Cinzas do jornalismo e hesitação vacinal

Apocalipse Now
2 jun 2024
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Matérias jornalísticas factualmente corretas, mas com títulos ou redação insinuando que as vacinas para COVID-19 poderiam ser prejudiciais à saúde, tiveram um impacto quase 50 vezes maior no aumento da hesitação vacinal entre usuários do Facebook do que mentiras descaradas propagadas por grupos antivaxxer. Este é um dos principais resultados de uma pesquisa recente sobre desinformação e vacinas, publicada pela revista Science.

Os autores do trabalho sugerem, em suas conclusões, que “em vez de focar exclusivamente na acurácia dos fatos que reportam, jornalistas deveriam considerar também se as narrativas resultantes deixam o leitor com uma visão acurada do mundo”.

O estudo, Quantifying the impact of misinformation and vaccine-skeptical content on Facebook (“Quantificando o impacto da desinformação e do conteúdo cético sobre vacinas no Facebook”), usou pesquisas de opinião envolvendo milhares de pessoas, além de simulações de computador, para estimar o impacto de conteúdo enganoso sobre vacinas nos usuários da rede social.

“Impacto”, no caso, foi definido como a combinação entre poder de persuasão (o quanto o conteúdo tende a afetar a opinião do leitor) e alcance (quantas pessoas efetivamente tiveram acesso ao conteúdo).  Os autores descobriram que as fake news são mais persuasivas, mas que o “conteúdo cinzento” – expressão adotada para designar material que não contém mentiras, mas que induz o leitor a ver riscos exagerados na vacinação – recebe muito mais exposição.

Material categorizado como desinformação (“falso” e/ou “fora de contexto”) por fact-checkers respondeu por apenas 0,3% dos acessos a conteúdo sobre vacinas feitos via Facebook nos primeiros meses de 2021. Em comparação, uma única manchete do jornal Chicago Tribune, classificada como “cinzenta” – “Médico saudável morre duas semanas após receber vacina para COVID; CDC investiga” – foi vista por 54,9 milhões de usuários do Facebook, ou 20% de todos os usuários registrados nos Estados Unidos. Postagens contendo essa matéria foram acessadas 67,8 milhões de vezes, ou seis vezes mais do que a soma de todas as visualizações dos conteúdos denunciados por fact-checkers.

Os autores calculam que o “conteúdo cinzento” reduziu a intenção de vacinar-se contra COVID-19 em 2,3 pontos porcentuais entre os usuários do Facebook nos Estados Unidos. Eles estimam que, com uma “taxa de conversão” entre intenção declarada e comportamento efetivo de 60% (encontrada na literatura), isso representa, em números absolutos, aproximadamente 3 milhões de pessoas que teriam deixado de receber a imunização por causa do material jornalístico tendencioso. Já o conteúdo falso ou claramente mentiroso teria tido um impacto de apenas 0,05 ponto porcentual, afetando efetivamente 65 mil pessoas.

 

Falso bicho-papão

Esses resultados reforçam a advertência, já emitida por inúmeros especialistas, de que a desinformação (e a informação ruim) são fatores relevantes, sim, mas não cruciais ou predominantes, na composição da maioria dos cenários da hesitação vacinal: o impacto geral constatado ficou em menos de cinco pontos porcentuais.

Confiar na vacina pode ser irrelevante se a vacina não está disponível, ou custa caro, ou só é aplicada em horário comercial, ou por gente despreparada, ou em locais de difícil acesso. “Desinformação” acaba sendo um bode expiatório conveniente, um falso bicho-papão a quem se atribuem fracassos causados por inadequações dos sistemas de saúde ou incompetência de seus gestores.

O estudo não se debruça sobre as causas da enorme diferença de alcance entre fake news, estrito senso, e jornalismo profissional irresponsável no Facebook, mas especula que ela pode derivar tanto dos filtros criados pela plataforma para eliminar ou reduzir a visibilidade de conteúdo falso, quanto da audiência-base dessas fontes – jornais e revistas de boa reputação e bem estabelecidos tendem a ter mais seguidores e leitores do que influenciadores individuais ou grupos de ativistas.

