Vivemos uma era de decadência moral?

Apocalipse Now
17 jun 2023
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Artigo recente publicado na revista Nature abre com uma citação do historiador romano Tito Lívio, morto lá se vão uns 2 mil anos, lamentando “o amanhecer sombrio do dia atual, quando não somos capazes nem de suportar nossa imoralidade, nem de aceitar os remédios capazes de curá-la”. A frase é usada como exemplo de um tipo específico de comentário social que ressurge em vários momentos da História: a queixa de que as pessoas “de hoje” (não importa se esse “hoje” está em 2023 ou nos tempos do Império Romano) são menos “morais” – no sentido de honestas, gentis, corajosas, caridosas – do que “ontem”.

Os autores do trabalho na Nature (“The illusion of moral decline”), dois psicólogos americanos, investigaram um par de questões ligadas a essa ideia de declínio da decência humana e dos bons modos: sua prevalência enquanto percepção (isto é, com que frequência as pessoas concordam que se trata de um efeito real) e sua prevalência enquanto fenômeno (isto é, se o declínio percebido está mesmo acontecendo, ou se não passa de uma falsa impressão).

O título do artigo (em português, “A ilusão do declínio moral”) já entrega a resposta que encontraram para a segunda pergunta: não existem indicadores objetivos que mostrem uma perda do senso humano de ética, decência e respeito mútuo ao longo dos anos ou das gerações.

Quanto à primeira – se é comum as pessoas acharem que a decência está em extinção –, a resposta foi: sim, é extremamente comum. No tempo e no espaço: compilando dados de pesquisas de opinião que, em conjunto, ouviram mais de 12 milhões de indivíduos, os autores descobriram que a percepção de declínio moral se mantém há no mínimo 70 anos e existe em pelo menos 60 países, incluindo Brasil, Estados Unidos, Itália, França, Bolívia, Argentina, África do Sul, Índia, Indonésia, Japão e Rússia.

Além disso, as pesquisas mostram que a decadência percebida pelo público é tanto intergeracional (cada geração sentindo-se menos decente do que a anterior) quanto intrageracional (as pessoas vendo a decência geral do mundo declinar à medida que envelhecem).

 

Vox Populi?

Claro, apresentadas assim, sem nenhuma explicação adicional, as conclusões do estudo oferecem um paradoxo: como a percepção pode divergir tanto da realidade? E por falar nisso, como os pesquisadores fizeram para medir, com algum grau mínimo de objetividade, o nível de decência humana disponível no planeta ao longo da História, e sua variação?

O primeiro indicador usado foi o registro histórico. Como escrevem os autores:

“Sociedades mantêm (ou pelo menos deixam) registros razoavelmente bons de comportamentos radicalmente imorais, como massacres e conquistas, escravidão e subjugação ou homicídio e estupro, e análises cuidadosas desses registros históricos sugerem fortemente que esses indicadores objetivos de imoralidade têm decrescido de modo significativo nos últimos séculos. Em média, seres humanos modernos tratam uns aos outros muito melhor do que seus ancestrais jamais trataram”.

As referências oferecidas em apoio ao trecho acima são dois livros de Steven Pinker (“Os Anjos Bons de Nossa Natureza” e “Iluminismo Agora”). Há algum debate sobre a pertinência e o alcance das conclusões de Pinker (é possível encontrar boas resenhas a respeito, por exemplo, aqui e aqui), mas os autores também respaldam suas conclusões sobre o caráter ilusório da decadência moral em estudos baseados em entrevistas com cidadãos comuns, semelhantes a pesquisas de opinião – mas em que, em vez de perguntar o que as pessoas acham, perguntam como elas se comportam e são tratadas, com questões sobre se o respondente se sentiu desrespeitado recentemente, se costuma doar sangue, ou se casos de assédio no trabalho são investigados ou abafados.

