Deveria ser ocioso repetir, mas vamos lá: ninguém é “a favor do aborto”. O que se defende é que mulheres tenham, caso desejem ou considerem necessário, o direito de interromper uma gravidez sem correr risco de vida, sem sofrer tortura psicológica e sem serem importunadas pela polícia ou cobertas de perdigotos por demagogos babões. Há bons motivos para considerar esse um direito mais do que razoável, tanto empíricos (o aborto ilegal tende a ser inseguro, e o aborto inseguro é um risco de saúde pública) quanto filosóficos, envolvendo a questão da autonomia pessoal.
Se uma pessoa não pode ser presa por se negar a doar um pedaço do fígado – o único órgão humano que, depois de ter uma parte amputada, regenera-se – para salvar a vida de uma criança de, digamos, cinco anos, por que deveria ser presa por se negar a emprestar o útero e a saúde a um feto, ou embrião? (vamos imaginar que o não doador é um homem e que a criança de cinco anos é sua filha).
A questão aqui não é de “certo” e “errado” em algum aspecto platônico, teológico ou categórico, mas de limitar o poder de interferência do Estado sobre o que cada um decide fazer com o próprio corpo e os riscos que aceita (ou não) correr com a própria vida e a própria saúde. Você pode achar algo moralmente abjeto e, ainda assim, considerar que não se trata de caso de polícia. Eu, cá comigo, tenho uma meia dúzia de coisas arquivadas nessa categoria.
Mas a atual cruzada antiaborto, iniciada nos Estados Unidos com a revogação da famosa decisão da Suprema Corte Roe vs. Wade, e macaqueada aqui pelo nosso nada original conservadorismo parlamentar, tem muito menos a ver com avaliações empíricas ou debates filosóficos e muito mais com “marcar pontos” nas Guerras Culturais.
Será curioso ver, após a derrota (ao menos, perante a opinião pública) na disputa pela criminalização de todo e qualquer aborto, sob quaisquer circunstâncias, após as 22 semanas, se os plagiários nacionais dos neocons do Norte vão encarar a nova fronteira do combate à liberdade reprodutiva – a determinação de que embriões congelados têm direitos.
Trata-se de algo que já está implícito no “Estatuto do Nascituro” (PL 434/2021, em tramitação na Câmara). Este é o Projeto de Lei que o deputado Sóstenes Cavalcante usou para ameaçar os opositores do PL que criminaliza todos os abortos após as 22 semanas.
O tal “estatuto”, em Parágrafo Único, determina: “Sob a mesma proteção que esta lei confere ao nascituro estão os indivíduos da espécie humana concebidos in vitro ou produzidos mediante clonagem ou por qualquer outro meio”. Mais ainda: em seu artigo 44, o estatuto declara que congelar “o nascituro” (“indivíduo humano concebido, mas ainda não nascido”) é crime, punido com até três anos de cadeia e multa. Resumo: não é que o embrião congelado terá direitos, é que congelar embrião vai dar cadeia.
Ideias poderosas
O filósofo e antropólogo Ernest Gellner cunhou a expressão “ideias um pouco poderosas demais”, para se referir a certos dogmas (políticos, religiosos ou para-religiosos, como princípios da psicanálise) que, se realmente levados a sério, a ferro e fogo, acarretariam consequências no mundo real que ninguém (ou, espera-se, no máximo meia dúzia de fanáticos) estaria disposto a bancar. Sobre essas ideias, Gellner comenta: “Crentes preferem operar com uma versão enfraquecida, diluída, ignorando algumas consequências excessivamente fortes”.
Mas ele estava escrevendo em 1985, antes das Guerras Culturais. Hoje, principalmente no campo conservador, as “ideias um pouco poderosas demais” correm livres e desinibidas em todo seu esplendor, libertas das amarras do ridículo e do bom-senso – até o momento em que dão com as fuças no poste da realidade, e mesmo aí não se dão por vencidas, apenas ficam aturdidas e desaceleram um pouco.
Nos Estados Unidos, o Legislativo do Alabama teve de intervir para que uma decisão judicial estendendo direitos humanos a embriões congelados não acabasse inviabilizando a prática da fertilização in vitro no estado. Mas a insegurança jurídica prossegue, e não só no Alabama: em todo o país. Aprovado, o “Estatuto do Nascituro” também provavelmente inviabilizaria (por seu Artigo 44) boa parte da atividade de fertilização in vitro no Brasil, e várias linhas de pesquisa científica.
A bancada da Bíblia está disposta, em defesa do indefeso “nascituro”, a tentar proibir os casais brasileiros com dificuldades de ter filhos de procriar, ameaçando os médicos que trabalham com reprodução assistida com prisão e multa?
Próxima parada, Gilead
A ideia de que direitos humanos começam “na concepção” é outra daquelas “um pouco poderosas demais”. Suas consequências vão muito além da proibição de formas de reprodução assistida. O resultado lógico é a distopia d’ “O Conto da Aia”. Senão, vejamos:
A ideia de “momento da concepção” é vaga e ambígua. Analisemos o caso de uma gestação comum, iniciada após o ato sexual.
Óvulo e espermatozoide encontram-se numa das trompas. Será esse o momento da concepção? Mas a penetração do óvulo pelo espermatozoide, para formar o zigoto (a célula com o “novo” conteúdo genético, 46 cromossomos, vindos metade do pai, metade da mãe) não é algo que acontece num instante, como um clique de mouse. É um processo.
