Freud, Marx e o Ursinho Pooh

Apocalipse Now
3 ago 2024
Autor
Winnie the Pooh

 

No fim de junho, o mundo perdeu Frederick Crews – crítico literário, professor emérito de Língua Inglesa da Universidade da Califórnia em Berkeley e, ao longo de uma carreira como intelectual público que se estende por mais de seis décadas, um daqueles poucos, raros acadêmicos que sempre preferiram a integridade de princípios à boa vontade dos pares. Em 91 anos de vida, Crews ficou famoso duas vezes – a primeira, em 1963, com a publicação de “The Pooh Perplex”, um best-seller inesperado; e a segunda, a partir de 1993, ano em que seu explosivo artigo “The Unknown Freud”, publicado em The New York Review of Books, deu início às “guerras freudianas” sobre o verdadeiro legado de Sigmund Freud e do movimento psicanalítico.

Separados por 30 anos, “The Pooh Perplex” e “The Unknown Freud” são animados por um mesmo espírito cético e crítico – que se manifesta de modo relaxado e brincalhão no primeiro caso, agudo e decididamente sério no segundo. “Perplex” é uma sátira: uma série de supostas análises acadêmicas das aventuras do Ursinho Pooh, cada uma delas escrita por Crews numa paródia do estilo dominante em alguma escola das Humanidades – marxista, freudiana, existencialista etc. O Crews “marxista” vê em Piglet o potencial revolucionário do proletariado; o “freudiano” encontra sinistras implicações edipianas no fato de que nenhum dos bichinhos de pelúcia da coleção de Christopher Robin tem pai.

Divertida, a coleção de paródias, assinada por um então recém-doutor (Crews havia obtido seu PhD em Princeton em 1958), já aponta para o que viria a ser uma das preocupações dominantes do autor maduro, e que o colocaria em rota de colisão com a psicanálise e o culto de Sigmund Freud: a atração fatal das Humanidades por esquemas teóricos rebuscados, logicamente circulares, que se perdem em labirintos doutrinários e confundem retórica com rigor, abandonando o contato com a realidade.

 

Jornada cética

Ironicamente, foi a preocupação com adequação empírica – nossas ideias, afinal, correspondem aos fatos? – que o levou, de início, a se tornar um campeão do uso da psicanálise na crítica literária.

A razão não poderia ser mais cristalina: se a literatura é um produto da mente humana, e a mente humana é regida por leis e processos descritos corretamente na doutrina psicanalítica, então a psicanálise é uma fonte preciosa de insight literário. A essa fase de sua carreira pertence o livro de 1966 “Sins of the Fathers”, uma leitura freudiana da obra de Nathaniel Hawthorne.

O crescente desconforto de Crews, tanto com a segunda premissa – “a mente humana é regida por leis e processos descritos corretamente na doutrina psicanalítica” – quanto com o caráter ganancioso do pensamento psicanalítico (que se propõe a explicar tudo, da origem da civilização ao resultado das eleições), vai ficando claro no volume de ensaios “Out of My System”, de 1975. Ali, Crews ainda defende a psicanálise como instrumento útil na interpretação de obras de literatura, mas condena o que vê como aplicações exageradas. Por exemplo, quando o filósofo Norman O. Brown escreve que a história da Humanidade deve ser “vista como uma neurose, caminhando inexoravelmente e inconscientemente para a abolição...”, Crews exaspera-se:

“Primeiro seria necessário aceitar que a história pode ser, de alguma maneira útil, personificada como um paciente psicanalítico; e que não devemos parar para considerar detalhes como se a história do Oriente também conta, se a história de caso da história forma um contínuo através de épocas e culturas e se, de algum modo, faz sentido imaginar a história como tendo memórias reprimidas de traumas de infância”.

A trajetória entre a crença de que a psicanálise pode ser útil e válida, desde que mantida dentro de uma área adequada de aplicação, e a constatação de que a metragem dessa suposta “área adequada” corresponde a exatamente zero, completa-se no livro de ensaios seguinte, “Skeptical Engagements”, de 1986. O anúncio aparece logo na primeira página da introdução:

“Durante cerca de uma década estive convencido de que a psicanálise, com sua desconfiança das aparências e sua disposição estoica de encarar o indizível, seria um adendo útil a meus princípios céticos. Apenas em estágios hesitantes cheguei a reverter aquela opinião e a reconhecer que o freudismo é apenas uma fé como qualquer outra”.

