Com o arrefecimento da pandemia de COVID-19 e o momentâneo ostracismo dos negacionistas mais tonitruantes e obscenos, por ora alijados do poder e exilados nos esgotos da internet, o senso de urgência quanto à necessidade de defesa do conhecimento científico como modo privilegiado de compreender o mundo também enfraquece – o que dá oportunidade para que formas mais suaves e moderadas de negação da ciência deixem seus cupinzeiros e criem asas para acasalar à luz do Sol.
Esse balé primaveril da anticiência “light” segue, em geral, a conhecida coreografia do relativismo epistêmico – a ideia de que a ciência é apenas uma entre diversas “regras do jogo” da produção de conhecimento, todas no fundo equivalentes entre si, porque determinadas por contingências históricas e disputas de poder. Essa visão, popular e superficialmente “democrática” como é, tem o defeito fatal de ignorar dois fatos flagrantes.
Primeiro, que a ciência, ao contrário das supostas alternativas, produz resultados consistentemente sólidos: as leis da física permitem prever que tipo de máquina será capaz de voar na atmosfera terrestre ou até mesmo em Marte, enquanto transes mediúnicos, por exemplo, previam que o planeta vermelho seria habitado por humanoides dotados de tecnologia superior (carros sem rodas ou cavalos) e uma língua própria.
Até mesmo Paul Feyerabend, normalmente citado como uma das principais inspirações dos relativistas radicais, em artigo publicado em 1992, já no fim da vida (Feyerabend faleceu em 1994), passou a queixar-se dos que exageravam o componente cultural do fazer científico e esqueciam-se da necessidade de explicar o sucesso da ciência como produtora de “previsões e tecnologias”. De fato, no posfácio à quarta edição de seu “Contra o Método”, publicada em 1993, o filósofo repudia o relativismo radical (admitindo que “nem toda abordagem funciona”) e, citando Thomas Kuhn, define o chamado “programa forte” da sociologia da ciência – a ideia de que fatos científicos podem ser explicados apenas com base em considerações sociais – como “um absurdo: desconstrução enlouquecida”.
Segundo, que os processos e métodos das ciências foram historicamente construídos, num processo minucioso de tentativa e erro, em atrito contínuo com as fragilidades cognitivas inerentes à natureza humana, como as inúmeras facetas do viés de confirmação, as heurísticas que solidificam preconceitos e o apelo à tradição e à autoridade.
Conspiração e sentido
Mas, no dia a dia, é raro haver tempo ou presteza de raciocínio para levar as lições do(s) método(s) científico(s) em plena consideração, ou avaliar a totalidade da evidência, e principalmente na análise rápida e rasteira de fenômenos da vida pessoal ou social – quando vamos decidir se um boato merece crédito, ou qual a explicação mais provável para uma decisão inesperada de um amigo, colega de trabalho ou líder político – a tendência é cairmos na heurística do “fez sentido, pare”.
Essa é a estratégia cognitiva de interromper imediatamente a busca de evidências ou explicações alternativas assim que um determinado conjunto de fatos, hipóteses e considerações “faz sentido” – isto é, atinge uma aparência superficial de coerência interna (não apresenta contradições evidentes) e se mostra adequada diante do que já sabemos ou acreditamos sobre o evento/pessoa em questão.
É como se nossa imagem mental da situação fosse um quebra-cabeças com uma peça faltando, e a explicação que “faz sentido” tivesse a forma exata para preencher a lacuna. Os problemas com isso são dois: a imagem mental preexistente pode conter erros, principalmente no delineamento da borda do inexplicado, e a peça que achamos primeiro pode não ser a única que cabe lá. Mas se a aceitamos logo de cara, ela nos impede tanto de buscar algo melhor quanto reforça e confirma os erros que talvez estejam presentes na configuração incompleta do quadro geral.
A heurística do “faz sentido, pare” tende a reforçar preconceitos e estimular teorias de conspiração. É muito fácil tratar uma hipótese que se coaduna com nossas preconcepções como evidência a favor delas – o que só seria válido se a hipótese tivesse confirmação independente, empírica, fora de nosso quadro mental particular. O que só raramente acontece. Trata-se de uma constatação que deveria alarmar a todos, dada a prevalência desse atalho mental no debate público, principalmente em torno de questões políticas e econômicas.
“Faz sentido, pare” também acelera a maturação de preconceitos difusos em grandes teorias de conspiração. Má vontade dirigida a um grupo social específico torna hipóteses baseadas na suposta vilania desse grupo mais plausíveis, e uma vez aceitas essas hipóteses convertem-se em “prova” dos maus bofes do coletivo visado. Gente que não gosta de políticos (ou de médicos, ou de jornalistas) aceita com mais facilidade explicações predicadas na venalidade dessas categorias, e a impressão de que a explicação “casa tão bem” com os fatos vai ser usada para validar o quadro.
Ficção
Na literatura de mistério e no cinema de suspense, a tendência humana para cair na armadilha de “faz sentido, pare” é explorada na construção de reviravoltas e traições inesperadas. Nos livros, talvez o maior mestre da técnica tenha sido Ellery Queen (pseudônimo da dupla de autores Frederic Dannay e Manfred B. Lee), que numa série de romances (o melhor dos quais provavelmente é “O Mistério do Ataúde Grego”), apresenta assassinatos que têm duas ou três soluções, cada uma das quais parece “perfeitamente lógica”, ao menos até que seus defeitos sejam apontados e a seguinte, um pouco melhor, seja proposta.
Dado o bombardeio de informações, desinformações e urgências da vida contemporânea, é provável que seja impossível escapar por completo do “faz sentido, pare”. Precisamos de modelos e hipóteses sobre o que de fato existe e está acontecendo no mundo para podermos decidir e agir, e muitas vezes não há tempo de desviar das heurísticas. Mas talvez possamos manter a consciência de que, nesses casos, o processo de avaliação usado está longe de ser ideal, e de que é vicioso, porque circular, crer que uma hipótese nascida e informada por nossos preconceitos tenha o poder de confirmá-los.
No fim, o melhor teste de uma ideia sobre quais os fatos da questão é confrontá-la com esses fatos, e o mais cedo possível. Todos nós, até certo ponto, esculpimos nossas realidades mas, para fechar com mais uma citação de Feyerabend, “escultores são restringidos pelas propriedades dos materiais usados”.
Carlos Orsi é jornalista, editor-chefe da Revista Questão de Ciência, autor de "O Livro dos Milagres" (Editora da Unesp), "O Livro da Astrologia" (KDP), "Negacionismo" (Editora de Cultura) e coautor de "Pura Picaretagem" (Leya), "Ciência no Cotidiano" (Editora Contexto), obra ganhadora do Prêmio Jabuti, e "Contra a Realidade" (Papirus 7 Mares)