O “momento” da concepção dura muito mais do que um estalar de dedos.
Suponhamos, abstraindo a questão cronológica, que os direitos do “nascituro” aplicam-se ao zigoto: uma célula, 46 cromossomos. Mas se o zigoto já é uma criança, trata-se de uma criança em grave perigo. Formado, precisa deslocar-se até o útero, e depois fixar-se. Deslocamento e fixação são processos que podem levar até uma semana para se completar. E nem sempre dão certo: estima-se que 50% dos zigotos formados falhem em obter a fixação, passando por abortos espontâneos antes mesmo de que a mulher desconfie que está grávida. Das que chegam a detectar a gravidez, de 10% a 20% perdem o embrião em abortos espontâneos, nos primeiros três meses.
Se o “nascituro” é comparável em direitos e dignidade moral a uma criança, então tanto as perdas que ocorrem com a falha de fixação no útero quanto os abortos espontâneos durante o início da gravidez representam uma carnificina, um massacre, um escândalo humanitário e de saúde pública. Não faz diferença que sejam fenômenos naturais, em oposição ao aborto provocado: um país confrontado com uma taxa de mortalidade infantil superior a 50%, ainda que por causas naturais, teria a obrigação moral de fazer algo a respeito.
É preciso tornar o ambiente o mais saudável e seguro possível para preservar os inocentes. Mas o ambiente é o corpo da mulher. Se a autonomia da mulher sobre seu corpo está sempre subordinada ao interesse do nascituro, então...
É a instauração de Gilead, a distopia teocrática do romance de Margaret Atwood “O Conto da Aia”, em que mulheres férteis não são mais donas de si mesmas, e sim propriedade da Igreja e do Estado. Dá para imaginar mulheres sendo submetidas a internação compulsória imediatamente após cada contato sexual com um homem, só para garantir que nenhum nascituro que, eventualmente, resulte do encontro seja maltratado, ameaçado ou fique desnutrido, tenha condições ótimas de completar o périplo até o útero e ali fixar-se em segurança.
Confirmada a fixação, o anel de segurança fecha-se ainda mais: controle estatal absoluto sobre dieta, atividade física, atividade profissional e de lazer – afinal, o nascituro é tudo; a mãe, um detalhe. Se as gestantes de hoje já se sentem incomodadas com a intrusão de palpiteiros não solicitados durante a gravidez, imagine quando esses palpiteiros forem agentes do Estado e tiverem poder de polícia.
Ridículo? Absurdo? São apenas consequências previsíveis e plausíveis que decorrem logicamente dos Artigos 3º, 4º e 5º e 16 do Estatuto do Nascituro:
“Art. 3º A personalidade civil do indivíduo humano começa com a concepção.
“Parágrafo único. O nascituro goza do direito à vida, à integridade física, à honra, à imagem e de todos os demais direitos da personalidade.
“Art. 4º É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar ao nascituro, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à dignidade, ao respeito e à convivência familiar, além de colocá-lo a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.
“Art. 5º Nenhum nascituro será objeto de qualquer forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão, sendo punido na forma da lei qualquer atentado, por ação ou omissão, aos seus direitos fundamentais”.
(...)
“Art. 16 Sempre que, no exercício do poder familiar, colidir o interesse dos pais com o do nascituro, o Ministério Público requererá ao juiz que lhe dê curador especial.
“Parágrafo único. A curadoria dos nascituros deverá ser exercida pela Defensoria Pública ou, na sua falta, por alguém nomeado pelo Juiz”.
Vamos repassar este trecho: “sendo punido atentado, por ação ou omissão, aos seus direitos fundamentais”. Isso inclui a mãe tomar um café, um chopinho, pular uma refeição de vez em quando, fumar um cigarro escondido, correr maratona, comer uma mortadela? A situação é ridícula e absurda porque o estatuto é absurdo e ridículo (e nem citei o Artigo 23 que dá a todo nascituro o direito a honras fúnebres e sepultura. Pense nisso: um blastocisto de quatro semanas, que pode sofrer aborto espontâneo e, portanto, “morrer”, tem 2 mm de diâmetro. Honras fúnebres? Sepultura?).
Conceder direitos a zigotos, embriões e fetos sempre foi uma daquelas “ideias um pouco poderosas demais” cujos defensores cuidavam de manter, nas palavras de Gellner, fracas e diluídas: o que eles realmente queriam dizer é que a mulher não tem certos direitos, não, a sério, que o “nascituro” tem lá os dele. Até hoje, as consequências lógicas que decorrem de se levar essa “ideia poderosa” às últimas consequências – com a redução última da gestante a refém do próprio ventre, tutelada, vigiada e punida pelo Estado – nunca foram contempladas ou enunciadas seriamente. Mas os tempos estão mudando.
Carlos Orsi é jornalista, editor-chefe da Revista Questão de Ciência, autor de "O Livro dos Milagres" (Editora da Unesp), "O Livro da Astrologia" (KDP), "Negacionismo" (Editora de Cultura) e coautor de "Pura Picaretagem" (Leya), "Ciência no Cotidiano" (Editora Contexto), obra ganhadora do Prêmio Jabuti, "Contra a Realidade" (Papirus 7 Mares) e "Que Bobagem!" (Editora Contexto)