“Skeptical Engagements” inclui, em sua primeira seção, quatro ensaios sobre psicanálise publicados em diferentes periódicos entre 1975 e 1985, sendo o último uma resenha de “Foundations of Psychoanalysis”, de Adolf Grunbaum.

As razões para a “apostasia”, como Crews se refere a sua rejeição radical da psicanálise, são desenvolvidas e argumentadas ao longo desses textos, em que o fio condutor é a falta de base epistêmica e de adequação empírica da doutrina. A psicanálise é, ao fim e ao cabo, baseada em “coisas que Freud disse”, mas a evidência histórica, científica e a própria obra que o médico vienense deixou mostram que ele não tinha nem razões válidas para dizê-las (ausência de base epistêmica) e nem o que disse corresponde aos fatos (ausência de adequação empírica).

A ilusão de solidez é produzida por manipulação retórica e apelo à vaidade dos convertidos (o tratamento psicanalítico “parece produzir mais convertidos do que curados”, escreve Crews em “The Unknown Freud”), que passam a ter a chave interpretativa do Universo. Ou:

“Não foi por aumentar nosso conhecimento científico, mas sim por preparar uma engenhosa poção inebriante de neurofisiologia especulativa, conceptualização mitológica sobre agentes psíquicos subterrâneos, charme literário, truques de debatedor, alegações terapêuticas mendazes e contos sexuais picantes e grotescos que Freud, no fim, capturou a imaginação da civilização – ou, pelo menos, daqueles de seus membros que estavam tentando modernizar sua moralidade e enxergar através de todas as ‘sublimações’, incluindo aí os avanços da verdadeira ciência, de que se ressentem”. (da Introdução a “Skeptical Engagements”)

No ensaio “The Liberal Unconscious”, ele aponta que esse defeito de origem se repete ao longo da tradição psicanalítica, e nas tentativas de adaptar Freud aos tempos modernos – já que nem mesmo os discípulos reformistas abrem mão do “modo freudiano de tirar inferências”, sempre “disposto a corroborar um sem-número de palpites contraditórios sobre qualquer fenômeno dado, que pode, segundo os caprichos do analista, ser visto como aquilo que parece ser, seu exato oposto ou qualquer outra ideia que foi supostamente ‘deslocada’”.

Os ensaios das demais seções de “Skeptical Engagements” não poupam outros modismos culturais-acadêmicos, como o marxismo ou o desconstrucionismo, e que Crews ataca pelas mesmas razões que o levam a rejeitar a psicanálise: por serem sistemas teóricos fechados, circulares – que não reconhecem critérios de validade externos a si mesmos –, sustentados por comunidades intelectuais cujo modus operandi consiste em desqualificar críticos, em vez de engajar com a crítica.

Para tratar do marxismo, Crews lança mão do pensamento do filósofo da ciência Michael Polanyi, onde encontra o conceito de “acoplamento dínamo-objetivo”, propriedade de doutrinas "baseadas em fé" que se proclamam, ao mesmo tempo, cientificamente exatas e moralmente necessárias. Quem questiona a cientificidade da doutrina é imoral (“onde está sua solidariedade para com os oprimidos?”). Quem questiona a moralidade de sua aplicação (mencionando, por exemplo, os gulags ou a Revolução Cultural) é um ingênuo sentimental pequeno-burguês, que não entende as leis científicas da necessidade histórica.

Polanyi vê aí um círculo vicioso. “Alegações supostamente científicas, aceitas como tal porque satisfazem paixões morais, excitam essas paixões ainda mais, portanto emprestam ainda maior poder de convicção às afirmações científicas – e assim por diante, indefinidamente”, escreve ele no livro “Personal Knowledge”. Essa é uma passagem que Crews cita tanto em “Out of My System”, de 1975, quanto em “Skeptical Engagements”.

 

Guerras freudianas

As publicações reunidas em “Skeptical Engagements”, nos anos 1980, fizeram de Crews alvo de críticas duras, muitas de caráter pessoal (“condescendência diagnóstica”, define ele, vinda de “freudianos que interpretaram minha apostasia mais como um sintoma do que como uma postura intelectual”).

Mas nada que pudesse prepará-lo para a avalanche de ataques pessoais que se seguiria ao artigo “The Unknown Freud”, lançado na edição de novembro de 1993 da prestigiosa revista literária The New York Review of Books, e depois ao ensaio em duas partes “The Revenge of the Repressed” (novembro e dezembro de 1994, na mesma revista).

