Publicamos aqui na Revista Questão de Ciência, na quinta-feira, 25, um par de textos sobre psicanálise, um deles um levantamento detalhado dos problemas históricos, filosóficos e conceituais da prática, e outro, uma exposição mais direta de seu caráter pseudocientífico. Lançados os dois trabalhos, vieram as acusações protocolares (embora algumas articuladas sem nenhuma preocupação com protocolo) de “incompreensão” e “cientificismo”.
Queria me debruçar aqui sobre a questão do cientificismo (como pejorativo, a palavra se refere à atitude de aplicar técnicas e critérios da ciência a situações onde eles são inadequados ou irrelevantes): seria criticar a psicanálise pelo viés científico tão despropositado quanto criticar os filmes da Marvel porque raios gama não causam superpoderes, ou as fábulas de Esopo, porque animais não falam?
Não é por acaso que os exemplos do parágrafo acima envolvem trabalhos de ficção, obras em que “fatos” e alegações que contradizem a realidade física objetiva, tal como descrita pela ciência, não atrapalham em nada o objetivo a que a narrativa se propõe, de entreter ou oferecer sabedoria moral. Há quem defenda a psicanálise – seja na ortodoxia freudiana ou em qualquer uma das incontáveis heresias – dessa forma: como metáfora, “chave interpretativa” ou “estruturação de linguagem”.
O problema é que, diferentemente de fábulas, filmes de aventura ou histórias em quadrinhos, onde os absurdos ou são periféricos ou não são feitos para levar a sério, a psicanálise depende – tanto como terapia quanto como “chave” de leitura cultural –, e depende crucialmente, de que se leve muito a sério uma alegação que é insustentável tanto do ponto de vista lógico quanto empírico: a da existência do chamado inconsciente psicodinâmico.
Esse inconsciente – que já foi comparado a uma “mente paralela” ou “calabouço” – seria um repositório para onde a mente baniria os desejos inconfessáveis, pensamentos vergonhosos, impulsos inomináveis, motivações pérfidas, memórias indizíveis.
Esse banimento (tecnicamente, “repressão”) não deve ser confundido com outro processo mental, o de supressão, pelo qual abafamos desejos ou pensamentos indevidos que chegam à consciência: sentimos vontade de fazer algo inconveniente, tomamos consciência disso, e suprimimos o impulso (que, a despeito disso, pode continuar a nos incomodar ou a influenciar nossas ações). Não: o inconsciente psicodinâmico, se existe, é feito das culpas, dores, memórias (e de um monte de outras coisas, dependendo da escola psicanalítica a que se adere) que nunca sequer notamos que existem.
Segundo a doutrina psicodinâmica, esse inconsciente tem poder: sem que percebamos, seus prisioneiros influenciam, quando não controlam, nossos pensamentos e ações conscientes. Sinais dessa presença fantasmagórica afluiriam à consciência em sonhos, lapsos de linguagem, na livre associação de ideias, na produção artística e em outras manifestações mais ou menos acidentais. O psicanalista seria o profissional capaz de interpretar esses sinais e trazer o conteúdo inconsciente à luz, o que livraria o paciente dos sintomas causados pela repressão.
Como mitologia é interessante, como hipótese científica é talvez um pouco extravagante, mas o ponto central é: se esse inconsciente psicodinâmico não está lá, então todo o empreendimento psicanalítico faz tanto sentido quanto hepatoscopia, a arte de prever o futuro examinando o fígado de animais sacrificados.
E que motivos temos para acreditar que ele esteja lá? A palavra dos psicanalistas e de alguns de seus clientes. O que é exatamente o mesmo nível de evidências que existe a favor da hepatoscopia (gerações incontáveis de áugures e sacerdotes, de imperadores romanos, generais etruscos e chefes tribais de diversas partes do globo poderiam oferecer testemunhos brilhantes a favor da prática).
Você já viu onde isso vai parar.
Em tese, a existência desse inconsciente sombrio teria sido demonstrada empiricamente por Sigmund Freud (1856-1939). Ainda que a pesquisa de Freud não fosse, como é, toda baseada em fraudes, fabricações e distorções – a bibliografia a respeito é abundante, mas a obra de Frederick Crews é um ótimo ponto de partida –, seus resultados não seriam fortes o bastante para estabelecer o que se alega: mesmo nos melhores momentos, a razão dado/especulação, tanto em Freud quanto em seus sucessores, é baixíssima.
O fato é que o psicanalista desde sempre interpreta os sinais dados pelo cliente – falas, usos de linguagem, gestos, relatos de sonhos – como se fossem evidências da presença de um inconsciente. O sistema todo pressupõe o que deveria demonstrar: é um círculo vicioso.
O cliente, por sua vez, colabora, ajudando o analista a construir uma narrativa fantasiosa a respeito do suposto conteúdo do suposto inconsciente e que, superficialmente, “faz sentido”. Assim, “prova” que o analista está no caminho certo e que a doutrina é válida. Se, pelo contrário, o paciente reage negando a fantasia, isso também prova que o analista está no caminho certo e a doutrina é válida, porque, afinal, o inconsciente não vai entregar seus segredos sem luta, certo?
Não há como negar as algumas narrativas construídas dessa forma possam ser úteis e trazer conforto psíquico para algumas pessoas, mas o mesmo pode ser dito da astrologia ou, até, da hepatoscopia. E também não há como negar que outras narrativas construídas dessa forma podem causar efeitos terríveis, como o escândalo das falsas memórias reprimidas de abuso infantil nos Estados Unidos demonstrou.
