Sei que já virou clichê usar o substantivo “terraplanismo” como chave genérica para fazer referência a sistemas de crença que insistem em prosperar mesmo contra toda a evidência e o bom senso, mas clichês tornam-se clichês por algum motivo, e não há termo melhor para definir a lista de “fatos alternativos” sobre o sistema eleitoral brasileiro despejada sobre o corpo diplomático estrangeiro pelo atual presidente da República, no início da última semana, em seu mais recente crime de responsabilidade.
Supor que o sistema de votação eletrônica brasileiro, utilizado com sucesso há décadas, sofre de vulnerabilidades significativas, e que tais vulnerabilidades presumidas seriam eliminadas pela adoção de algum esquema envolvendo votações ou apurações paralelas, requer um nível de desconexão com a realidade comparável ao de quem acredita que a Terra é plana e foi colonizada há centenas de milhões de anos por alienígenas de Ratanabá.
Muito já se escreveu sobre a solidez e a resiliência do sistema, e o próprio Tribunal Superior Eleitoral construiu, em seu website, uma página com referências que desmontam os delírios conspiratórios do presidente. Mas, assim como os terraplanistas que insistem em ignorar argumentos e evidências que se estendem de Aristóteles ao GPS dos celulares, para Bolsonaro e seus sequazes toda essa informação é irrelevante. Para eles, “verdadeiro” não é o que corresponde aos fatos, mas o que serve a seus interesses e confirma seus preconceitos. O que faz da “crise” eleitoral um exemplo de controvérsia fabricada, algo muito discutido, estudado e debatido em comunicação e filosofia da ciência.
Lá-lá-lá
Em meu livrinho sobre negacionismo (que, pausa para o comercial, terá sessão de autógrafos em São Paulo no início de agosto) mostro como culturas que, para se manterem coesas, precisam sustentar um estado de ignorância sobre certos fatos do mundo – os criacionistas, por exemplo – adotam um espectro de estratégias que vai passando, em degradê, da gritaria para a surdez seletiva, e chega a apelos altamente localizados, cínicos, por “razoabilidade” e “imparcialidade”.
Em essência, no entanto, esse espectro todo não é nada mais do que uma manifestação de teimosia infantil, igual à criança que tapa os ouvidos, fecha os olhos com força e começa a gritar “lá-lá-lá” quando recebe uma má notícia.
A fase da gritaria é bem descrita, ainda que de forma alegórica, por George Orwell em “A Revolução dos Bichos”: quando algum dos animais da fazenda que se revoltou contra o domínio humano tenta questionar as arbitrariedades que vão sendo cometidas pela nova elite suína, um bando de ovelhas doutrinadas começa a berrar o slogan maniqueísta “quatro perna bom, duas pernas ruim” e sufoca qualquer possibilidade de discussão racional.
Ela se torna insustentável, no entanto, quando o grupo é penetrado por informações e opiniões que vêm de fora. Dada a impossibilidade de controlar o que os fiéis veem e ouvem, mesmo com a gritaria, surge a necessidade de engajamento com os fatos desagradáveis. Às vezes isso resulta num debate produtivo, e aí saímos do espectro negacionista, mas o mais comum é o roteiro evoluir para a próxima fase, a da surdez seletiva.
Ela se manifesta na tentativa de crirar a impressão de que os tais fatos não são tão factuais assim, de que questões já bem resolvidas seguem em aberto. Na recusa em registrar a informação de que o “problema” apontado, na verdade, não existe.
Quando um criacionista pergunta por que não há fósseis de transição, por exemplo, e alguém responde citando o fato bem conhecido de que há inúmeros desses fósseis por aí, a reação mais comum é o questionador fingir que não ouviu a resposta, esperar o cidadão bem informado se afastar e voltar a fazer a pergunta. O propósito não é dirimir uma dúvida honesta, mas dar ao público desavisado a impressão de que o problema existe.
Quando o bolsonarismo insiste que o voto eletrônico não é auditável, a despeito do grande número de esclarecimentos e explicações sobre como a votação na urna eletrônica pode ser checada e passar por recontagem, o protofascismo brasileiro apenas copia uma página dos manuais clássicos do negacionismo.
É só uma pergunta...
Quando a pessoa bem-informada e de boa vontade finalmente percebe que está falando com uma parede e perde a paciência, o negacionista profissional faz cara de vítima ofendida e solta um “mas eu estava apenas apresentando um questionamento...”. Esta é a etapa da simulação de racionalidade.
Para quem liga a TV no meio do jogo, fica a impressão de que o negacionista é um curioso sincero em busca de respostas, e a pessoa bem-informada, um brucutu dogmático.
Imagine alguém perguntando no Twitter, de modo aparentemente inocente, “será que os homens não são, em geral, mais inteligentes do que as mulheres?”. E uma outra pessoa responde: “Hipótese meio esquisita essa sua, e de fato já sabemos que isso não é verdade: você pode conferir as referências neste material aqui”. O que, no caso de uma dúvida honesta e sincera, deveria bastar para manter o autor da pergunta original ocupado, estudando e refletindo, por um bom tempo.
