Um físico no shopping center da "saúde quântica"

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23 ago 2023
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De acordo com o editor-chefe desta revista, participar da décima versão do Congresso de Saúde e Terapia Quântica 2023 (CSTQ23) me daria uma medalha de honra ao mérito. Ainda não cobrei a promessa, mas acredito ser merecedor de pelo menos uma dúzia de distinções. É fato que a criação do Instituto Questão de Ciência nos colocou mais próximos de todo tipo de picaretagem. Explicar, portanto, sobre o uso inapropriado da física quântica e das falsas promessas de cura faz parte da nossa missão, mas confesso que vivenciar a experiência antropológica bizarra do CSTQ23 tira o otimismo de qualquer pessoa minimamente razoável.

O CSTQ23 aconteceu no Teatro Bradesco, em São Paulo, nos dias 18 e 19 de agosto. Uma longa fila formada por pessoas muito bem arrumadas (aproximadamente 80% de mulheres), felizes e segurando uma sacola imensa estampando o rosto do principal convidado do evento, Bruce Lipton, que continha uma caneta, um bloco de anotações, uma revista da empresa promotora do evento, folhetos de propaganda de produtos, amostras de “moduladores frequenciais florais” e um “suplemento alimentar em cápsula à base de Taurato, Lisinato e Bisglicinato de Magnésio” – tudo relacionado com a saúde quântica.

Bruce Lipton é um desses gurus da prosperidade que se tornou conhecido entre o pessoal que curte esoterismo disfarçado de ciência. De acordo com o seu site: “as ciências emergentes da biofísica quântica, epigenética e geometria fractal iluminaram a mecânica da conexão mente-corpo-espírito. Esta nova ciência revela que a consciência é responsável pelas nossas experiências de vida, incluindo o nosso funcionamento biológico”. O raciocínio de que bastaria mudar o seu pensamento para “reprogramar” o seu corpo permeou a fala de todos os convidados que se apresentaram no primeiro dia do evento.

O Congresso, cuja entrada custava no mínimo R$ 1.300, dependendo do lote, é bem organizado. Com tótens no acesso principal, imprime-se facilmente o crachá e, apesar do público de aproximadamente 1.000 pessoas, foi rápido ingressar no teatro. Um corredor de pessoas gritando vários “bons dias”, alternados pelos nomes nos crachás das pessoas que passavam pela porta de entrada adiantavam o formato de culto religioso do evento. Virei o meu crachá para esconder o nome e entrei rapidamente sem olhar para ninguém – consegui assim me livrar do constrangimento inicial.

 

Feirinha quântica

A sensação de adentrar ao evento é a de que se atravessou um portal dimensional onde a física, a química, a biologia e a própria realidade podem ser desconsideradas em favor de um discurso marqueteiro que vende falsas curas e soluções mágicas para os mais diversos problemas. O termo “quântica” é aplicado erroneamente nos mais diversos contextos, apenas como pano de fundo, para dar um tom científico aos produtos, já que ninguém parece mesmo saber do que se trata a física quântica.

No hall de entrada, vários pôsteres tentam dar uma roupagem de congresso científico ao evento. Com títulos como “Ryodoraku capta extrema ação tonificante floral em pacientes harmonizados com energia escalar pelo equipamento Morfus I” ou “Esteatose hepática e colecistopatia inflamatória calculosa: um caso de sucesso no uso da terapia quântica vibracional”, todos os textos mencionam a marca da empresa que promove o evento e citam vários produtos que podem ser comprados na feirinha quântica que acontece no mesmo ambiente.

Paro na frente de um estande que vende pingentes quânticos que moldam o campo morfogenético. Este campo, presente no imaginário do esoterismo e da Constelação Familiar, prática que está no SUS e é utilizada no âmbito da Justiça para conciliação entre as partes, foi criado pelo parapsicólogo britânico Rupert Sheldrake. Como um éter que atravessa todo o espaço-tempo, esse campo conectaria todo o Universo, incluindo aqui os antepassados pré-históricos – não há nenhuma comprovação de que algo tão improvável exista. O que me chama a atenção, porém, é algo que está ao lado dos pingentes: uma garrafa de água quântica.

