Pode ser coincidência, mas tenho encontrado cada vez mais, em minhas andanças online, o argumento de que não faz sentido criticar astrologia como pseudociência, porque a prática não teria pretensões científicas, seria mais algo como “esoterismo ou mitologia”. Trata-se de um argumento velho, cansado e fundamentalmente inválido.
Já tratei da pobreza dessa abordagem em um artigo bem longo, mas resumindo: nenhum estudioso de mitologia acha que um réptil gigante de sete cabeças (cabeças que nasciam de novo quando cortadas, sendo uma imortal) realmente vivia nos pântanos de Lerna até ser morto por Héracles, mas astrólogos realmente acham que há informação factual útil e confiável em cartas astrais.
Algo importante a não perder de vista é que qualquer sistema que se proponha a prever ou explicar eventos objetivos, palpáveis, que têm lugar no mundo real, ou características de seres e objetos que existem neste mundo, embute pretensões científicas, quer seus promotores estejam dispostos a reconhecer o fato ou não.
Mesmo sistemas (como as formas contemporâneas, mais sofisticadas, da astrologia) que alegam só prever tendências – isto é, que não apontam causas suficientes ou necessárias para os fenômenos, mas apenas associações ou causas contribuintes – são, em princípio, passíveis de análises estatísticas do tipo empregado na epidemiologia.
Por exemplo, os genes BRCA1 e BRCA2 não garantem que seus portadores terão câncer de mama, e o hábito de fumar não condena ninguém, com 100% de certeza, a ter câncer de pulmão, mas a afirmação de que aumentam o risco de desenvolver essas doenças foi verificada e confirmada epidemiologicamente – e poderia, dependendo dos resultados de estudos bem conduzidos, ter sido refutada. Por que a afirmação de que Sol em Capricórnio predispõe à avareza ou em Áries, à beligerância, seria diferente? Se “os astros predispõem, mas não impõem”, genes e hábitos de vida cujos efeitos são estatisticamente mensuráveis também fazem o mesmo.
Considerações de natureza filosófica à parte, no entanto, é preciso notar ainda que a afirmação de que a astrologia não tem pretensões científicas despreza uma parcela significativa de astrólogos que, sim, creem estar fazendo ciência. O americano Vernon E. Clark (1911-1967) acreditava ter comprovado a validade da astrologia por meio de métodos estatísticos. A astróloga Nona Gwynn Press conduziu uma análise estatística buscando encontrar fatores comuns em cartas astrais de suicidas – sem sucesso.
Não se tratam de casos isolados. A Associação Astrológica do Reino Unido publica há décadas o periódico Correlation, dedicado exatamente à “pesquisa em astrologia” – e não se trata de pesquisa mitológica (já escrevi sobre Correlation antes, por exemplo aqui e aqui). No editorial mais recente, o editor Robert Currey escreve que “é hora de explorar como a astrologia baseada em evidências pode servir à nossa comunidade”. Astrologia baseada em evidências.
O exemplo de Correlation é especialmente instrutivo porque as várias edições do periódico costumam vir recheadas de estudos que supostamente mostram associações entre aspectos do céu e características biográficas com valores “muito acima do esperado pelo acaso”, num fetichismo quase mágico em relação ao valor-p – uma medida da compatibilidade entre o resultado encontrado e a hipótese de que não existe um efeito específico a causá-lo – que é comparável ao encontrado em diversas pesquisas de qualidade e legitimidade duvidosa.
Cientistas dotados de senso de humor já produziram até resultados deliberadamente absurdos para mostrar que a confiança excessiva no valor-p leva muito facilmente a conclusões disparatadas, e a Associação de Estatística dos Estados Unidos emitiu, anos atrás, parecer advertindo contra o uso mecânico e acrítico dessa métrica.
A astrologia é uma área especialmente fértil para a produção de coincidências “espantosas”, bastando para tanto procurar com afinco: com 11 planetas astrológicos (os nove do século 20, de Mercúrio a Plutão, mais Sol e Lua), 12 signos, 12 casas e 380 aspectos (ângulos de valor astrológico) possíveis entre pares de planetas, cada planeta individual tem mais de meio milhão de posições “significativas” possíveis num mapa astral.
Os astrônomos Roger Culver e Philip Ianna, em seu livro “Astrology: True or False?”, estimam que existem cerca de 1035 (isto é, o número 1 seguido de 35 zeros) combinações possíveis de fatores astrológicos. Que alguma delas, em algum momento, vá se correlacionar “significativamente” com alguma outra coisa – ainda mais dados os “jeitinhos” muitas vezes usados por pesquisadores, e que aumentam o risco de resultados falsos positivos – é virtualmente inevitável. Um mapa astral individual, básico, contém pelo menos 40 fatores que interagem entre si: com um cardápio tão rico e alguma flexibilidade interpretativa, qualquer personalidade ou destino cabe em qualquer carta.
Mas enfim, o ponto central aqui é que a afirmação “a astrologia não tem pretensões científicas, logo é errado tratá-la como uma pseudociência” é insustentável tanto do ponto der vista filosófico – não há nenhuma razão para que as alegações astrológicas não possam ser legitimamente tratadas como hipóteses em psicologia ou epidemiologia – quanto da prática efetiva de um número considerável de astrólogos de todo o mundo, que há décadas conduzem estudos e publicam artigos buscando demonstrar o valor científico da prática.
Estabelecidas as pretensões científicas (sejam elas implícitas ou explícitas), o caráter pseudocientífico confirma-se pelo fato de que elas sobrevivem mesmo diante da volumosa massa de evidência desconfirmatória (há um enorme compêndio a respeito publicado na Holanda em 2016, “Tests of Astrology”, e em português há exemplos diversos no meu próprio “Livro da Astrologia”).
Quando a astrologia é bem testada, seus supostos efeitos desaparecem, e a ilusão individual de que funciona é facilmente explicada por vieses cognitivos e por modos específicos de uso da linguagem, coisas que o “Livro da Astrologia”, entre outras obras, explica. Resumindo, a crítica científica é pertinente, o veredicto chegou já há um bom tempo – e não é nada bom para a “arte”.
Carlos Orsi é jornalista, editor-chefe da Revista Questão de Ciência e coautor do livro "Ciência no Cotidiano" (Editora Contexto)