Já citei, em um artigo anterior, a opinião do biólogo Sir Peter Medawar, ganhador do Nobel de Medicina de 1960, de que a teoria psicanalítica representa “a maior fraude intelectual do século 20”. O que faltou mencionar, então, foi o contexto da frase: ela aparece na resenha de Medawar para um livro (publicado em 1975) sobre distonia muscular deformante, ou distonia de torção, uma doença neurológica de base genética que leva o paciente a sofrer de movimentos involuntários e espasmos musculares que, em alguns casos, podem provocar graves deformações do corpo.
Entre os casos descritos no livro resenhado, “The Victim is Always the Same”, de autoria do neurocirurgião Irving Cooper, há três pacientes que, nas palavras de Medawar, “caíram nas mãos de psicanalistas, homens cujas interpretações superficiais e cheias de autoconfiança (...) fizeram muito para impedir um diagnóstico correto e tratamento”.
Um dos pacientes, cujos espasmos ocorriam na região da pélvis, foi diagnosticado pelo psicanalista com “exibicionismo”, “histeria de conversão” e “receio neurótico de tocar o próprio pênis”. Quando o pobre rapaz teve alta da ala psiquiátrica, o perspicaz analista anotou em sua ficha: “Diagnóstico na alta: psiconeurose, histeria de conversão; Condição na alta: melhora”.
Outra vítima, do sexo feminino, foi acusada de contorcer-se para “chamar atenção”. Seus pais foram convidados a se submeter a terapia também, e o processo quase os levou ao divórcio. Lendo a resenha, a justa indignação de Medawar com a mistura de prepotência e soberba dos analistas, exercida às custas do bem-estar dos pacientes e de suas famílias, praticamente grita da página.
Iatrogenia
Quando se discutem os méritos relativos das diversas formas de tratamento mental, cedo ou tarde emerge a falsa dicotomia entre a terapia de fala, em que a ênfase recai sobre a relação interpessoal paciente-terapeuta, e a medicamentosa, que tende a enfatizar a prescrição de fármacos.
A dicotomia é enganosa porque ambas podem ser, como muitas vezes são, combinadas. E o falso dilema, não raro, acaba projetado num esquema retórico maniqueísta, que promove uma cisão radical entre as pílulas “que escravizam” e a fala “que emancipa”. Mas a fala que se supõe terapêutica pode, sim, escravizar – e num sentido bem literal.
O fato de os riscos e os efeitos adversos da medicação psiquiátrica serem muito mais bem conhecidos e quantificados do que os trazidos pelas tentativas de curas pela fala é um mérito da farmacologia e uma marca negativa das psicoterapias de conversa, área em que a pesquisa sobre efeitos colaterais e iatrogenia (danos ou piora do paciente causados pelo tratamento) ainda engatinha. “Diferentemente dos estudos clínicos de medicamentos, o monitoramento de eventos adversos não é obrigatório e muitas vezes falta nos testes de psicoterapia”, diz um dos poucos artigos científicos a discutir o tema.
A tradição cognitivo-comportamental tem mostrado preocupação com o assunto, mas a psicanalítica-psicodinâmica segue na mesma linha arrogante de absoluta autoconfiança denunciada por Medawar. Às vezes, até mesmo negando que a categoria “efeito adverso” tenha validade no contexto psicanalítico, pois qualquer eventualidade aparentemente deletéria deve ser encarada como “parte do processo”. É mais um dos inúmeros argumentos circulares que formam a armadura intelectual da abordagem psicodinâmica.
Seja como for, um pequeno levantamento publicado em 2023 (baseado em entrevistas com terapeutas) sugere taxas de efeitos adversos semelhantes em ambas as modalidades, numa média geral de pelo menos um efeito adverso em 33% dos casos.
Vítimas originais
No caso específico da psicanálise, a atitude de negligência, negação e arrogância para com o sofrimento eventualmente induzido pelo processo “terapêutico” remonta ao pai da disciplina. Em “Freud’s Patients – a Book of Lives”, Mikkel Borch-Jaconsen oferece a seguinte síntese da carreira do Sigmund Freud médico/psicoterapeuta: “com poucas exceções marcadas por ambiguidade (...) as curas de Freud foram largamente ineficazes, quando não francamente destrutivas” para o paciente.