De resto, não surpreende que as mentiras tenham se mostrado, individualmente, mais persuasivas do que as matérias do jornalismo cinzento: no caso exemplar destacado pelos pesquisadores, a notícia veiculada pelo Chicago Tribune, o título é apelativo e induz o leitor a inferir uma relação (inexistente) de causa e efeito entre vacina e a morte do médico “saudável”, mas o texto é factualmente correto e aponta as incertezas envolvidas. A mentira é construída para persuadir; o texto jornalístico, não. Mesmo o título apelativo não quer convencer – apenas insinuar e, com isso, chamar atenção.

Segundo os autores da pesquisa, “o melhor preditor da influência persuasiva negativa [sobre a intenção de vacinar] é o grau em que a narrativa implica riscos para a saúde causados pela vacina”. E não importa se essa narrativa parte de alegações falsas ou verdadeiras.

 

Jornalismo cinza

O discurso usual de jornalistas e de empresas jornalísticas sobre os perigos da desinformação é fortemente marcado por um corporativismo que às vezes soa ingênuo, às vezes cínico, e sempre é extremamente irritante em sua monumental autocondescendência. No limite, a mensagem que se passa é a de que o jornalismo profissional – definido pela conjunção entre jornalistas de carreira e empresas jornalísticas tradicionais – representa, quando o assunto é qualidade da informação, 100% solução e 0% problema. Avaliação, para dizer o mínimo, um tanto quanto descolada da realidade.

É verdade que esses profissionais e empresas têm reputações a preservar – o que gera um forte incentivo para buscar e publicar a informação mais correta possível –, além de contar com uma série de normas, práticas, processos e protocolos que funcionam como filtros e controles de qualidade.

Mas há problemas. Um deles é a mera falibilidade humana, que garante que nenhum sistema de controles e processos será invulnerável a eventuais erros e vieses. Também existe o fato de que é perfeitamente possível seguir esses protocolos “na letra”, ao mesmo tempo em que se viola sua razão de ser, desrespeitando-os “no espírito”, algo de que já tratei anteriormente.

Por fim, mesmo a adesão às normas e regras do bom “velho jornalismo” anda em risco hoje em dia, com o enxugamento sistemático das redações, a substituição do rigor pela velocidade e a pressão, cada vez maior, por audiência a qualquer custo, em que preocupações éticas são sacrificadas no altar dos caça-cliques. A vergonhosa manchete do Chicago Tribune se encaixa aí.

 

Visão de mundo

O apelo dos autores do estudo, para que os jornalistas reflitam sobre a acurácia da “visão de mundo” que estão transmitindo a seus leitores, e para que as empresas de mídia considerem que o público pode reagir a notícias de modo a “causar danos no mundo real”, choca-se, à primeira vista, com o senso comum do setor, onde se preconiza que tanto a “visão de mundo” do leitor quanto o que ele vai fazer com a informação publicada devem ser tratados como irrelevantes – o dever do jornalista, afinal, é informar, não fazer engenharia social.

O princípio é sólido, mas o enunciado, simples e direto, esconde sutilezas. A primeira é que o modo de exposição dos fatos – da informação – telegrafa modos de ver o mundo: a escolha de palavras, o encadeamento dos fatos, o enquadramento dos eventos e, voltando ao exemplo do Chicago Tribune, a redação do título: tudo isso pode, de modo consciente ou não, privilegiar, aos olhos do leitor, uma certa chave interpretativa específica, entre muitas possíveis. Nesse aspecto, uma preocupação com acurácia não estaria fora de lugar.

Também, empresas jornalísticas já se mostraram sensíveis a resultados de ciência social que apontam efeitos deletérios de certo tipo de notícia. É por isso que, de forma praticamente unânime, órgãos de imprensa responsáveis não noticiam suicídios ou, quando o fazem, cercam o tema de cuidados. Há resultados científicos que indicam um efeito de “contágio social” entre notícias de suicídio e aumento posterior no número de casos de suicídio, afetando, principalmente, adolescentes.

Seria ótimo se a publicação recente na Science levasse a uma reação igualmente sóbria quando o assunto são vacinas – e, por que não, temas de saúde em geral.

 

Carlos Orsi é jornalista, editor-chefe da Revista Questão de Ciência, autor de "O Livro dos Milagres" (Editora da Unesp), "O Livro da Astrologia" (KDP), "Negacionismo" (Editora de Cultura) e coautor de "Pura Picaretagem" (Leya), "Ciência no Cotidiano" (Editora Contexto), obra ganhadora do Prêmio Jabuti, "Contra a Realidade" (Papirus 7 Mares) e "Que Bobagem!" (Editora Contexto)

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