A ideia de que a posição aparente de estrelas e planetas no céu, na hora do nascimento de alguém, representa uma fonte válida de informação sobre a personalidade e o futuro dessa pessoa é bobagem. A frase anterior poderia ser resumida em “astrologia é bobagem”, mas não exatamente: afinal, há aspectos históricos, poéticos e artísticos a levar em conta. Seria como dizer “mitologia é bobagem”.
Aqui, no entanto, chegamos à equivocação fundamental dos defensores da arte astrológica: quando um crítico condena as pretensões divinatórias da astrologia, acusam-no de insensibilidade cultural; quando ele reconhece o valor cultural, usam isso como apoio à adivinhação. É como se o fato de haver quem aprecie a Ilíada validasse a existência de divindades antropomórficas, comendo ambrosia, no Monte Olimpo.
Em um artigo publicado tempos atrás, escrevi que doutrinas e ideias sem base na realidade têm a imensa vantagem retórica de poderem basear-se em qualquer coisa. A ausência de uma âncora firme no universo dos fatos dá ao homeopata (por exemplo) a fantástica liberdade de cair em contradição sem soar, prima facie, absurdo: num instante a homeopatia está além da ciência, no outro é confirmada pela ciência, e a transição entre as proposições antagônicas se dá sem que a audiência pisque, ou que o argumentador sinta que fez algo errado.
Todas as formas de pseudociência beneficiam-se dessa alforria em relação aos fatos, e a astrologia não é exceção. Por exemplo, há quem argumente que se trata de um saber antigo, legitimado e confirmado pela experiência de incontáveis gerações. E vai usar esse argumento para defender vaticínios e diagnósticos – de personalidade, profissionais, sentimentais, médicos, financeiros – baseados no signo solar, em contradição direta com os clássicos do tal “saber antigo” (como o poema didático Astronomica, de Marco Manílio, do primeiro século EC), que são claros em afirmar que os componentes definidores da carta astral são o signo ascendente (que, aliás, é o significado original da palavra “horóscopo”) e o lunar.
O imperador César Augusto, nascido em 23 de setembro (signo solar Libra), mandou cunhar moedas de prata comemorativas (em homenagem a si mesmo) com a imagem de Capricórnio, que era seu signo lunar, ou ascendente do momento da concepção, ou ambos (especialistas ainda discutem a questão). Algumas dessas moedas ilustram este artigo. “A menos que isso seja compreendido e apreendido por uma mente afiada”, escreve Manílio sobre a importância do ascendente “a base de nossa ciência desmorona”.
Ainda, no Livro 4 da Astronomica, em que descreve as características que cada signo transmite ao nativo (“o Carneiro [...] sempre terá esperança; erguer-se-á do naufrágio de seus negócios para a riqueza abundante, só para sofrer nova queda”), Manílio está falando da posição da Lua.
Comércio
A predominância do signo solar é uma invenção do século 20, implementada pelo astrólogo britânico Alan Leo (1860-1917) basicamente para permitir que horóscopos pudessem ser produzidos e consumidos em massa. Todo mundo sabe o mês em que nasceu, o que torna a leitura do horóscopo baseado em signo solar fácil e direta, mas calcular o ascendente, que depende da hora do nascimento e de coordenadas geográficas, dá bem mais trabalho. Claro, seu astrólogo favorito não vai dizer isso – talvez nem tenha essa informação; Leo apresentou alguns argumentos esotéricos para justificar a opção preferencial pelo signo solar.
The Astrologer’s Handobook, um guia popular publicado originalmente em 1973 e reeditado ininterruptamente desde então, afirma que “o signo solar é o fator individual mais importante na interpretação de um horóscopo. Indica como a pessoa expressa sua energia potencial básica (...) também indica o estágio de desenvolvimento representado pela encarnação atual do indivíduo”.
A despeito de não passar de uma gambiarra comercial, o signo solar nunca deixou de ser visto como uma espécie de chave-mestra para caráter e destino entre os fãs contemporâneos da arte, mesmo com a chegada da era dos computadores, que permitiu democratizar o mapa astral completo: há alguns anos houve até uma onda de revalorização do ascendente, mas o mercado não parece ter reagido muito bem à complicação extra.
Ela só é invocada quando incoerências claras trazidas pela dependência exclusiva no signo solar ficam salientes demais. É a regra das doutrinas sem base na realidade: tornam-se mais simples ou mais complicadas, aspectos contraditórios ganham ou perdem relevância, por razões estritamente táticas.
Quando a necessidade retórica se ausenta, mesmo os mais sofisticados tendem a cair de volta na supremacia solar. Com o aumento da popularidade da astrologia entre os jovens na última década, há alguns anos já que eventos de “discriminação zodiacal” baseada em signo solar são relatados, como este, este e este.
