Todo ano, no início de janeiro, acontece aqui em Nova York o “Fim de Semana Sherlock Holmes”, uma série de dias (que, a despeito do nome, estende-se para além do fim de semana em si) em que fãs do Grande Detetive e estudiosos da obra de Sir Arthur Conan Doyle reúnem-se em eventos, exposições, jantares, palestras – alguns organizados pela mais antiga sociedade de apreciadores das aventuras de Holmes, os Baker Street Irregulars, outros, por grupos independentes ou como iniciativas espontâneas.
(Não sei se já me gabei disso aqui, mas tenho dois “papers” publicados no “Baker Street Journal”, o órgão oficial dos “Irregulars”. Um, da década passada, sobre as duas brasileiras que aparecem como vilãs em histórias do detetive e outro, sobre algumas inconsistências do romance “Um Estudo em Vermelho”, na edição mais recente.)
Nesse período, a Mysterious Bookshop – uma livraria especializada em livros de mistério, suspense e espionagem – reforça seu catálogo holmesiano. A loja normalmente já mantém uma parede inteira, do rés do chão ao teto, de estantes dedicadas a livros de (ou sobre) Sherlock Holmes e Conan Doyle, mas em janeiro, quantidade e variedade ganham corpo.
E, neste ano, eu estava lá. Com o dólar do jeito que anda não pude fazer o estrago completo que pretendia, mas consegui duas raridades. A primeira, um fac-símile do manuscrito original do conto “Horror nas Alturas”, uma história de terror escrita por Conan Doyle que usa ficção científica, e não o sobrenatural, para espantar o leitor.
O conto, de 1913, menos de uma década após a invenção do avião, especula sobre a possibilidade de haver toda uma ecologia flutuante na estratosfera, que estaria começando a ser perturbada pelos aviadores humanos. Lendo-o hoje, é difícil não pensar nos monstros-dirigível que, Carl Sagan imaginava, poderiam viver na atmosfera de Júpiter.
Mas mais interessante (e mais ligada aos temas usuais deste espaço) é a segunda raridade: a reedição de 1997 do original de 1922 “The Coming of the Fairies” (“A Chegada das Fadas”), livro em que Conan Doyle argumenta que já existiriam evidências firmes o suficiente à disposição para que a Humanidade reconhecesse a existência de... fadas e duendes.
É sério.
O grosso do livro diz respeito ao caso das Fadas de Cottingley, em que duas adolescentes apresentaram fotografias que, segundo elas, registravam fadas de verdade, brincando e dançando num jardim. Trata-se de uma fraude óbvia (detalhes no link acima), mas que convenceu Conan Doyle, e algumas outras pessoas, completamente.
A obra, cuja publicação original completa 100 anos agora em março, tem óbvio interesse histórico, mas mais do que isso: é importante (ou, no mínimo, curioso) avaliar os argumentos mobilizados por Conan Doyle para justificar sua afirmação de que as meninas de Cottingley e outros testemunhos que ele reunira tornavam racionalmente obrigatório aceitar a existência de uma “nova ordem da vida”, cuja existência “foi estabelecida e deve ser levada tão em conta quanto a dos pigmeus da África Central”.
Este é um ponto que deve ser sempre enfatizado: a posição de Sir Arthur neste caso (assim como em sua defesa do espiritualismo) era de que o ônus da prova já havia sido pago, e com juros. Que qualquer observador racional e honesto, que se despisse de preconceitos e hábitos mentais injustificados, concluiria que fadas são reais.
“Minha alma se enche de frio desprezo pela turronice indiferente e pela covardia moral que vejo ao meu redor”, escreve o autor numa carta reproduzida no livro, referindo-se ao que ele via como a inexplicável insistência do mundo em rejeitar a realidade das fadas.
Essa convicção espantosa baseava-se em evidências e argumentos; que as evidências (fotos, etc.) eram inválidas, é algo que já foi estabelecido e discutido à exaustão (o link no primeiro parágrafo desta seção leva a um resumo do caso). Agora, seria didático rever os argumentos: perceberemos que serão familiares, reeditados, como foram, em inúmeras polêmicas do último século.
Presunção da inocência
O primeiro é o da suposta integridade e competência inquestionáveis das testemunhas e das fontes de evidência. Esse argumento pressupõe dicotomia: ou estamos diante de um relato verdadeiro, ou de um louco/idiota/canalha. Como ninguém quer ser deselegante e chamar os outros de loucos, canalhas e idiotas...
A dicotomia já começa desequilibrada: um de seus termos diz respeito a uma história, mas o outro, a uma pessoa. Tenta vender a ideia de que ou aceitamos piamente o que nos é dito, ou presumimos que quem diz é venal ou incompetente. Mas isso é falso: a pessoa pode simplesmente estar enganada, ter sido enganada, ter sido alvo de uma ilusão, não ter informação suficiente para interpretar os eventos ou ter interpretado o que viu incorretamente.
