No fim do ano passado, uma breve onda de agitação passou pela mídia de língua inglesa, tratando da “revelação” da identidade do menino cujo caso havia inspirado o romance (depois filme) “O Exorcista”: ele era Ronald Hunkeler, nascido em 1935 e falecido em 2020, pouco antes de seu 86º aniversário.
Uso a palavra “revelação” assim entre aspas porque a identidade do garoto (que relatos mais antigos do caso de exorcismo, ocorrido em 1949, nomeiam com pseudônimos como “Roland Doe” ou “Robbie Mannheim”) já era um segredo aberto pelo menos desde que o jornalista Mark Opsasnik conduziu sua investigação aprofundada, no fim do século passado, dos eventos que haviam inspirado o romancista William Peter Blatty (1928-2017).
Num meticuloso trabalho de detetive, incluindo pesquisas em jornais e revistas antigos e entrevistas com pessoas próximas ao caso, Opsasnik determinou a cidade em os pais do jovem viviam, a data de nascimento e as escolas em que “Mannheim” teria estudado. Trabalhando com base numa estimativa do ano de formatura do garoto na faculdade e revisando listas de ex-alunos, chegou a Hunkeler. Cito o trabalho de Opsasnik em meu “Livro dos Milagres”.
Enciclopédia
Quando lançou sua reportagem sobre o caso, em 1999, Opsasnik optou por preservar a identidade da figura central, mas deixou claro que pelo menos uma testemunha dos eventos acreditava que a “possessão” havia sido encenada por um adolescente que queria chamar atenção e matar aula.
De qualquer modo, a identidade vazou – além da investigação de Opsasnik, existia ainda um diário mantido por um dos padres que tomaram parte no exorcismo, que teve trechos publicados em 1994. E a informação certamente circulava, ainda que de modo velado, não só na comunidade onde os eventos haviam ocorrido, como também entre os padres jesuítas que conheciam os exorcistas envolvidos.
O fato é que uma enciclopédia sobre possessão demoníaca publicada em 2015 pela editora ABC-CLIO, especializada em obras acadêmicas e de referência para bibliotecas, já dizia, a respeito da inspiração para o livro de Blatty, que “hoje acredita-se que o menino fosse Robert E. Hunkeler, de Cottage City, Maryland”. E em 2018 o parapsicólogo Sergio Rueda publicou o livro “Diabolocal Possession and the Case Behind the Exorcist”, que reproduz diversos documentos originais e dá os nomes reais de todos os envolvidos.
Mas então, se o fato já estava oficialmente fora do saco pelo menos desde 2015, por que a comoção em 2021? A principal razão talvez seja que, com a morte de Hunkeler no ano anterior, a grande mídia por fim sentiu-se livre para divulgar seu nome, que até então circulava apenas em publicações especializadas, para o público de massa. O que sugere um nível espantoso de respeito pela privacidade individual!
Projeto Apollo
O gatilho para a série de publicações – citado, por exemplo, em The Guardian e no NY Post – foi uma nota escrita para a revista Skeptical Inquirer pelo podcaster JD Sword, que traz uma breve declaração de Opsasnik confirmando a identidade de Hunkeler e descreve um documento extra sobre o caso descoberto por Sword: uma carta, de autoria de um dos exorcistas envolvidos, que cita o nome da família e do menino.
Tomando o material de Sword como ponto de partida, o Post levantou mais algumas informações a respeito de Hunkeler, incluindo o fato de que ele havia trabalhado como engenheiro para a Nasa ao longo de 40 anos, tendo participado do Projeto Apollo, que levou astronautas à Lua, e inventado um tipo de cerâmica isolante usada para proteger naves espaciais do calor na reentrada da atmosfera.
(Meu lado ficcionista não consegue deixar de imaginar que tipo de história poderia ser inventada a partir da premissa de um engenheiro possuído pelo demônio trabalhando com naves espaciais e voos lunares durante a Guerra Fria, mas vou poupar o pobre leitor dessas elucubrações).
O jornal nova-iorquino diz ainda ter localizado uma amiga do falecido Hunkeler que aceitou falar sobre ele, com a condição de não ser identificada. De acordo com ela, durante sua carreira na Nasa o engenheiro era meio paranoico com a possibilidade de os colegas de trabalho descobrirem que ele era a “fonte original” de “O Exorcista”. Também, que ele não ficava em casa no Dia das Bruxas, para evitar que alguém aparecesse para importuná-lo – um repórter sensacionalista ou um fanático por histórias de terror, talvez.
“Caso real”
Uma declaração da amiga de Hunkeler, citada sem muito destaque no Post, merece muito mais atenção do que tem recebido. O jornal transcreve a seguinte fala: “Ele disse que não havia sido possuído, que tinha sido tudo uma armação (...) Ele disse, ‘eu era só um menino mau’”.
Isso confirma as impressões apuradas por Opsasnik em suas entrevistas, conduzidas duas décadas atrás, com amigos de infância de Hunkeler e um com dos padres exorcistas: que ele era “malvado”, gostava de pregar peças, era um filho único mimado (palavras do amigo) e nada de inexplicável realmente aconteceu durante o caso (o que se deduz das declarações do padre). O jornalista concluiu sua investigação de 1999 da seguinte forma:
“Os fatos mostram que ele era um filho único, mimado e problemático, com uma mãe superprotetora e um pai indiferente. Para mim, seu comportamento sugere um jovem deslocado que queria dar um jeito, qualquer jeito, de largar a escola”.
Somada à investigação de Opsasnik, a declaração publicada no Post deveria representar a martelada final no último prego do caixão das pretensões de “baseada em fatos reais” da franquia midiática “O Exorcista” – da última vez que contei, eram cinco filmes, dois romances e uma série de TV, sendo que há a possibilidade de novos filmes aparecerem no ano que vem.
É verdade que Blatty se inspirou em material sobre o caso de Hunkeler, que encontrou inicialmente numa nota do jornal Washington Post. Mas investigações como a de Opsasnik, Rueda e, agora, o obituário tardio do “menino possuído” devem bastar para deixar claro que “O Exorcista” é, para adaptar uma antiga fórmula, 1% inspiração e 99% imaginação. E tudo bem: trata-se de uma obra de ficção, afinal.
Mas a sombra de “mistério real” pairando sobre a história ajuda a vender ingressos (e exemplares), então é improvável que o fato de o “mistério” já estar resolvido venha a inibir o pessoal do marketing. Numa nota mais positiva, é reconfortante saber que Hunkeler superou sua má índole e seus traumas para viver uma vida produtiva, colaborando com um dos maiores projetos da Humanidade. Até adolescentes endemoninhados têm esperança, afinal.
Carlos Orsi é jornalista, editor-chefe da Revista Questão de Ciência, autor de "O Livro dos Milagres" (Editora da Unesp), "O Livro da Astrologia" (KDP) e coautor de "Ciência no Cotidiano" (Editora Contexto), ganhador do Prêmio Jabuti, e "Contra a Realidade" (Papirus 7 Mares)