Preconceito linguístico é uma coisa feia e tal, mas confesso que toda vez que ouço alguém (pessoa física ou jurídica) usar o clichê “tal e tal qualidade está no nosso DNA”, preciso fazer um saque a descoberto na minha conta de benefício da dúvida para seguir levando a figura a sério. Como estamos na temporada de celebração do trabalho de Charles Darwin (12 de fevereiro, neste ano segunda-feira de carnaval, é o Dia de Darwin!), parece adequado fazer um breve exame da apropriação indevida do ácido desoxirribonucleico – a molécula representada na sigla DNA – pelo essencialismo, e o que há de errado nisso, para além do chavão cansado (e cansativo).
“Essencialismo” é a ideia de que as coisas têm um núcleo de características que determina o que elas são num nível fundamental – sua chamada essência. A essas características fundamentais somam-se outras, chamadas acidentes, que definem como elas são aquilo que são, como expressam sua essência: uma cadeira, por exemplo, teria como características essenciais ser uma peça de mobília formada por assento e encosto (sem encosto vira banquinho), e como acidentes, se tem pernas ou rodas, se tem ou não braços, se é de madeira, plástico ou metal, se tem ou não almofadas etc.
Existe uma conexão forte entre o conceito de essência e a ideia de definição. A lista das características essenciais de alguma coisa confunde-se muito facilmente a definição dessa coisa: em essência, “cadeira” é a peça de mobília formada de assento e encosto, e “peça de mobília formada de assento e encosto” é uma definição razoável de cadeira, encontrada em dicionários. Dá para dizer (e muita gente diz) que a essência de algo é aquilo que o define.
Intuição
Pensar em termos de essências, acidentes e definições é muito útil e esclarecedor em diversos contextos, ajudando a pôr certas ideias em ordem. Mas também tem o potencial de gerar confusões homéricas. Distinguir situações em que o pensamento essencialista ajuda ou atrapalha é um passatempo divertido, e também algo com que filósofos profissionais às vezes se preocupam.
Mas, ao menos na cultura ocidental, mesmo quem nunca encarou a questão sob a perspectiva filosófica, ou nem sequer ouviu a palavra “essencialismo” na vida, provavelmente tem intuições, crenças e opiniões essencialistas a respeito de muita coisa. É algo que está entranhado na linguagem e na mentalidade coletiva, aparecendo por trás de conceitos como alma, espírito (núcleos que concentram a essência de uma identidade, seja individual, coletiva ou mesmo de uma situação: “a alma da festa”) e de autenticidade, sinceridade (que são manifestações de fidelidade à essência: “um autêntico picareta”).
Distinções entre realidade e aparência muitas vezes são tratadas como se fossem distinções entre essência e acidentes; quando se diz de alguém que “se comporta mal, mas no fundo é uma boa pessoa”, estamos pressupondo uma certa essência oculta para contrabalançar a característica palpável. Na ficção, narrativas de superação e redenção são comumente construídas como histórias em que uma essência luta para se afirmar, para expressar-se de modo heroico ou, no mínimo, construtivo.
O mundo moderno, talvez mais até do que em qualquer outra época, vive imerso numa espécie de culto à essência revelada das coisas: vivenciamos uma “ética da autenticidade”, onde apresentar-se sincero (ou, em alguns casos, “sincerão”) pode ser mais valioso (ou verossímil) do que declarar-se uma pessoa boa ou bem-intencionada. Políticos populistas operam a mágica de transformar seus supostos defeitos, preconceitos, ignorâncias e limitações em qualidades positivas e vantagens, ao expô-los “de forma sincera” – ainda mais se esses defeitos, preconceitos etc. forem compartilhados por suas bases, que acabam assimilando esses defeitos transmutados à ideia que têm da própria “essência” coletiva do grupo.
O DNA do negócio
Cooptada pelo universo do marketing, já muito bem informado de que escolhas de linguagem que soam “científicas” tendem a transmitir uma imagem de precisão e sofisticação, a paixão contemporânea pela ética da autenticidade dá à luz o clichê do “DNA do negócio” em suas mais variadas formas – “DNA da firma”, “DNA da equipe”, “Está no nosso DNA”, “Temos o DNA da inovação” e demais permutações, ad nauseam.
Em todas as variações, a sigla “DNA” é usada para significar que determinada qualidade, atitude ou característica desejável é parte da essência da empresa, negócio etc. É uma faceta autêntica, é algo que compõe a própria definição daquilo que se pretende vender.
O problema, trazendo a questão para o campo das consequências imprevistas e indesejadas, é que, ao tratar “DNA” como sinônimo de “essência”, esses slogans acabam imprimindo (ou reforçando) no senso comum uma conexão entre genética e essencialismo que, além de errada, distorce a compreensão pública da ciência. Uma área em que o pensamento essencialista entra em colapso (ou leva ao colapso, caso se insista nele) é exatamente a da genética e biologia evolutiva.
Criacionistas, é claro, há tempos usam uma versão essencialista do conceito de “espécie” para atacar, em termos lógico-semânticos, a teoria da evolução. Se cada espécie representa uma essência criada separadamente por Deus, como umas poderiam evoluir em outras? Daí a leitura radical-essencialista de Gênesis 1:24 – “Deus disse: ‘Produza a terra seres vivos segundo suas espécies, animais domésticos, animais rasteiros e animais selvagens, segundo suas espécies’”.
Mesmo muita gente que já superou o estágio mitológico do desenvolvimento intelectual segue com essa equivalência intuitiva entre “espécie” e “essência” lá no fundo da cabeça, apenas substituindo o design celestial por algum tipo de “sabedoria da natureza”, e a palavra mágica da Divindade por... DNA. Essa imagem difusa do DNA como uma espécie de “alma” bioquímica é o que inspira muito da resistência emocional à modificação genética: quem somos nós para interferir no espírito essencial das espécies? Mas é uma imagem que não faz o menor sentido.
E não faz sentido porque a evolução darwiniana amarra todos os seres vivos do planeta numa vasta rede de ancestralidade comum. Temos genes que compartilhamos com vírus, bactérias, peixes e plantas. Mais de noventa por cento do que “está no DNA” de um ser humano também está no de um chimpanzé.
Voltando ao tema inicial do artigo, cada vez que leio ou ouço que tal e tal característica linda e maravilhosa “está no DNA da nossa empresa” eu me lembro do gene para produção de vitamina C – que está no DNA do Homo sapiens, mas desativado (é por isso que precisamos de vitamina C na dieta e somos vulneráveis ao escorbuto). DNA não é essência, é fluxo: é um rio cuja cabeceira está em algum ponto da cordilheira nublada da origem vida, e que logo se abre num delta imenso. O que tem de essencial, se tiver, é algo que compartilhamos com todo o restante da biosfera.
O clichê do que “está no DNA” é, portanto, não só um chavão gasto, mas também uma metáfora inepta que deseduca, ao reforçar a ligação espúria entre genética e essencialismo.
Carlos Orsi é jornalista, editor-chefe da Revista Questão de Ciência, autor de "O Livro dos Milagres" (Editora da Unesp), "O Livro da Astrologia" (KDP), "Negacionismo" (Editora de Cultura) e coautor de "Pura Picaretagem" (Leya), "Ciência no Cotidiano" (Editora Contexto), obra ganhadora do Prêmio Jabuti, "Contra a Realidade" (Papirus 7 Mares) e "Que Bobagem!" (Editora Contexto)