Em um livro que faz o máximo possível, dentro dos limites da honestidade intelectual, para oferecer uma visão simpática da psicanálise – “The Scientific Credibility of Freud’s Theories and Therapy” – os psicólogos Seymour Fisher e Roger P. Greenberg são forçados a reconhecer que, em toda sua vasta obra, Freud oferece, como base clínica para suas elaborações teóricas, apenas seis relatos de caso razoavelmente bem descritos. Vamos deixar de lado, no momento, a observação óbvia de que se meia dúzia de casos, sem controles ou revisão pelos pares, fossem evidência suficiente para sustentar qualquer coisa, já estaria mais do que provado que Bloody Mary cura ressaca e que passar debaixo de escada dá azar.
Mas, voltando. Em dois desses seis, Freud teve contato direto nulo, ou muito limitado, com o “paciente” (um deles é a “psicanálise” de um livro de memórias); em dois, as pacientes (“Dora” e a “mulher paranoica”) abandonaram a terapia; e em outro dois (“Homem dos Ratos” e “Homem dos Lobos”) Freud alega algum grau de sucesso, mas Fisher e Greenberg concedem que apenas o “Homem dos Ratos” parece indicar um desfecho claramente positivo do processo psicanalítico.
Outros autores – e o registro histórico – são menos caridosos. A terapia de “Dora” hoje é considerada, de forma quase unânime e mesmo por alguns psicanalistas (como Patrick Mahony, que escreveu uma reconstrução detalhada do caso), uma falha crassa de ética médica e uma instância grave de abuso moral e psicológico, com Freud tentando forçar a paciente, então no fim da adolescência, a admitir que estava apaixonada por um adulto que a assediava desde os 13 anos de idade.
Por sua vez, o “Homem dos Lobos” deixou para a posteridade um longo depoimento em que denuncia o beco sem saída mental e a condição emocional precária a que o tratamento psicanalítico – com Freud e outros – o haviam levado. Mesmo o “sucesso” com o “Homem dos Ratos” precisa ser relativizado: ao pesquisar os papéis pessoais de Freud, Patrick Mahony descobriu inúmeras discrepâncias e inconsistências entre as anotações originais e o caso tal como publicado.
Cocaína
Sigmund Freud sempre foi um narrador pouco confiável, que jamais deixou os fatos ficarem no caminho de uma boa jogada de marketing. Hábito que já havia desenvolvido mesmo antes de inventar a psicanálise.
Entre 1884 e 1887, Freud publicou vários materiais – quatro papers científicos (um deles, derivado de uma palestra) e uma série de resumos e revisões, incluindo publicações anônimas – sugerindo que cocaína poderia ser um santo remédio para praticamente tudo: de enxaqueca a impotência sexual, passando por asma, tuberculose, sífilis e dependência de morfina.
Essa última alegação tinha, entre suas bases, uma série de publicações americanas, a maioria delas num jornal de propriedade de uma farmacêutica que produzia cocaína (conflito de interesse que escapou à tão propalada argúcia freudiana); e um experimento conduzido pessoalmente por Freud, que tentou, a partir de 1884, libertar seu amigo Ernst Fleischl do vício em morfina, usando para isso a aplicação de cocaína por via oral e, depois, subcutânea.
O resultado do tratamento foi um desastre, que destruiu completamente a vida de Fleischl – algo que já estava mais do que claro para todos que o conheciam (incluindo o próprio Freud) em meados de 1885.
Ainda assim, em 1887 Freud publicou um paper defendendo sua receita de cocaína oral para curar o vício em morfina, assumindo um ar de justa indignação diante das críticas que denunciavam sua promoção entusiástica e irresponsável do uso da droga. Nesse trabalho, ele reafirma o sucesso da cocaína como cura do vício em morfina de seu paciente (o pobre Fleischl, que não é citado por nome, obviamente não tinha sido curado de nada).
Nas décadas seguintes, o doutor vienense adotou uma postura de silêncio, verdadeira omertà, sobre o assunto, tentado apagar o desastre de sua biografia. Jamais se retratou das publicações delirantes e mentirosas sobre os benefícios da cocaína. Em escritos posteriores, assumiu uma postura de controle de danos diante do artigo original de 1884 e, quanto à falsificação de 1887, torceu para que acabasse esquecida por historiadores camaradas. No que foi atendido: a celebrada biografia escrita por Peter Gay, publicada em 1998, silencia por completo a respeito.
Um artigo intermediário, de 1885, em que Freud recomenda o uso de injeções de cocaína, acabou suprimido pelo autor: não aparece no memorial acadêmico que Freud preparou em 1897, não consta das referências do artigo de 1887 e nenhuma cópia foi encontrada entre seus papéis pessoais.