Os pesquisadores localizaram mais de uma centena de questões sobre comportamento moral presentes em levantamentos conduzidos ao longo de 55 anos, de 1965 a 2020, e que foram aplicadas pelo menos duas vezes, com intervalo de, no mínimo, uma década. O pressuposto sendo que, se houvesse declínio moral ao longo do tempo, ele apareceria na evolução das respostas dadas a tais perguntas (com menos gente doando sangue no presente do que no passado, por exemplo). Análise estatística mostrou que “os informes dados pelas pessoas sobre a moralidade de seus contemporâneos são estáveis ao longo do tempo”.

Em suma, embora exista uma percepção generalizada de declínio da decência humana, não existe uma constatação generalizada desse mesmo declínio.

 

Saudosismo e jornalismo

“Se a moralidade não decaiu, porque as pessoas pensam que sim?”, perguntam-se os autores, para em seguida ponderar que “certamente, há muitas respostas boas para essa questão”. A que eles oferecem envolve uma mistura de vieses cognitivos e midiáticos.

Entre os cognitivos estão a tendência de prestarmos mais atenção a eventos negativos que nos são apresentados no presente, e a registrar fofocas negativas e casos concretos de mau comportamento dos outros, ao mesmo tempo em que tendemos a “apagar” ou “suavizar” eventos negativos do passado – esquecendo-os, reinterpretando-os (como “lições de vida”, por exemplo) ou nos distanciando de seu impacto emocional original.

Já o viés midiático vem da exposição seguida de casos de mau comportamento (de políticos, artistas, atletas...) por parte da imprensa e das redes. É muito fácil esquecer que a definição tradicional de notícia embute o pressuposto de que se trata de um evento excepcional, inesperado ou extraordinário. É por isso que acidentes de avião viram manchete e pousos bem-sucedidos, não.

 

Ontem e hoje

A mistura de atenção reforçada à imoralidade do presente – superexposta em todo tipo de rede – com a tendência mental de “passar pano” para as imoralidades do passado seria, então, a fonte da percepção generalizada de que a decência humana vem diminuindo, a despeito dos indicadores que sugerem progresso ou, no mínimo, estabilidade. Nos tempos do Império Romano (e de nossos avós) ainda não havia redes de mídia (tradicional ou social) tão desenvolvidas como as de hoje, mas gosto por fofoca maliciosa e atenção seletiva provavelmente são tão antigas quanto a Humanidade, assim como a tendência de idealizar os “bons velhos tempos”, ainda que nunca tenham sido mesmo tão bons.

Falar em “progresso moral” é sempre complicado – se por um lado parece perverso não reconhecer (por exemplo) que um mundo onde a escravidão é ilegal é objetivamente melhor do que um onde ela é o modo de trabalho dominante, por outro há o risco sempre presente da complacência, de achar que tudo o que precisava ser feito já foi, que não há mais para onde ir e que ou nenhuma chance de retrocesso existe; ou que o progresso é inexorável, que a História tem um rumo predefinido, sempre morro acima.

Ou, o que talvez seja ainda pior, a sensação de que retrocesso é a única possibilidade: a partir do topo, todos os caminhos levam para baixo, afinal. Esta, paradoxalmente, talvez seja a intuição fundamental daqueles românticos saudosistas que sonham com a volta de um “cume” anterior, imaginário, um mundo puro que precedeu a queda que na verdade (pelo menos ainda) não aconteceu. Para esses, “progresso moral” só pode ocorrer se houver retorno ao passado – um passado de fantasia que nunca existiu.

Carlos Orsi é jornalista, editor-chefe da Revista Questão de Ciência, autor de "O Livro dos Milagres" (Editora da Unesp), "O Livro da Astrologia" (KDP), "Negacionismo" (Editora de Cultura) e coautor de "Pura Picaretagem" (Leya), "Ciência no Cotidiano" (Editora Contexto), obra ganhadora do Prêmio Jabuti, e "Contra a Realidade" (Papirus 7 Mares)

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