Atenção para o negacionismo 2.0

Apocalipse Now
5 mar 2022
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O mais recente relatório do Painel Intergovernamental para Mudanças Climáticas (IPCC) da ONU soa, como mais de um comentarista já definiu, como um enorme “a gente avisou” da comunidade científica para o mundo.

Um dos textos divulgados pelo Painel para resumir suas conclusões de forma acessível para o público não-especialista afirma que “a mudança climática afeta a natureza, a vida humana e a infraestrutura em todo o mundo. Seus impactos amplos e perigosos são cada vez mais evidentes. Esses impactos atrapalham os esforços para atender às necessidades humanas fundamentais e ameaçam o desenvolvimento sustentável”.

Desde seu segundo relatório, publicado em 1995 (o atual é o sexto), que o IPCC adverte para a influência deletéria da atividade humana, principalmente da queima de combustíveis fósseis, sobre o clima. Quando aquele relatório saiu, 27 anos atrás, a artilharia do negacionismo abriu fogo de imediato. É famosa (ou, mais precisamente, infame) a carta enviada pelo físico Fred Singer à revista Science, em 1996, para tentar desacreditar o trabalho do Painel. As tentativas de assassinato de reputação, intimidação política e falsificação científica que se seguiram são parte do registro histórico.

Uma geração depois, no entanto, os fatos são tão evidentes que a negação pura e simples começa a soar como terraplanismo e, com isso, perde sua principal função estratégica: a de confundir a opinião pública e impedir que políticas públicas de redução de emissões de carbono tenham o apoio popular necessário para que sejam implementadas. Isso não significa, no entanto, que os interesses (econômicos e ideológicos) por trás da oposição a essas políticas tenham cruzado os braços. Eles simplesmente tiraram a maior parte (maior parte, não todas) de suas fichas do negacionismo e passaram a apostar no inativismo.

 

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A expressão “inativismo” aparece no livro “The New Climate War” (“A Nova Guerra Climática”) do climatologista americano Michael Mann, famoso por ser o principal autor do artigo científico que revelou ao mundo a versão original do “gráfico do taco de hóquei”, que mostra o aquecimento abrupto do planeta no século passado. Mann define “inativismo” como a atitude de reconhecer que o problema existe e ao mesmo tempo garantir que nada — ou, ao menos, nada que prejudique os interesses dos patrocinadores — seja feito para resolvê-lo.

Essa é a linha das empresas petrolíferas que tentam se “reinventar” como “verdes”. Mann cita o artigo “In defense of eco-hypocrisy”, de Sami Grover, onde lemos que “as empresas de combustíveis fósseis adoram falar sobre o meio ambiente. Mas querem manter a conversa em torno de responsabilidades individuais, não de mudança sistêmica ou responsabilidade corporativa”. Ou, como escreve o jornalista Malcolm Harris, também citado por Mann, as empresas de gás e petróleo “querem que as pessoas pensem nelas como parte da solução. Na verdade, elas são um problema que luta para não ser solucionado”.

O que não é muito diferente, se prestarmos atenção, da indústria do cigarro tentando convencer o público de que quer ajudar as pessoas a parar de fumar, ou da Coca-Cola promovendo atividade física contra a obesidade.

Em seu livro, Mann constrói uma espécie de anatomia do inativismo, apontando as estratégias mais comuns de seu uso no debate sobre mudança climática. Adaptando um pouco a análise do autor, ofereço uma “versão dublada” que resume a estrutura das iniciativas inativistas em cinco verbos iniciados pela letra “D”: distorcer, distrair, desviar, dividir e desanimar. Vamos ver como isso funciona.

 

Distorcer e distrair

Distorção de fatos e números é o alicerce do edifício inativista. Às vezes, é tão brutal que seu caráter doloso fica evidente logo de cara, mas na maioria dos casos ocorre de modo mais sutil, por descontextualização. Por exemplo, usando a afirmação, real, de que o número de mortes por desastres climáticos (furacões, enchentes, ressacas) caiu nos últimos 50 anos. Os dados são da Organização Meteorológica Mundial (WMO), e estão disponíveis para o público. Dito assim, parece que a preocupação com mudança climática é exagerada – o aquecimento global aumenta e morre menos gente, oras. Mas o mesmo relatório oferece o seguinte contexto, num parágrafo conciso:

“O número de desastres aumentou por um fator de cinco num período de 50 anos, por causa da mudança climática, maior ocorrência de eventos climáticos extremos e melhor notificação. Mas, graças a melhorias nos alertas antecipados e no gerenciamento de desastres, o número de mortes caiu a quase um terço”.

Resumindo, usar o dado da WMO para dizer que não precisamos nos preocupar com mudança climática é como dizer que não precisamos nos preocupar com ameaças de uso de armas atômicas porque os abrigos nucleares melhoraram muito nos últimos anos.

A ideia geral que se busca vender, de que é possível encontrar, sem esforço ou sacrifício, um modus vivendi doce e agradável com a mudança climática, lembra um episódio de Jornada nas Estrelas em que dois planetas conseguiam se manter em guerra por séculos, sem serem completamente destruídos um pelo outro, graças a um esquema em que todos os ataques eram virtuais, as baixas eram calculadas por computador e os moradores das “áreas atingidas” encaminhavam-se voluntariamente para câmaras de eutanásia.