Em outras palavras, equaciona-se, indevidamente, sinceridade subjetiva (a pessoa acredita mesmo no que está dizendo) e realidade objetiva (o que é o fato, o que é o caso). E como em toda equação, a igualdade funciona também na forma negativa: se este não é o caso, então a pessoa não é sincera.
É uma manobra que busca remover a questão do campo da evidência e transferi-la para o da honra e da moral, e sob uma chave simplista, monocromática: há pessoas íntegras e canalhas, sem meios-tons, sem espaço para mal-entendidos, ou para brincadeiras que vão longe demais.
Isso fica explícito, por exemplo, nos relatos feitos por Edward Gardner, o descobridor original das primas que haviam fotografado as fadas, em material reproduzido no livro de Sir Arthur:
“O caso se resumiu, logo nos estágios iniciais, ao exame do elemento pessoal e da motivação para falsidade. Foi o que nos manteve mais ocupados, pois compreendíamos plenamente a necessidade imperiosa de obter prova esmagadora e satisfatória de integridade pessoal, antes de aceitarmos as fotos como genuínas”.
E Gardner, novamente:
“É quase desnecessário mencionar que a força do caso jaz em sua fantástica simplicidade e na integridade da família envolvida. Não é na evidência fotográfica, mas na pessoal, que o caso se sustenta”.
Claro, sabemos que a integridade da família não era tudo aquilo que Gardner supunha (a escritora F.R. Maher, num longo artigo para a revista Fortean Times em 2017 e em seu livro “The Secret of the Cottingley Fairies”, sugere que o pai de uma das garotas estaria envolvido na fraude), mas mesmo que fosse: o erro fundamental está em tratar a confiabilidade da evidência como algo que se infere necessariamente da confiabilidade (presumida) da testemunha.
Esses domínios não são, claro, de todo independentes (não no mundo real), mas o elo é muito mais fraco do que a noção vitoriana de “honra” fazia imaginar. Em termos ideais, toda e qualquer evidência deveria ser julgada por seus próprios méritos, não importando a identidade ou a reputação da fonte. Na nossa realidade imperfeita, a conexão é mais forte e legítima no sentido oposto ao assumido por Gardner: evidência ruim ou suspeita deve nos deixar com o pé atrás em relação a fontes de aparência impecável.
Nesse mesmo contexto, a própria ideia de motivação para a fraude é reduzida ao estereótipo do ganho financeiro imediato. Escreve Conan Doyle: “Essas várias testemunhas não têm nada a ganhar com seu testemunho, e ele não está manchado por considerações mercenárias”.
É como se todos os outros motivos que levam pessoas a cometer fraudes envolvendo o espantoso e o sobrenatural – fama, admiração, reconhecimento público, atenção, presentes, doações, ganhos financeiros indiretos, acesso a autoridades, mera diversão – não existissem.
Probabilidades relativas
Dessa confusão entre honradez e qualidade de evidência emerge o segundo erro: a avaliação torta das probabilidades. Na hora de decidir o que é mais provável – uma criança pregar peças nos adultos, ou as leis da física e da biologia estarem erradas? A física e a biologia é que comeram bola, claro. Ou, como Sir Arthur argumenta:
“Dando como certa a honestidade do pai, que ninguém pôs em questão, Elsie [uma das fotógrafas de fadas] só poderia ter feito isso [produzido as fotos] com imagens recortadas, que devem ter sido de beleza extraordinária, de muitos diferentes modelos, feitos e mantidos sem o conhecimento dos pais, e capazes de dar a impressão de movimento quando examinados cuidadosamente por um especialista. Certamente é muito difícil!”
Recortes de papel foi, exatamente, o truque usado pelas meninas para criar suas fadas. O livro infantil do qual as figuras foram copiadas já é conhecido – “Princess Mary's Gift Book”, de 1915, identificado por investigadores nos anos 1970. O que Conan Doyle argumenta é que as meninas terem feito recortes de fadas (a “impressão de movimento” é o balançar ao vento do papel fino recortado), e escondido esses recortes dos pais, é mais improvável do que as fadas serem de verdade.
Confrontado com fotos de fadas produzidas por meio da manipulação de recortes, muito semelhantes às de Cottingley, o criador de Sherlock Holmes bufou:
“A falácia desse raciocínio reside no fato de que essas imitações foram feitas por profissionais gabaritados, enquanto as originais, por crianças destreinadas. É a repetição do velho argumento podre que engana o mundo há tanto tempo, de que porque um mágico, sob suas próprias condições, consegue imitar certos efeitos, esses efeitos em si nunca existiram”.