No posfácio do livro que compilou esses artigos – e parte da reação crítica – “The Memory Wars” (“As Guerras da Memória”, publicado no Brasil em 1999 pela Paz e Terra e, até onde sei, única obra de Crews traduzida entre nós), o autor nota que “comentaristas que normalmente consideram anos de terapia diária insuficientes para compreender as estruturas inconscientes profundas de seus pacientes não tiveram escrúpulos em diagnosticar minhas fixações pelo correio”.

O trio de artigos insiste nos mesmos fatos expostos em “Skeptical Engagements”: os padrões de comportamento ético e de rigor científico do homem Sigmund Freud eram abominavelmente baixos, e sua cria, a psicanálise, é uma pseudociência. Essas não eram conclusões tiradas do ar, mas uma síntese cogente do trabalho de filósofos (Grunbaum, Popper, Cioffi, Gellner etc.) e historiadores (Sulloway, Swales, Masson, entre outros) que haviam se debruçado não apenas sobre a obra freudiana, mas também sobre documentos e depoimentos que só começaram a vir à tona a partir dos anos 1980, como a íntegra das cartas enviadas por Freud a Wilhelm Fliess.

A causa da revolta exacerbada – de psicanalistas e de acadêmicos de outras áreas que tinham a psicanálise como ferramenta – provavelmente estava no veículo em que a exposição havia aparecido: The New York Review of Books era um dos últimos bastiões dentro da cultura americana em que a psicanálise ainda podia se apresentar como respeitável, depois de décadas de declínio nos Departamentos de Psicologia das universidades e na clínica psiquiátrica.   

Ou, como o próprio Crews escreve no início de “The Unknown Freud”: “conceitos freudianos ainda circulam no conhecimento popular, nas artes e nas Humanidades acadêmicas, três áreas em que ideias defeituosas, mas que já foram modismos, protegidas contra testagem rigorosa, podem se manter ativas indefinidamente”.

Além de satirizar os psicanalistas que se punham a analisá-lo instantaneamente (à distância e de graça!), Crews, no posfácio a “The Memory Wars”, oferece uma distinção útil entre o suposto legado cultural de Freud e seu legado real. Freud, comenta ele, é creditado como originador de ideias como a da motivação inconsciente, a de que a mente engana a si mesma, a de que o desequilíbrio entre razão e desejo, entre realidade e fantasia, produz sintomas visíveis e é causa de sofrimento.

Mas, formulados assim, em termos tão genéricos, esses são conceitos que fazem parte do senso comum ocidental desde, pelo menos, os diálogos platônicos. Alguma versão deles pode ser encontrada em tradições de sabedoria, folclóricas e religiosas de diversas partes do globo, e na visão de mundo de movimentos literários como o Romantismo.

O que distingue Freud de Sócrates, Platão ou do Buda (ou de Shakespeare, ou Nietzsche, ou Goethe, ou do autor do Eclesiastes), o que seria seu “mérito” particular, é a forma específica que deu a essas ideias: ele afirmou ter descoberto de onde as motivações inconscientes vêm, o que as causa, porque se mantêm inconscientes, como podem ser reveladas; os mecanismos exatos pelos quais a mente administra os conflitos entre paixão e razão, fantasia e realidade; e como usar esse conhecimento para restaurar a saúde física e mental. Ocorre que tais pronunciamentos específicos carecem de fundamento, e a estrutura que os organiza é pseudocientífica.

Em resumo: os méritos genéricos atribuídos a Freud não pertencem a ele; e os específicos não são méritos.

 

Detonador

A polêmica em torno dos artigos para The New York Review of Books rendeu a Crews o apelido de “Freud basher”, algo como “detonador de Freud”. Surgiu então uma certa voga acadêmica de separar “Freud critics”, que apesar de terem lá suas ressalvas ainda tratavam a psicanálise com algum respeito (Adolf Grunbaum e Ernest Gellner costumam ser incluídos nesse grupo) e os “bashers”, malcriados e apelativos. Mas trata-se de uma distinção apenas superficial: diferenças de tom não implicam diferenças de substância, e tanto “bashers” quanto “críticos”, em geral, reconheciam entre si muito mais similaridades de pensamento do que diferenças.

Sobre o rótulo de "basher", Crews escreveu que “detonar Freud é apenas submeter, num processo que já deveria ter ocorrido há muito tempo, as ideias freudianas aos mesmos padrões de consistência, clareza, testabilidade, lógica, parcimônia e poder explicativo que prevalecem no discurso empírico em geral”.