É o distorcer, enfim, que viabiliza todo o resto — começando pelo distrair. Somos distraídos, por exemplo, quando nos levam a crer que o problema vai se resolver sozinho, seja pelo surgimento espontâneo de novas tecnologias, seja por ajustes de mercado que acontecerão “porque sim”, sem necessidade de pressão regulatória. Somos colocados na posição do cara que, caindo do vigésimo andar do prédio, diz “até agora, tudo bem” e se encanta com a arquitetura da fachada.

 

Desviar e dividir

Desviar é uma modalidade específica de distração, que tenta tirar a responsabilidade pelo problema dos ombros do maior culpado, “democratizando-a” pela sociedade. Michael Mann cita como exemplo original da estratégia o slogan “armas não matam pessoas, pessoas matam pessoas”, que busca isentar o principal fator de risco para violência com armas de fogo — o acesso a essas armas, muito fácil nos Estados Unidos e, cada vez, mais no Brasil — e desvia a responsabilidade para questões individuais de caráter e psicologia, como se não fizesse diferença, para o nível de risco de vida da esposa do ciumento patológico, se o marido tem no armário um canivete suíço ou um revólver carregado. 

No caso da mudança climática, o principal desvio é da responsabilidade regulatória e corporativa para a atitude individual. Parafraseando Mann, se as pessoas começam a achar que parar de viajar de avião e de comer carne é uma forma mais eficiente de combater a mudança climática do que pressionar governos para que limitem as emissões de CO2 de importantes setores da economia e invistam em fontes limpas de energia, isso é a estratégia do desvio funcionando. Escreve ele: “um foco desproporcional na ação individual pode sabotar o apoio a soluções sistêmicas para o problema da mudança climática”.

Mann acusa a imprensa de cumplicidade com o esquema de desviar responsabilidades, e não está errado. O caso de amor da mídia com histórias de “serviço” e “estilo de vida” — basicamente, material “fofinho” dizendo às pessoas coisas que podem fazer para se sentir melhor consigo mesmas — é campo fértil. O climatologista critica muito o New York Times, mas o fenômeno é universal. Uma de minhas últimas reuniões como jornalista do Estadão, na década retrasada, envolvia uma nova diretriz para a cobertura de meio ambiente, que segundo a direção da empresa deveria focalizar mais “no que o leitor pode fazer” para ajudar o planeta. Votar em políticos que não fossem tarados por petróleo curiosamente não estava na lista.

Quando o desvio se estabelece, é fácil usá-lo para gerar divisão: ainda mais num ambiente polarizado e tomado por acessos de moralismo exibicionista como o das redes sociais, não é preciso muito esforço para que vegetarianos que viajam de avião e onívoros ciclistas se lancem uns contra os outros, trolls comecem a gritar “hipocrisia” por todo lado… E enquanto os leões narcisos da virtude rugem para ver quem tem o estilo de vida mais ascético e a menor pegada de carbono, a extração de petróleo no pré-sal bate recorde.

 

Desanimar

Quando aceitamos a distração de que a mudança climática não vai ser tão ruim assim, ou de que o desenvolvimento tecnológico e as forças de mercado vão tomar conta do problema para nós, desanimamos de fazer algo a respeito. Desanimar também acontece quando pensamos o oposto, que o problema é insolúvel ou que qualquer solução vai requerer transformações tão radicais — uma conversão geral da Humanidade à dieta vegana, o fim do capitalismo — que nos sentimos impotentes e jogamos as mãos para o alto, em desespero.

Desanimar é a armadilha que aguarda quem escapa do desviar e do dividir, e do ponto de vista do pessoal que fatura com o inativismo, é tão eficiente quanto. Não importa se as pessoas estão gastando energia em briguinhas irrelevantes ou se desistiram de lutar — o que importa é que a pressão popular, que poderia levar governos a reduzir os incentivos econômicos da emissão de carbono, seja evitada ou dispersada num sem-número de becos sem saída.

O inativismo é a versão 2.0 do negacionismo, e tem todas as vantagens que se espera de uma atualização de software: roda melhor, tem uma interface mais amigável e, talvez a principal, esconde melhor seus bugs, o que faz com que seja mais amplamente adotado, inclusive por quem não havia adquirido o lançamento anterior.

Num movimento quase simultâneo, enquanto os negacionistas do clima veem desaparecer seu acesso privilegiado a espaços nobres da mídia e seu alcance se restringe a setores altamente polarizados da população, inativistas emergem para ocupar o vácuo deixado no discurso público, falando em nome do “bom senso”, da “pluralidade” e da “moderação”: não sejamos alarmistas, claro que ninguém nega que estejamos caindo, mas vejam só, já passamos por 19 andares, ainda não aconteceu nada demais e vamos admitir que a vista é linda. Relaxe!

Carlos Orsi é jornalista, editor-chefe da Revista Questão de Ciência, autor de "O Livro dos Milagres" (Editora da Unesp), "O Livro da Astrologia" (KDP) e coautor de "Ciência no Cotidiano" (Editora Contexto), ganhador do Prêmio Jabuti, e "Contra a Realidade" (Papirus 7 Mares)

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