Levada ao extremo, a doutrina do inconsciente psicodinâmico sugere que os únicos pensamentos autênticos que uma pessoa tem são os que o psicanalista lhe revela: todo o resto não passaria de conteúdo inconsciente disfarçado. O potencial manipulativo e autoritário dessa posição já foi notado por mais de um crítico (por exemplo, aqui e aqui).
Sedução dos inocentes
O círculo vicioso de narrativa auto-confirmatória descrito acima – onde evidência positiva é evidência positiva e evidência negativa também é evidência positiva – tem um parentesco muito próximo com a lógica das teorias da conspiração, e opera da mesma forma.
A partir do instante em que alguém aceita, como artigo de fé, a premissa de que o mundo é controlado por comunistas, marcianos ou pulsões inconscientes, instâncias confirmatórias e “provas cabais” começam a pulular por toda parte. Inferências baseadas em pareidolia (a tendência de interpretar estímulos vagos e aleatórios como tendo significado) e apofenia (tendência de enxergar conexões entre eventos independentes ou dados aleatórios) tomam conta do aparato intelectual.
Como um sistema baseado numa lógica tão pueril pode ter se tornado tão popular, por quase um século, e entre tantas pessoas cultas, educadas e inteligentes? Diria eu que não se deve subestimar a sedução exercida pelo poder de psicanalisar: quem possui as chaves do inconsciente é como um vidente em terra de cegos, um apóstolo entre os gentios. Alguém que conhece as pessoas muito melhor do que elas mesmas.
A força retórica desse poder presumido é bem conhecida. De repente, podemos acusar homofóbicos de estarem possuídos por desejos homossexuais que eles mesmos ignoram; filantropos, de pulsões egoístas; pecadores, de sofrerem de santidade enrustida e, inversamente, santos de não serem nada mais do que pecadores insinceros.
O que um autor realmente quer dizer é, na verdade, o oposto daquilo que se lê na página (este artigo prova que morro de amores pela psicanálise!). A mulher que diz “não” tem, na verdade, o desejo inconsciente de dizer “sim”. Afago pode ser violência, e vice-versa. O universo humano se torna, de repente, muito mais complexo e, ao mesmo tempo, incrivelmente fácil de interpretar, o que é quase irresistível: uma autorização para soar inteligente sem fazer força é o ópio dos intelectuais.
Enfim, um mundo onde é legítimo tratar todas as coisas como se fossem iguais a si mesmas ou símbolos de seus opostos, de acordo com a conveniência do momento, é uma Disneylândia discursiva, o algodão doce dos sofistas. Como bônus, ganha-se um jargão altissonante e vazio, onde fenômenos sociais complexos são reduzidos a lugares-comuns como “pulsão de morte”.
Só o que se perde, nessa viagem, é o princípio lógico fundamental de que acatar um conjunto de premissas que permite concluir qualquer coisa e seu oposto é não só inútil, como desonesto. Uma chave que parece servir em todas as fechaduras provavelmente não vai abrir nenhuma.
O inconsciente de verdade
Freud costuma receber crédito indevido por ter “descoberto” o inconsciente, e isso mesmo da boca de pessoas que concordam que o inconsciente psicodinâmico é uma quimera (por exemplo, Leonard Mlodinow, em “Subliminar”). O crédito é indevido porque a ideia de que o cérebro contém processos inconscientes já havia sido popularizada na filosofia da mente de Gottfried Wilhelm Leibniz (1646-1716), e era corrente nos anos formativos do jovem Freud. Uma boa história do inconsciente leibniziano pode ser encontrada no livro “The Unconscious Without Freud”, de Rosemarie Sponner Sand.
Leibniz ponderava que “os pensamentos não param só porque não os percebemos”, e alguns de seus exemplos de atividade inconsciente – como o de que o cérebro segue registrando o som de uma cachoeira mesmo depois que paramos de prestar atenção na queda d’água – estão muito mais próximos da concepção moderna, científica, de inconsciente do que o calabouço mental dos psicanalistas.
O cérebro humano contém inúmeros processos inconscientes, muitos dos quais influenciam nossos comportamentos e decisões – há pesquisas que indicam que várias decisões são, de fato, tomadas em nível inconsciente: a consciência, se entendida como a narrativa autobiográfica que parece correr em paralelo com nossas vidas, é apenas “informada” do que o cérebro já decidiu de antemão.
A relação entre os processos inconscientes reais, como detectados e descritos pela psicologia científica e pela neurociência, e o inconsciente psicanalítico, fantasmagórico, é apenas metafórica – uma coincidência de nome.
Por mais que carreiras brilhantes, clínicas e acadêmicas, tenham sido construídas em cima do jogo retórico de “eu sei o que você está pensando melhor do que você mesmo e posso provar isso porque Freud/Jung/Lacan”, já é passada a hora de reconhecer que o jogo é vazio, suas regras são arbitrárias e só o que faz é dar uma pátina de plausibilidade a conclusões ilusórias, muitas vezes insustentáveis; e que alimentam a vaidade intelectual de uns e causam dano grave à vida e à psique de tantos outros.
Carlos Orsi é jornalista e editor-chefe da Revista Questão de Ciência