A garrafa é simples e parece ser de alumínio, mas a expositora me mostra o que o objeto tem de especial: ela desconecta o fundo de plástico do vasilhame, e ali é possível ver um desenho que simula a figura de um chip de computador. O fundo destacável tem uma abertura lateral onde é possível ver uma entrada para os cartões que acompanham o produto. Cada cartão, identificado com os rótulos físico, etérico, mental, astral e espiritual, modificaria a estrutura molecular da água, fazendo com que ela interaja diretamente com o “corpo” escolhido (a ideia de que o ser humano é composto de diferentes “corpos”, entre eles o físico, o astral, o mental etc. faz parte de doutrinas esotéricas como teosofia e antroposofia, e não tem o menor respaldo na ciência, seja quântica ou qualquer outra). E claro, tudo isso “cientificamente comprovado” pela física quântica, conforme me explica a gentil expositora. Agradeci pela “aula” e fui para a próxima tenda.

Para não perder o foco, resolvi visitar uma empresa que vendia filtros que produziam uma “água magnesiana com pH 9,5”. Um valor de pH igual a 7 indica que uma substância é considerada neutra, valores maiores e menores do que 7 representam, respectivamente, substâncias básicas e ácidas – um valor de 9,5 representa, portanto, uma água com pH próximo de um antiácido estomacal. As três versões disponíveis do filtro custam R$ 14 mil, R$ 17 mil e R$ 24 mil reais e, de acordo com a consultora, diferem entre si pela potência. Não é possível saber se o filtro cumpre o que promete (mudar o pH da água e adicionar magnésio não são coisas complicadas de se fazer), mas a questão é por que razão alguém beberia água alcalina.

De acordo com a propaganda do produto, “a maioria dos alimentos que consumimos produz resíduos ácidos que desequilibram o pH do sangue. O organismo, com o objetivo de equilibrar o pH, busca propriedades alcalinas de diferentes partes do corpo, principalmente dos ossos e dentes. Bebendo a água alcalina, ajudamos o nosso organismo a restabelecer esse equilíbrio”. Quem quiser entender melhor por que não faz sentido beber água alcalina, esta revista já escreveu sobre o assunto aqui: “A verdade é que o pH sanguíneo nas artérias de um recém-nascido é exatamente igual ao de uma pessoa idosa (entre 7,35 e 7,45), e se mantém muito bem controlado, nessa mesma faixa, durante toda a vida, a não ser que a pessoa fique seriamente doente”.

Vale a pena mencionar que enquanto eu olhava o folder do estande da água alcalina, um homem me chamou, apresentou-se como médico e disse que tinha um daqueles filtros alcalinizadores no consultório. Explicou que o que o filtro fazia era mudar a estrutura molecular da água, e que a água mantinha essa memória. A fala do médico não é nada mais do que a velha ladainha da memória da água da homeopatia. Já escrevi aqui e aqui que a água não tem memória e gelo não se emociona.

 

Palestras

A sensação de estar participando de um evento religioso se confirmou com o início das palestras. Falas emocionadas, com exaltação divina e menções à família, deram o tom da abertura, que contou com a presença dos dirigentes da empresa promotora do Congresso. Em tom de pregação, ouvimos frases como: “conseguimos fazer funcionar uma hidrelétrica com os nossos corações”, “solte a onda quântica que lá do outro mundo as pessoas vão recebê-la”, “olhe para a pessoa sentada ao lado e diga ‘eu te amo’” e por aí vai. A maioria do público reagia ativamente às provocações do apresentador e, em vários momentos, viam-se pessoas de olhos fechados “sentindo a onda quântica”.

A primeira palestra foi dada por uma das organizadoras, anunciada como “a dama dos quânticos”. De acordo com a minibio encontrada na revista Saúde Quântica, distribuída na sacola do evento, a apresentadora dedica-se exclusivamente à área acadêmica, ainda que não seja possível encontrar seu currículo na Plataforma Lattes, algo no mínimo excêntrico para alguém da área de pesquisa científica no Brasil. Na sua página pessoal consta que fez doutorado na International Quantum University, nos Estados Unidos, na área de Medicina Integrativa Quântica. No site da Quantum University, é possível encontrar o seguinte aviso:

THE INTERNATIONAL QUANTUM UNIVERSITY FOR INTEGRATIVE MEDICINE IS NOT ACCREDITED BY AN ACCREDITING AGENCY RECOGNIZED BY THE UNITED STATES SECRETARY OF EDUCATION.

Traduzindo: “A Universidade Quântica Internacional de Medicina Integrativa não é credenciada por nenhuma agência credenciadora reconhecida pelo Ministério da Educação dos Estados Unidos”. O leitor que deduza o que isso sinaliza quanto à qualidade dos cursos oferecidos.

