O método científico e Jack, o Estripador

Apocalipse Now
19 ago 2023
Autor
Londres em 1888

 

A revista britânica Fortean Times, publicação mensal sobre o que há de estranho, incrível e inusitado no mundo, anuncia em sua mais recente edição que no fim deste mês será lançado, no Reino Unido, mais um livro que supostamente revela a “verdadeira identidade” do infame assassino em série Jack, o Estripador, responsável pela morte brutal de quatro a onze (dependendo de em qual teoria se acredita) mulheres em 1888 (ou entre 1888 e 1891).

Oficialmente, as vítimas do Estripador foram cinco, as “cinco canônicas” – Mary Ann Nichols, Annie Chapman, Elizabeth Stride, Catherine Eddowes e Mary Jane Kelly – assassinadas entre agosto e novembro de 1888 no bairro pobre de Whitechapel, Londres. O criminoso nunca foi identificado (ou preso), e o mistério em torno de seu nome, origem e motivos mantém a “ripperologia”, o hobby ou indústria dedicado a analisar seus crimes e desvendar sua identidade, viva há 135 anos. “Ripperology”, livro de 2006 que busca historiar o fenômeno, oferece uma bibliografia “selecionada” de cerca de setenta volumes, mas o total de publicações a respeito do caso certamente supera em muito esse número.

A obra mais recente, “One-Armed Jack: Uncovering The Real Jack the Ripper” (“Jack de Um Braço Só: Revelando o Verdadeiro Jack, o Estripador”) foi escrito por Sarah Bax Horton, que se apresenta como tataraneta de um policial que atuou no caso em 1888. Seu suspeito não é novo (dado o número de hipóteses lançadas a respeito da identidade do assassino, seria difícil encontrar alguém ainda não citado): Hyam Hyams, preso em dezembro de 1888 como “lunático vagabundo”. Hyams era alcoólatra e possivelmente também epilético e paranoico, dado a surtos de raiva e violência – no hospício em que passou internado os últimos anos de vida, destruía móveis e atacava funcionários (uma vez, com uma faca improvisada). Quando ainda estava solto, tinha crises patológicas de ciúme e, pelo menos uma vez, agrediu a esposa com uma faca.

 A “nova” evidência apresentada no livro, segundo a Fortean Times, vem dos registros médicos de Hyams, em que se lê que tinha um braço paralisado e outras características físicas que batem com a descrição de um homem visto, segundo testemunhas, conversando com vítimas do Estripador pouco antes dos crimes. Os detalhes do estado de saúde desse suspeito, diz a autora, só vieram a público na última década, com a liberação dos arquivos do hospício.

Se tudo isso parece especulativo demais, pelo menos é baseado em pesquisa de documentos reais, o que é mais do que se pode dizer do artigo científico publicado em 2019 baseado em análise de DNA mitocondrial encontrado num xale que, supostamente, estava junto ao corpo da penúltima vítima, Catherine Eddowes. Tanto a procedência do xale quanto a confiabilidade da análise foram seriamente questionadas na época. Esta não foi a primeira vez que se tentou usar DNA mitocondrial para identificar o Estripador: em 2001, a escritora de livros de mistério Patricia Cornwell usou resultados de testes genéticos para ligar o pintor Walter Sickert a cartas atribuídas ao assassino.

A análise de DNA acabou se mostrando inválida, no entanto, e de qualquer forma há sérias dúvidas sobre se alguma das cartas enviadas à polícia e atribuídas ao Estripador seria legítima. Até mesmo o infame meio rim humano despachado pelo correio para George Lusk, presidente do Comitê de Vigilância de Whitechapel – um grupo de voluntários civis criado para patrulhar o bairro extraoficialmente – era, com grande probabilidade, um espécime roubado de um laboratório de anatomia, e não, como se divulgou, parte do corpo de uma das vítimas.

 

Assassino real

A hipótese mais famosa a respeito do Estripador é, claro, a de que os crimes teriam sido cometidos pelo (ou em benefício do) príncipe Albert Victor, neto da rainha Vitória e provável futuro herdeiro do trono (o príncipe, no entanto, morreu jovem, pouco depois de completar 28 anos, vítima da pandemia de gripe que teve início em 1889). A cronologia dos crimes torna impossível culpar diretamente o príncipe. Ele não estava em Londres nas datas da maioria dos assassinatos, e na noite do chamado “duplo evento” – quando o Estripador fez duas vítimas – encontrava-se na Escócia.

Como em toda boa teoria da conspiração, evidência contrária é evidência a favor, e se constrói o argumento de que o príncipe estava sendo mantido longe da cena dos crimes por uma razão. Acusações contra Albert Victor começaram a circular em 1962, mas ganharam força nos anos 1970, principalmente após a publicação de “Jack the Ripper: The Final Solution”, do jornalista Stephen Knight, em 1976.

A principal fonte de Knight era um certo Joseph Sickert, que se apresentava como filho ilegítimo do artista Walter Sickert com uma mulher que seria filha ilegítima do príncipe Albert Victor com Annie Elizabeth Crook, uma mulher pobre que morreu num hospício em 1920. Sickert convenceu Knight de um conto mirabolante em que sua avó teria sido amante do príncipe, e os assassinatos de Whitechapel, uma “queima de arquivo”, orquestrada pela maçonaria, para eliminar testemunhas do caso (e do fato de que o casal produzira uma criança). O romance gráfico “Do Inferno”, escrito pelo roteirista britânico Alan Morre, é basicamente uma adaptação de “Final Solution”.