Só que, em vez de se dirigir à Wikipedia, à biblioteca (ou ao SciHub), o primeiro sujeito retorna imediatamente ao teclado: “mas será que as diferenças de inteligência não explicam o fato de os homens terem mais posições de poder?”. O que deixa o segundo meio irritado: “Você leu o material? Tem alguma dúvida específica?”. E o primeiro insiste: “Tive essa ideia de que talvez a desigualdade social entre homens e mulheres seja causada por...”.
Ao que o segundo, exasperado, responde: “Cara, desculpe, mas que ideia fixa é essa? Você já está soando machista pra burro”. E o primeiro retruca, indignado: “Não se pode mais questionar nada neste mundo sem ser atacado pelo politicamente correto!”. E aí um monte de gente, que pegou a história pela metade, corre em defesa do pobre questionador “cancelado”.
Quando Bolsonaro pergunta, pela milésima vez, “por que o TSE não acata as sugestões das Forças Armadas?” (sendo que as sugestões que prestavam já foram acatadas e as outras eram ideias de jerico), ele está mirando nesse efeito.
Ao lidar com dúvidas e perguntas levantadas pelo negacionismo profissional na esfera pública (em oposição, por exemplo, ao tiozão negacionista no churrasco de sábado), é importante ter em mente que o objetivo dos questionamentos é influenciar as atitudes e emoções do público, não chegar à verdade. O negacionista cínico não liga para a verdade, enquanto o sincero acredita que já conhece todas as verdades que valem a pena.
O movimento antivacinas (que, aliás, vem se articulando no Brasil com o apoio moral do presidente e da nuvem de gafanhotos que o acompanha) também é mestre no uso do degradê gritaria/surdez/só-uma-perguntinha-que-mal-que-tem. O antivacinismo tem muito em comum com o “anti-urnismo”
Primo-irmão do golpe da “dúvida sincera” é o da “liberdade de expressão”: quando o negacionista é repreendido por continuar a repetir perguntas e insinuações que já foram satisfatoriamente respondidas e debeladas ad nauseam, alguém sempre aparece para dizer que ele “tem o direito” de expressar suas dúvidas. E é óbvio que tem. Mas nós também temos o direito de apontar que a insistência pertinaz é sinal de limitações cognitivas graves, de fanatismo irracional – ou de simples má-fé.
O que fazer?
Uma das lições mais desalentadoras da luta da comunicação de ciência contra o negacionismo é a de que informar é insuficiente. Garantir que a informação correta circule e esteja acessível é um primeiro passo fundamental mas, sozinho, não costuma bastar contra a manipulação emocional embutida em teorias de conspiração que se propagam por redes de afinidade (família, igreja, amigos, partido, etc.).
Existe pesquisa sugerindo que, quando o lado negacionista argumenta de má-fé, expor os estratagemas desonestos usados ajuda o público a reagir melhor à informação correta, e também serve como “vacina” contra futuras manipulações. Em outras palavras, é contraproducente colaborar para manter a fachada de que existe um debate legítimo em andamento, e esperar que a mera apresentação dos fatos vá resolver o problema. É preciso mostrar ao público que o oponente não liga para a verdade e usa subterfúgios.
A “sugestão” da votação paralela é um exemplo: não basta descartá-la como desnecessária (ou tola, ou ingênua), mas denunciá-la pelo que de fato é – a tentativa de construir uma narrativa conspiratória para “melar” a eleição, bastando para isso que alguns dos votos “paralelos” divirjam, deliberadamente, dos da votação oficial: a discrepância servindo de pretexto para o pandemônio.
Neste aspecto, o combate dado pelas instituições (STF, TSE, parte do Legislativo) ao terraplanismo eleitoral do Executivo vem sendo inadequado e insuficiente. Limitar-se a reiterar a informação correta, referendando, implicitamente, a fantasia de que é razoável repisar dúvidas antigas e já esclarecidas sobre o processo; de que todas as sugestões, mesmo as mais estapafúrdias, são feitas de boa fé; de que ainda existem verdadeiras relações institucionais democráticas e de respeito mútuo – é como fingir que as regras do boxe estão sendo respeitadas enquanto um dos contendores entra no ringue sem luvas e carregando um fuzil.
Existem soluções políticas e legais para isso (impeachment, cassação de candidatura, cadeia), mas enquanto as instituições responsáveis por aplicá-las mostram-se tímidas, uma denúncia mais aguda – por parte das instituições que ainda funcionam – da desonestidade discursiva intrínseca ao terraplanismo eleitoral seria mais do que bem-vinda.
Carlos Orsi é jornalista, editor-chefe da Revista Questão de Ciência, autor de "O Livro dos Milagres" (Editora da Unesp), "O Livro da Astrologia" (KDP), "Negacionismo" (Editora de Cultura) e coautor de "Pura Picaretagem" (Leya), "Ciência no Cotidiano" (Editora Contexto), ganhador do Prêmio Jabuti, e "Contra a Realidade" (Papirus 7 Mares)