De qualquer modo, ele parece ter se divertido – ainda que vivendo perigosamente – no papel. Um livro de ensaios de 2006, “Follies of the Wise”, traz alguns “causos” de interações em eventos universitários em que Crews se viu como única voz dissonante em meio a dezenas de psicanalistas e groupies acadêmicos da psicanálise (incluindo uma ameaça velada de “cancelamento” feita por Judith Butler).

“Follies of the Wise” não é apenas sobre psicanálise, no entanto: Crews jamais perdeu de vista a necessidade de militar pelo respeito à adequação empírica – pela necessidade de que teorias sobre fatos respeitem os fatos, em vez de distorcê-los – em todas as áreas de produção intelectual, incluindo as mais subjetivas, como sua disciplina de origem, a crítica literária. O livro é uma ampla crítica às tendências anticientíficas e antiempíricas no coração das Humanidades, à sedução dos modismos e dos discursos que soam politicamente corretos sem se preocuparem em estar empiricamente corretos – ou que rejeitam in limine a possibilidade (ou a desejabilidade) de corroboração empírica.

Se o tema da psicanálise recorre ao longo do livro, escreve ele, “é porque, como a rainha das pseudociências modernas, ela inaugurou os métodos e forneceu diretamente algumas das ideias por trás de outros atalhos para a ‘profundidade’”. Seu alvo maior é a noção de “conhecimento profundo, no sentido de um insight tão convincente que dispensa validação” empírica.

 

Ilusão

Em 2001, Crews havia publicado um segundo volume de resenhas satíricas do Ursinho Pooh – “Postmodern Pooh” –, em que a paródia se estende a modas intelectuais mais recentes, como o decolonialismo e a psicologia evolutiva; e, em 2017 saiu sua monumental e demolidora biografia de Sigmund Freud, “Freud – The Making of an Illusion”, livro que inexplicavelmente segue inédito no Brasil.

“The Making of an Illusion” é importante não apenas por ser uma das raras biografias de Freud escritas por alguém que não é um evangelista fervoroso da psicanálise – como os trabalhos mais famosos de Ernest Jones e Peter Gay –, mas também porque é uma das primeiras a sair depois do início da publicação da Brautbriefe, a vasta correspondência trocada entre Sigmund Freud e sua então noiva Martha Bernays, entre 1882 e 1886.

Esse material vinha sendo mantido em segredo há mais de um século: apenas as cartas mais inofensivas e os trechos congruentes com o mito freudiano haviam sido divulgados, e somente biógrafos e pesquisadores simpáticos à “causa” haviam recebido acesso ao acervo completo. A publicação integral desse conteúdo, sem censura, finalmente começou no ano 2000, encerrado o embargo imposto por Anna Freud.

Junto às cartas enviadas a Fliess e a outros materiais que vieram à tona nas últimas quatro décadas (como a interferência cruel de Freud na vida de Horace Frink), o retrato produzido não é nada lisonjeiro. Uma resenha do livro, publicada em The New York Times, diz que na biografia escrita por Crews, Freud, o personagem, “não evolui, só acumula uma folha corrida”. Em outra resenha, o psiquiatra (e ex-psicanalista) Peter Barglow reconhece que “Crews me convenceu a questionar ou descartar a maioria das contribuições espúrias de Freud”.

É impressionante notar que, quando da publicação de “The Unknown Freud”, Frederick Crews já era professor emérito há mais de 20 anos. Alguém poderia dizer que esperou atingir uma posição confortável da academia antes de comprar briga, mas isso seria falso: “Skeptical Engagements”, afinal, data dos anos 1980, e sua primeira crítica ao marxismo, enquanto ferramenta de interpretação cultural, é do início dos anos 1970, ainda no calor dos protestos estudantis e da ascensão da Nova Esquerda.

As reivindicações fundamentais presentes na parte mais contundente da obra de Frederick Crews – de que teorias devem ser julgadas por critérios externos a si mesmas, e de que afirmações sobre a realidade têm a obrigação de demonstrar base na realidade – parecem óbvias e pacíficas. É espantoso que fazê-las no ambiente acadêmico tenha sido, e ainda seja, uma atividade tão excepcional.

 

Carlos Orsi é jornalista, editor-chefe da Revista Questão de Ciência, autor de "O Livro dos Milagres" (Editora da Unesp), "O Livro da Astrologia" (KDP), "Negacionismo" (Editora de Cultura) e coautor de "Pura Picaretagem" (Leya), "Ciência no Cotidiano" (Editora Contexto), obra ganhadora do Prêmio Jabuti, "Contra a Realidade" (Papirus 7 Mares) e "Que Bobagem!" (Editora Contexto)

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