hipótese perde de lavada no quesito plausibilidade. Pode ser impossível descartá-la em termos puramente lógicos, mas em termos tanto lógicos quanto empíricos, faltam razões mínimas para supor que esteja certa.
Verdadeiro ou instigante?
Esse critério – “razões para supor que esteja certa” – tem uma importância que só é superada pelo desdém com que costuma ser tratado na maioria dos debates de ideias. É assustador: afirmações e hipóteses são aceitas ou, no mínimo, tidas como dignas de consideração apenas porque alguém se deu ao trabalho de formulá-las e apresentá-las de modo instigante, não porque venham bem embasadas ou acompanhadas de razões cogentes.
Já tratei da distinção entre possibilidade e plausibilidade em outro artigo (e em meu livro “Negacionismo”), mas o recente hype em torno da hipótese da simulação me trouxe à mente um ponto que havia encontrado durante minhas leituras para escrever o artigo sobre Frederick Crews publicado neste espaço semanas atrás: a renúncia, por parcela importante dos autores do universo da não ficção – incluindo aí acadêmicos das Humanidades, cientistas e jornalistas – da busca pela verdade. Ou, parafraseando um crítico literário citado por Crews, “não preciso estar certo, só preciso dizer coisas interessantes”.
A questão aí não é que todo autor de não ficção tem, ou deveria ter, a obrigação de sempre estar certo, o que é claramente impossível; mas que deveria, como parte de sua ética profissional, esforçar-se nesse sentido: conduzir um trabalho sincero e honesto para tentar garantir que as ideias que apresenta ao mundo correspondam, da melhor forma possível, aos fatos.
Se vão corresponder ou não é algo que provavelmente está fora do controle do autor: ninguém, afinal, tem acesso à plenitude da realidade, e seres humanos somos todos vítimas de gostos pessoais e de vieses mais ou menos inconscientes. É por isso que o empreendimento intelectual é coletivo e a crítica dos pares, tão importante.
O que Crews diagnostica e lamenta (em ensaios publicados a partir da década de 1980) é a perda, até mesmo, da intenção sincera de estar certo. A substituição de parece verdadeiro por soa interessante como justificativa última para se afirmar alguma coisa, em campos onde o respeito pelos fatos costumava ser fundamental.
Conteúdo ou conhecimento?
Num primeiro momento, a troca pode parecer libertadora, democrática, fecunda. No entanto, a longo prazo o risco é de se atingir um grau de circularidade e irrelevância comparável ao das mais cruéis caricaturas da teologia medieval – o que, por sua vez, vai alimentar o populismo antiacadêmico e o anti-intelectualismo.
Mas a tendência talvez seja irresistível. Ao borrar a distinção hierárquica entre produção de conhecimento e produção de conteúdo, a ética do “interessante” abre caminho para a infinita multiplicação das publicações, numa solução aparente ao dilema “publicar ou perecer” que contamina não só as Humanidades (alvo original do diagnóstico de Crews) mas todas as ciências. A multiplicação mágica das palavras vazias serve também ao avanço de carreiras fora da academia: o mundo contemporâneo do jornalismo, dos podcasts, talk-shows, stories, instagrams e tik-toks produz imensos vácuos discursivos que precisam ser preenchidos.
O jornalismo de ciência é obviamente afetado pela “nova” constituição, que se encaixa perfeitamente com dois velhos vícios da atividade jornalística, o fait-divers e o aspismo.
Fait-divers é o evento excepcional que tende a se esgotar em si, apresentado como fato bruto e desprovido de contexto: a galinha de duas cabeças, o avistamento de disco voador. Já aspismo, ou jornalismo declaratório, aparece quando o jornalista, sob o pretexto de estar apenas “abrindo espaço”, “dando voz” ou “reportando as declarações” de alguém, se limita a transcrever acriticamente e sem checagem o que uma fonte (em geral, uma autoridade) lhe diz. Com isso, o responsável pela publicação passa a contar com o escudo retórico da “negação plausível” – não foi o jornalista ou o veículo quem disse, mas a fonte.
Quando o assunto é ciência, a fonte que empresta autoridade para que o jornalista se apresente como inimputável é, em geral, um pesquisador, médico ou professor – o que só reforça a armadura: “quem sou eu”, pobre repórter, para questionar o que o “doutor” (ou “pós-doutor”) diz? O que se escamoteia, aí, é que declarações e entrevistados não brotam por geração espontânea: a decisão sobre quem ouvir, o que perguntar e o que publicar é essencialmente jornalística.
Pode-se argumentar que, quando o assunto é comunicação de ciência (o que inclui o jornalismo, mas nem de longe se limita a ele), essa substituição do critério de “boas razões para acreditar” pelo de “boas histórias para contar” causa muito menos dano do que em outras áreas, como política, justiça criminal, etc. E que sobrepor o “interessante” ao “verdadeiro”, nesse caso, faz parte do jogo.
Pode até ser. Mas essas concessões ao espírito dos tempos estão longe de ser inofensivas. No mínimo, reforçam a ideia de que a realidade não passa de uma simulação – criada não por alienígenas semidivinos, mas por nós mesmos.
Carlos Orsi é jornalista, editor-chefe da Revista Questão de Ciência, autor de "O Livro dos Milagres" (Editora da Unesp), "O Livro da Astrologia" (KDP), "Negacionismo" (Editora de Cultura) e coautor de "Pura Picaretagem" (Leya), "Ciência no Cotidiano" (Editora Contexto), obra ganhadora do Prêmio Jabuti, "Contra a Realidade" (Papirus 7 Mares) e "Que Bobagem!" (Editora Contexto)