Não é o caso, porém, que a atenção especial dada ao ascendente e à Lua, nos milênios que antecederam a invenção do horóscopo diário de jornal, tivesse mais base em fatos verificáveis do que a atual primazia do signo solar.
Ofício
Numa era antes da comunicação de massa e da produção de conteúdo esotérico em escala industrial, astrólogos eram valorizados (e remunerados) pelo tanto de estudo e de competência matemática que entrava em seu trabalho. Nesse contexto, o fato de que calcular o ascendente envolve mais do que apenas olhar para o calendário era uma fonte de prestígio (e renda) para quem dominasse a perícia.
Esse, aliás, é um ponto que deveria ser considerado por quem argumenta que a astrologia é desprezada pelo pessoal “de exatas”, porque representa uma coisa “de humanas”. Historicamente, a astrologia construiu seu prestígio apresentando-se como um simulacro de ciência exata, com seus mapas, ângulos, tabelas, vocabulário especializado, etc. É, portanto, de se esperar que o pessoal “de exatas” seja capaz de farejar o impostor em seu meio.
Tampouco é o caso que o pessoal sério “de humanas” tenha perdido esse bonde em particular. De Sexto Empírico a Theodor Adorno, passando por Cícero e Pico della Mirandola, a lista de críticos “humanistas” da prática é tão longa quanto ilustre.
Estudiosos contemporâneos também não ficam atrás. Em seu livro Ancient Astrology, uma história da astrologia de suas origens na Mesopotâmia até o início da Idade Média, a antropóloga britânica Tamsyn Barton lança mão do criativo recurso de aplicar as regras descritas em dois tratados clássicos de astrologia – o reverenciado Mathesis, de Júlio Fírmico Materno, e o Pentateuco, de Doroteu de Sídon –, aos dados natais do herdeiro da coroa britânica, príncipe Charles.
O resultado são páginas e páginas de confusão, contradições e aquilo que alguns estudiosos chamam de “declarações fuinha”, frases que parecem afirmar algo, mas que, numa análise mais detalhada, parecem dizer também o oposto (“ele é um extrovertido, mas passa por crises frequentes de timidez”). O nome vem de uma analogia com o hábito das fuinhas de sugar o conteúdo dos ovos, deixando para trás cascas vazias. Numa frase-fuinha, as palavras infligem isso umas às outras, como no exemplo do extrovertido tímido; num texto-fuinha, são frases inteiras que se anulam mutuamente.
Falando da aplicação das regras de Materno, Barton resume: “No geral, as previsões são vagas e cancelam-se entre si”. Por exemplo, a conjunção de Júpiter com Marte permite prever que Charles “governará um grande Estado, ou pelo menos uma região importante”. Já a relação do Sol com Mercúrio indica que ele “apenas executará deveres de subordinado”. E assim por diante.
À inconsistência interna, soma-se a externa. A comparação entre os sistemas de Materno e Doroteu não dá bons resultados. Segundo o sábio de Sídon, “com Mercúrio nos termos e na casa de Marte ele será um tolo insignificante, um mentiroso descarado, um adúltero”. Mas para Materno, essa mesma posição astral faz de Charles alguém “razoável, chegado ao matrimônio, de mente clara e inteligente”.
Em um artigo sobre astrologia durante o Império Romano, publicado em 1995 em “The Journal of Roman Studies”, a autora aponta que “a última coisa com que os astrólogos se preocupavam era contradição (...) a arte da astrologia consistia em encontrar mais e mais respostas para a mesma pergunta (...) este era o desempenho de virtuose a que [os astrólogos] aspiravam”.
Fuinhas por toda parte
Tudo isso se repete, com poucas variações, na astrologia contemporânea, que ainda conta com a vantagem de ter substituído afirmações concretas sobre destino por elucubrações vagas a respeito de caráter e personalidade. O mapa astral dos dias modernos é um texto-fuinha construído ao redor de frases-fuinha. Tentativas de isolar afirmações astrológicas precisas e testá-las estatisticamente – haveria, por exemplo, um excesso de casamentos entre pessoas de signos compatíveis? – fracassam, sempre que bem feitas.
O uso de táticas-fuinha, não a astrologia, representa uma arte milenar cujo poder a história confirma: a capacidade de parecer afirmar muito, e de acertar bastante, quando, na verdade, só o que faz é dizer tudo e nada o mesmo tempo, selecionando os aparentes acertos e racionalizando (ou ignorando) os evidentes erros.
Carlos Orsi é jornalista e editor-chefe da Revista Questão de Ciência