Ernest Jones, o biógrafo que mais contribuiu (depois do próprio Freud) para a construção do mito de Sigmund, destemido e genial desbravador da psique humana, atribui esse óbvio ato de impostura intelectual a “repressão inconsciente”, interpretação que já vinha tornando-se canônica entre os devotos. Peter Gay, sempre gentil para com o biografado, nem sequer menciona o trabalho, ou sua posterior omissão.
Pioneiro
A lei do silêncio em torno do assunto só foi suspensa brevemente nas décadas “lisérgicas” de 1960-1970, quando o interesse popular em torno das drogas psicoativas levou os guardiões do legado de Freud a resgatar os artigos esquecidos e suprimidos para tentar reivindicar ao pai da psicanálise também o título de “pioneiro da psicofarmacologia”.
O volume “Cocaine Papers – Sigmund Freud”, de 1974, é útil por reunir os trabalhos sobre cocaína assinados por Freud, incluindo o paper “maldito” de 1885, e alguns exemplos de como esses escritos foram usados pela indústria farmacêutica da época para promover a droga.
Mas tanto a introdução de Robert Byck quanto as notas de Anna Freud fazem o máximo para desviar o foco da má conduta médica e científica – Byck chega a usar a palavra “erros” entre aspas, ao se referir às recomendações estapafúrdias de benefício da cocaína presentes no artigo seminal de 1884 – e, embora cite extratos de algumas cartas de Freud à noiva, Martha Bernays, sobre seu envolvimento com cocaína, o livro omite a missiva de outubro de 1884 em que Freud manifesta a esperança de que seu nome seja promovido no material publicitário da Merck, então principal fornecedora de cocaína da Europa.
De qualquer modo, passado o zeitgeist setentista de encantamento com o mundo das drogas, a omertà voltou a vigorar. Peter Gay trata tudo às pressas, como uma espécie de infeliz mal-entendido. Hoje, “Cocaine Papers” é um livro fora de catálogo, encontrado apenas em sebos.
Mendacidade
Vamos avançar dez anos, chegando às portas da revelação da psicanálise propriamente dita.
Em fevereiro de 1896, Freud submeteu à publicação um par de papers em que a palavra “psicanálise” aparecia pela primeira vez. Em abril do mesmo ano, deu uma famosa palestra sobre suas descobertas, incluindo o suposto efeito patogênico de memórias reprimidas da infância e a natureza sexual da origem das neuroses.
Num dos papers submetidos em fevereiro, ele afirmava ter tratado treze casos de histeria com o novo processo; na palestra de abril, o número citado – não de tratamentos, mas de curas – sobe para dezoito. Tudo mentira. Na mesma época, em correspondência com seu amigo e mentor Wilhelm Fliess, ele se lamuriava da falta de pacientes e de sucesso terapêutico. De fato, em 29 de março de 1897, quase um ano depois da palestra histórica de 12 de abril, ele escreve a Fliess:
“Nestes dias ruins, meu trabalho é uma tortura terrível para mim (...) Ainda enfrento as mesmas dificuldades e não concluí um único caso”.
O caráter estratégico, planejado, da mendacidade freudiana, e sua consistência ao longo do tempo, fica explícito numa carta endereçada a Carl Jung e datada de 6 de dezembro de 1906 (ou seja, dez anos depois da palestra das "dezoito curas"). Ali, lê-se: “Não é possível explicar o que quer que seja a um público hostil; assim, tenho mantido silêncio sobre certas coisas que poderiam ser ditas sobre os limites da terapia e seus mecanismos de ação”.
Essas não são as palavras de um homem de ciência, nem mesmo de um filósofo, mas de um messias que sabe que está certo, e para o qual os fatos palpáveis do mundo são apenas distrações que desviam o olhar da Verdade Profunda e Essencial. Obstáculos concretos e fracassos incontornáveis devem ser reinterpretados ou apagados; a "fraude intelectual" denunciada por Medawar se revela metódica, sistemática. Expõe-se aí um ethos tão perverso quanto contagioso e, como vimos no caso de “Cocaine Papers”, que se encontra à espreita de todos os que se deixam encantar pelo narrador não confiável de Viena.
Carlos Orsi é jornalista, editor-chefe da Revista Questão de Ciência, autor de "O Livro dos Milagres" (Editora da Unesp), "O Livro da Astrologia" (KDP), "Negacionismo" (Editora de Cultura) e coautor de "Pura Picaretagem" (Leya), "Ciência no Cotidiano" (Editora Contexto), obra ganhadora do Prêmio Jabuti, "Contra a Realidade" (Papirus 7 Mares) e "Que Bobagem!" (Editora Contexto)