Se você já passou algum tempo parado debaixo de um daqueles sinais de trânsito feitos de um par de luzes amarelas que ficam piscando intermitentemente, talvez tenha notado um fenômeno curioso: primeiro, as lâmpadas parecem piscar de forma aleatória; depois, entram numa espécie de ritmo, uma dança (um pra cá, dois pra lá, digamos); então, sincronizam perfeitamente – um lá, um cá; e, por fim, voltam a oscilar ao acaso.
A impressão é de que há um algoritmo ou maestro maluco regendo as luzes. Na realidade, o que acontece é que cada lâmpada tem um ciclo próprio – e fenômenos cíclicos perfeitamente independentes entre si tendem, pela mera passagem do tempo, a “entrar em compasso”, “sincronizar” e “dessincronizar” de forma espontânea, gerando, aos olhos de observadores viciados em reconhecimento de padrões, uma ilusão de coordenação. E ninguém fantasia padrões como o Homo sapiens.
Trata-se de uma fantasia de grande poder. Astrologia, numerologia. “Sistemas infalíveis” para quebrar a banca em jogos de azar ou para “derrotar o mercado” na bolsa de valores não existiriam sem ela. Às vezes, produz até ciência que passa pela revisão dos pares.
Em 1971, por exemplo, Martha McClintock publicou, em Nature, um artigo que supostamente mostrava que mulheres que passam muito tempo juntas tendem a sincronizar seus ciclos menstruais, resultado que entrou para o folclore contemporâneo pelo menos de duas maneiras – popularizando a ideia de “feromônios humanos” e, também, como uma espécie de validação biológica do poder da sororidade.
Mas, como explica o estatístico Alex Reinhart em seu livro “Statistics Done Wrong”, McClintock pressupôs que, caso não houvesse uma tendência biológica à sincronização, a diferença entre o início do ciclo menstrual das mulheres estudadas iria flutuar sem jamais mostrar padrão nenhum: a possibilidade de que ciclos menstruais poderiam se alinhar e permanecer alinhados durante algum tempo espontaneamente, apenas por causa do caráter cíclico do fenômeno – como ocorre com as luzes de tráfego – não foi levada em conta. Daí, o falso positivo.
Lua na cabeça
O exemplo da Nature de 1971 me ocorreu assim que vi a grande imprensa, na semana passada, promovendo o trabalho do médico americano Thomas Wehr sobre uma suposta influência de ciclos lunares sobre o comportamento humano – mais especificamente, sobre o ciclo de crises de pacientes maníaco-depressivos. Para além dessa correlação destacada na mídia, Wehr também vê sincronização relevante entre ciclos lunares, menstruais e de sono-vigília.
Ele não se limita, em suas análises, ao ciclo das fases da Lua, mas também ao das marés e ao ciclo apogeu-perigeu (quando a Lua está mais próxima ou mais diante da Terra). O pesquisador apresenta um resumo de seus dados e ideias num artigo publicado em 2021 no periódico BioEssays. É uma leitura interessante (e um pouco alarmante).
Ali, ele informa ter encontrado não apenas relações entre os três ciclos lunares e ciclos humanos de mania-depressão, sono-vigília e hormonal feminino, como também entre ciclos humanos e múltiplos e submúltiplos dos ciclos lunares. E ter descoberto, ainda, que os ciclos humanos podem saltar de um ciclo lunar para o outro – por exemplo, seguir o das fases da Lua um tempo e, de repente, passar a seguir o do mês lunar. Também que, ao seguir o das fases, pular de uma fase para outra (da Lua cheia para a Lua nova, por exemplo). Além disso, escreve ele, há “períodos em que os ciclos menstruais sincronizados com os ciclos lunares podem ser interrompidos por períodos em que não ocorre sincronia”.
Um precedente histórico que vem à memória é um artigo de 1976 da revista americana Fate, que descreve um levantamento feito por um garoto de 15 anos, para uma feira de ciências, associando as fases da Lua a taxas de criminalidade. Ele encontrou picos em alguns dias de mudança de fase. E também dois dias depois da mudança – ou antes. E também...
Enfim: uma vez escolhido um eixo, é muito fácil convencer-se de que o mundo realmente gira em torno dele.
Tudo isso se parece muito com a ilusão do balé das luzes de tráfego, depois de uma dose reforçada de esteroides. Diante do tipo de dado que Wehr apresenta – tabelas e mais tabelas de correlações –, não há realmente motivo para imaginar que seja outra coisa.
Viés e preconceito
O nome do esteroide, no caso, é viés de confirmação: a busca frenética por dados que pareçam confirmar uma hipótese, prática que é a antítese do bom método científico, que consiste de, uma vez formulada a hipótese, buscar ativamente dados capazes de prová-la falsa. Hipóteses científicas tornam-se respeitáveis não quando encontramos confirmações a rodo, mas quando, postas à prova, sobrevivem a testes arriscados.