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A palestrante menciona logo no início da sua fala que não se vacinou (referindo-se provavelmente à vacina da COVID-19) e é aplaudida calorosamente pelos presentes. Logo em seguida, fala de ondas vibracionais, gratidão, pede para todos pensarem em um momento de gratidão e em seguida gritar “yes!” – o público atende. Diz, então, que o congresso é acadêmico-científico e começa a discorrer corretamente sobre alguns aspectos do método científico para, logo em seguida, começar a confundir o público com diversos estudos publicados na revista da própria empresa.

O método de preparar o terreno com algumas coisas corretas para emplacar sorrateiramente a pseudociência é uma tática comum. O público, já receptivo ao conteúdo do evento e, mais ainda, estimulado pela liturgia do ambiente, mal percebe quando o apresentador se desconecta da realidade para emplacar a fantasia.

Nessa toada, a palestrante começa a mostrar uma série de trabalhos publicados na revista Saúde Quântica, repetindo ostensivamente que aquilo tudo prova a eficiência dos florais quânticos, atestada pela reprodutibilidade dos estudos. É claro que não faltaram ataques à “Big Pharma”, talvez numa tentativa de justificar por que os trabalhos estavam publicados somente na revista da empresa (e sempre remetiam aos produtos que podiam ser convenientemente adquiridos na lojinha da entrada) e não em uma revista reconhecida no meio acadêmico.

Na tela não faltaram gráficos, fotos mostrando o antes e o depois do uso dos florais, um cachorrinho doente e curado (neste momento mencionou que “não existe placebo em animais, e por isso que se usam ratos em laboratórios” – veja aqui um texto sobre efeito placebo em animais) e a solução mágica, mas sempre fantasiada de ciência, para um sem-número de enfermidades.

Apesar de a ciência ser mencionada em todas as apresentações, as falas dos palestrantes são predominantemente esotéricas. Temas sérios de medicina disputam espaço com referências a Maomé e Buda ou falas de que se não “mexer na parte energética não existe cura”. Apologias ao criacionismo e citações aos meridianos de acupuntura também aparecem constantemente, juntamente com a associação do autismo a uma patologia que apresenta um padrão elétrico definido e que, segundo a palestrante, poderia ser modificado pela acupuntura e florais e, portanto, curado. Não faltaram exaltações à ozonioterapia, associações diretas entre cada dente com um órgão do corpo na “odontologia integrativa” e os “perigos” do eletromagnetismo para a saúde (já escrevi um pouco sobre o medo irracional relacionado às ondas eletromagnéticas aqui e aqui).

A totalidade das falas segue o esquema narrativo de apresentar vários problemas e insinuar a existência de uma solução fácil, mas que somente seria revelada por completo se você comprasse algum produto posteriormente. Prometem-se técnicas para “hackear o seu DNA” (biohacking) e “mudar o padrão mental”, para curar miopia e surdez através de exercícios, até a possibilidade de aumento da inteligência com florais quânticos.

Na última apresentação a que assisti, o cidadão foi apresentado como médico, físico, astrônomo e palestrante quântico. Muito empolgado, soltou logo de início uma mentira envolvendo um suposto pôster na NASA falando que abelhas não foram feitas para voar. O palestrante começa falando que o mundo é quântico para, logo em seguida, emendar a foto de uma galáxia – fiquei na expectativa de que ele iria trazer uma grande descoberta em gravitação quântica, mas não era isso: a pessoa apenas iniciou o processo de maquiagem científica do esoterismo comercial, falando sobre nucleossíntese e colocando vários exemplos para tentar convencer o público de que tudo o que existia no Universo girava em torno de frequências, ressonâncias e vibrações.

O médico, físico, astrônomo, palestrante continua o discurso discorrendo sobre teoria das cordas (em um momento até diz que poderia escrever e explicar as equações da teoria, mas que lá não era o momento para isso), passa por um aparelho que “detecta biocampo”, menciona que é possível fotografar os meridianos de acupuntura e que os sentimentos vão para todas as células do corpo. A única coerência da apresentação é a absoluta incoerência de todas as partes.