O texto de Knight volta e meia mergulha fundo em paranoia antimaçônica (por exemplo, “a maçonaria era o poder por trás do trono e do governo. Se o trono caísse, e a Grã-Bretanha se tornasse uma república, a maçonaria cairia junto”). Numa entrevista concedida em 1978, Sickert admitiu que a parte sobre maçonaria da história era uma fraude, mas seguiu insistindo ser, de fato, descendente ilegítimo do príncipe. O enciclopédico volume “The Complete Jack the Ripper A-to-Z” resume assim o caso: “No fim, não existe uma única peça de evidência histórica sólida que possa ser invocada para sustentar os elementos sensacionais e controversos da narrativa de Sickert. Apesar disso, a teoria de Stephen Knight teve ampla aceitação entre 1976 e 1988”.

 

Ordem e método

Uma questão a ponderar, para quem (como eu) se diverte com essas coisas, é o status espistêmico da ripperologia. Seria uma pseudociência? Ao contrário de pseudociências clássicas como astrologia e homeopatia, ela não tem um núcleo de crenças que, pela ação da comunidade de adeptos, são imunizadas contra refutação. Muito pelo contrário: hipóteses são propostas e refutadas o tempo todo. Seu objeto de estudo também é bem definido e tem consistência epistêmica (ninguém nega que “as cinco canônicas” foram barbaramente assassinadas em 1888).

Há ainda o respeito pela evidência e a valorização da busca pela evidência, de arquivos históricos a material molecular. Tudo isso sugere que a ripperologia talvez merecesse até ser considerada uma ciência. Mas falta alguma coisa – não há uma hierarquização de hipóteses. Todas as ideias são recebidas como igualmente válidas, e mesmo teses que, à luz da razão e da evidência, deveriam ter sido descartadas, seguem tendo vida própria em partes da comunidade, como a teoria do “assassino real”. Não se vê convergência ou construção de consensos.

Pode-se argumentar que as questões centrais do campo – quem era o Estripador, quais seus motivos – são, com toda probabilidade, irrespondíveis, mas qual o problema? Nenhuma das ciências bem estabelecidas, a despeito do que os físicos que ainda sonham com uma “equação de tudo” possam dizer, tem alguma esperança concreta de chegar ao “fim”. A própria ideia de “fim” em ciência é altamente controversa, para dizer o mínimo.

Mas a falta de um sistema organizado de peer review faz com que o campo se torne uma área perfeita para a utilização seletiva da evidência, o que alimenta a elaboração fantasiosa e o viés de confirmação. Cada novo livro ou artigo propondo “suspeitos” representa um exercício nesse sentido. O volume de informações sobre os crimes em si e sobre a Era Vitoriana em geral – personagens, costumes, preconceitos, instituições – é tão grande que é praticamente impossível que uma linha desenhada ao acaso sobre esse panorama não acabe traçando algum tipo de roteiro “plausível”.

Adaptando livremente as categorias de “tipos de experimento” descritas Peter Medawar em seu ensaio “Indução e Intuição no Pensamento Científico”, eu proporia algo como os “três estágios” do caminho entre protociência, ou pré-ciência, e ciência: o aristotélico (usa-se evidência como arma retórica), o baconiano (busca-se evidência para matar curiosidade) e o galileano (a evidência é ferramenta para testar hipóteses). Nesse esquema, a ripperologia parece oscilar no caminho entre o aristotélico e o baconiano.

Como o historiador Philip Sudgen escreve em artigo para a obra “The Mammoth Book of Unsolved Crimes”,

“O historiador se propõe a resgatar os fatos por meio de uma pesquisa paciente e de uma avaliação cuidadosa de fontes primárias, e suas conclusões decorrem da evidência que descobriu e estudos. Já o ripperologista faz ao contrário. Primeiro, decide quem vai ser Jack, o Estripador. Depois, saqueia as fontes de evidência em busca de qualquer coisa que possa dar ao seu candidato um verniz de credibilidade”.  

Esse procedimento define um hobby, não pesquisa científica. Mas para quem realmente quer saber – em vez de apenas especular – trata-se de um estado de coisas insatisfatório. A ripperologia produz tanto fatos quanto mitos, e em que pesem os esforços de alguns indivíduos muito bem-preparados e bem-intencionados, como empreitada coletiva é geralmente incapaz de separar uns de outros. Quando consegue, tem dificuldade em encaixar o que obteve numa estrutura imparcial e crítica. Não é, infelizmente, caso único ou mesmo raro na história da busca por conhecimento.

Carlos Orsi é jornalista, editor-chefe da Revista Questão de Ciência, autor de "O Livro dos Milagres" (Editora da Unesp), "O Livro da Astrologia" (KDP), "Negacionismo" (Editora de Cultura) e coautor de "Pura Picaretagem" (Leya), "Ciência no Cotidiano" (Editora Contexto), obra ganhadora do Prêmio Jabuti, "Contra a Realidade" (Papirus 7 Mares) e "Que Bobagem!" (Editora Contexto)

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