Isso acontece porque, procurando com vontade, confirmações sempre aparecem. Dada uma hipótese que seja suficientemente vaga e um pendor para interpretação criativa das palavras e da evidência, é possível desencavar exemplos de praticamente qualquer coisa, até mesmo de contradições categóricas como “casado solteiro”: dá para imaginar um espertinho querendo pôr os divorciados e os viúvos na categoria.
Preconceitos também são criados e sustentados dessa forma. Dados o caráter constante da natureza humana e a crença preconceituosa de que o grupo humano X tem a característica desagradável Y, normalmente é possível encontrar um número indefinido de Xs que são Ys, “confirmando” a má impressão. Mas sem verificar quantos Xs não são Ys, sem verificar qual a proporção de Ys presente em grupos que não são X, sem definições operacionais e exatas de X e Y, o acúmulo de exemplos positivos não prova nada – mas o preconceituoso, claro, não liga para "meros detalhes".
Voltando à ciência, sem um esforço para colocar as instâncias confirmatórias no contexto adequado, sem prestar a devida atenção a contraexemplos, sem definir os termos usados com precisão e sem controlar para efeitos espúrios (como, no caso de Wehr, a inevitável sincronização aleatória de ciclos independentes), listas enormes de confirmações significam muito pouca coisa.
Segredos da pirâmide
No caso do trabalho de Wehr, todos esses problemas aparecem magnificados num nível que fica entre o exagero didático – como um modelo anatômico em que os genitais são desproporcionalmente grandes, para que os estudantes possam ver bem cada detalhe – e a caricatura pura e simples.
A hipótese, para começo de conversa, é tão vaga que evitar encontrar algum tipo de confirmação é mais difícil do que não trombar com a mobília num quarto escuro: ele não está dizendo, por exemplo, que o primeiro dia da menstruação sincroniza com a Lua cheia; ele está dizendo que alguns ciclos humanos, às vezes, mas nem sempre, em certos casos, sincronizam com alguns ciclos lunares – fases, ou apogeu, ou maré – ou com múltiplos, ou com submúltiplos desses ciclos, mas às vezes podem sair de sincronia, e às vezes podem trocar um ciclo pelo outro. É como eu dizer que você pode me encontrar nas Américas ou no Velho Mundo, exceto quando eu estou na Antártida ou na Oceania. Ou, de repente, em alto mar. Vai saber.
As manobras matemáticas para encontrar ciclos, subciclos ou harmônicas (múltiplos inteiros de ciclos) lunares que se encaixem nos ciclos biológicos de algumas pessoas – Wehr não trabalha com populações – lembram a “piramidologia” do século 19, quando sábios esotéricos buscavam (e encontravam) todo tipo de correlação entre as medidas da Grande Pirâmide do Egito e o valor de pi, ou a distância entre a Terra e o Sol.
Escolhendo corretamente as operações aritméticas, qualquer número pode se converter em qualquer outro número: o resultado de dividir o perímetro da base da pirâmide (921,6 metros) pelo dobro da altura original (que era de 146,7 metros) dá 3,1402863, uma aproximação meia-boca de pi. Mas por que o dobro da altura e não a metade, sete, dez ou doze vezes? Porque é uma “conta de chegar”: sabendo, ou ao menos intuindo, o resultado desejado, ajusta-se o resto. No caso dos ciclos lunares, não é difícil ver submúltiplos e harmônicas cumprindo o mesmo papel.
Além da ilusão das luzes de trânsito e do fiasco de McClintock, o trabalho sobre ciclos lunares me lembra de uma passagem bíblica: “Pedi e vos será dado; procurai e encontrareis; batei e a porta vos será aberta” (Mateus 7:7). Quem procura com afinco acha até mesmo o que não está lá, e chutar portas abertas é um passatempo cada vez mais popular.
A boa ciência existe para nos proteger disso: não tanto para identificar os padrões e regularidades do mundo (isso até os pombos fazem), mas para nos alertar quando os padrões que enxergamos são falsos. A aplicação correta do método científico é, ou deveria ser, a atividade antiparanoica por excelência.
Carlos Orsi é jornalista, editor-chefe da Revista Questão de Ciência, autor de "O Livro dos Milagres" (Editora da Unesp), "O Livro da Astrologia" (KDP), "Negacionismo" (Editora de Cultura) e coautor de "Pura Picaretagem" (Leya), "Ciência no Cotidiano" (Editora Contexto), obra ganhadora do Prêmio Jabuti, "Contra a Realidade" (Papirus 7 Mares) e "Que Bobagem!" (Editora Contexto)