O palestrante alonga-se para além do tempo estipulado (talvez a única coisa em comum entre esse congresso e um evento acadêmico real), mas consegue minutos extras para fazer propaganda dos produtos para desintoxicação do corpo. Como exemplo de sucesso do xampu, sabonete, condicionador, creme dental e protetor solar “sem química”, o cidadão mostra a “cura” de um paciente que apresentava os seguintes sintomas: dificuldade de concentração, ossificação retardada, osteopenia precoce, laxidez ligamentar, introvertido, medroso, tendência depressiva, fadiga crônica, bronquite asmatiforme crônica, rinite crônica, secreção serosa nasal intermitente e problemas otorrinolaringológicos.

 

O que realmente diz a física quântica

Esta revista já publicou diversos textos abordando o assunto do misticismo quântico e o abuso das pseudociências que se apropriam de termos bem definidos no âmbito da física para passar uma aura de credibilidade às picaretagens – o meu colega Marcelo Girardi Schappo, que também não ganhou a medalha de honra ao mérito do editor-chefe desta revista, passou inclusive pelo mesmo martírio ao participar do I Congresso Catarinense de Saúde Quântica. Reproduzo abaixo uma explicação retirada do texto “O Universo não liga para suas intenções”, de minha autoria:

“A mecânica quântica se iniciou um pouco antes dos anos 1900. Esta teoria, testada e verificada por inúmeros grupos do mundo, explica uma série de fenômenos que ocorrem predominantemente em escalas atômicas e subatômicas. O desenvolvimento dessa teoria mostrou, entre muitas outras coisas, que algumas grandezas não podem assumir qualquer valor: assim como os números que representam canais de TV não têm valores fracionários (não existe uma infinidade de canais intermediários, ‘50,1’, ‘50,2’, ‘50,3’, etc., entre o 50 e o 51, por exemplo), as pesquisas que levaram à teoria quântica mostraram que algumas grandezas da física também não podem apresentar valores intermediários. No jargão técnico, dizemos que esses valores são ‘quantizados’.

Diversos efeitos do cotidiano (lasers e lâmpadas fluorescentes, por exemplo) só podem ser explicados pela mecânica quântica, mas a imensa maioria das coisas do dia a dia é contemplada pelo arcabouço teórico da chamada física clássica. Diferentemente do mundo quântico, onde a precisão de medidas simultâneas de posições e velocidades estão correlacionadas e tem um limite estabelecido pela natureza, e partículas podem ser descritas como ondas, nada impede que, conhecendo as condições iniciais, saibamos com uma excelente precisão a velocidade de uma bola de futebol e onde ela vai cair.  

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A fascinação frente ao comportamento peculiar descrito pela mecânica quântica, somada aos exemplos que se tornaram populares, como o gato de Schrödinger, o experimento da fenda dupla e a dualidade onda-partícula, dá origem a interpretações equivocadas e desdobramentos pseudocientíficos trazidos por ‘picaretas quânticos’. Ideias erradas de que o pensamento pode direcionar o resultado de medidas são transportadas para a vida das pessoas criando uma espécie de ‘mecânica quântica da prosperidade’: através do pensamento seria possível (não é) modificar o DNA e se tornar rico”.

 

Conclusão

Em vários momentos, o evento tem o cuidado de lembrar as pessoas de que elas são especiais por estarem no Congresso, insinuando que a sociedade em geral despreza ou desconhece os grandes segredos que curam todos as mazelas, desde falta de dinheiro até câncer. É claro que as maneiras de acessar as benesses são reveladas através de cursos e treinamentos, e estão associados aos produtos vendidos ali. Outra preocupação dos organizadores, que aparece en passant na fala de um dos diretores da empresa que promove o congresso, é arrebanhar mais pessoas para continuar evangelizando em nome da causa (ou fazendo marketing dos produtos, o que parece ser a mesma coisa).

O sentimento que tive ao sair do evento (bobo que sou, saí antes de saber como mudar o DNA para ficar rico e viver até os 150 anos) é de profunda decepção para com o ser humano. De um lado, pessoas no palco sem o menor pudor de serem anunciadas como conhecedores de algo para, logo em seguida, emendarem absurdos totalmente desconectados da realidade. Do outro lado, pessoas que pareciam acreditar genuinamente no que estava sendo dito. Neste caso, não era preciso ser especialista em algo para notar que os discursos eram intrinsicamente contraditórios e que não faziam sentido – imaginar que muitos participantes que lá estavam atuam na área da saúde é muitíssimo preocupante.

Marcelo Yamashita é professor do Instituto de Física Teórica (IFT) da Unesp e membro do Conselho Editorial da Revista Questão de Ciência

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