Aqui há uma distorção grave. Quando mágicos recriam efeitos mediúnicos (este é o contexto geral da queixa de Conan Doyle), eles não estão tentando provar que a mediunidade não existe, mas que esses efeitos podem ser produzidos por meio de truques.
O que deixa o público com um julgamento de probabilidade a fazer: será que o efeito “real” também não é um truque (criado da mesma forma que pelo mágico, ou de alguma outra maneira)? Ou é, de fato, uma manifestação do outro mundo? O que parece mais provável?
O que o truque demonstra, enfim, é que a hipótese sobrenatural é desnecessária para explicar o efeito observado.
Hipóteses demais
Julgamentos de probabilidade são influenciados por nossas crenças de fundo e hipóteses acessórias. Para alguém familiarizado com os fenômenos do magnetismo, por exemplo, não é improvável que uma moeda pule para fora de um copo, quando um ímã paira sobre ela. Para uma criança que nunca viu um magneto em ação, a ideia pode soar mágica, impossível.
Sem hipóteses acessórias para nos ajudar, teríamos de, a cada minuto, repetir o exercício cético de René Descartes – deduzir, a partir de primeiros princípios, nossa própria existência e a realidade do mundo. Essas hipóteses contêm o que costuma ser chamado de senso-comum e têm alguma sobreposição com o conhecimento científico, mas não se confundem com ele: resultados científicos contraintuitivos são exatamente os que desmentem algumas hipóteses mais comuns.
O problema é que a expansão do cabedal de hipóteses acessórias para além do senso-comum, sem que a devida atenção seja dada à ciência, gera monstruosidades. Por exemplo, no trecho abaixo, Conan Doyle descreve um momento de ceticismo inicial frente às fotos de fadas:
“Senti que mais alguma coisa seria necessária antes que pudesse sentir convicção pessoal e garantir para mim mesmo que não se tratavam de formas de pensamento conjuradas pela imaginação e pelas expectativas das videntes”.
“Formas de pensamento” (thought-forms) são imagens e estruturas físicas diáfanas que corporificam emoções e pensamentos. Não existem na realidade, mas fazem parte da mitologia dos teosofistas. Sir Arthur estava deixando claro que, em seu universo mental, a hipótese acessória da existência de formas de pensamento era mais forte do que a de que crianças inglesas de boa família poderiam mentir.
Quando críticos comentavam que as fadas nas fotos pareciam “achatadas”, brilhavam demais e não pareciam projetar sombras corretamente – todos indícios claros de que se tratavam de recortes de papel –, a resposta de Conan Doyle era citar as propriedades do “ectoplasma”, a fantástica substância de que seriam feitas as manifestações físicas de entidades “energéticas” e espirituais.
Lendo a segurança e firmeza com que Sir Arthur escreve sobre o assunto, fica a impressão de que a ciência tem as propriedades do ectoplasma testadas, reconhecidas e catalogadas de modo tão claro e completo quanto as do cobre ou da água. A verdade, porém, é que ectoplasma não existe.
Ignorância e arrogância
A última manobra é uma combinação “um-dois”, o equivalente retórico do truque manjado dos boxeadores de lançar um primeiro golpe mais fraco, para distrair o adversário e fazê-lo baixar a guarda, emendando em seguida um murro de respeito, para derrubar.
O primeiro movimento é o apelo à ignorância: ninguém sabe tudo, há realidades que a ciência ainda não desvendou. Ninguém pode dizer com certeza que não existem formas de vida invisíveis para nossos olhos.
Tudo isso é verdade, mas repare que “ninguém pode dizer que não existem” não é a mesma coisa de “é razoável supor que existem”, e nem de que “existem sim, e são garotas com corte de cabelo parisiense com asas de borboleta e homens barbudos de gorro vermelho”. O apelo à ignorância começa pedindo nossa boa vontade – e quem não gosta de demonstrar boa vontade? – para considerar uma hipótese, e em seguida tenta substituir consideração por aceitação. É o sujeito que toca a campainha para pedir um copo de água, mas espera terminar na poltrona da sala, com o controle da TV.
O golpe final é a acusação de arrogância: tendo admitido que, sim, talvez haja mais coisas entre o céu e a Terra do que supõe a nossa vã filosofia, somos “arrogantes” se não aceitarmos que, entre essas coisas, estão as fadas.
Como Conan Doyle escreve: “descartar a evidência oferecida por essas pessoas só porque ela não corresponde à nossa experiência é um gesto de arrogância mental que nenhum sábio cometeria”.
Há muito a tirar dessa frase: supor que as testemunhas estão erradas não é “descartar” a evidência. Fadas não são inverossímeis porque não correspondem à experiência provinciana de uma ou duas pessoas, mas porque não correspondem ao que sabemos a respeito de como o mundo funciona. E assim por diante.
Não é difícil ver como a mesma retórica das fadas, com sua confusão entre honradez da testemunha e qualidade da evidência, sua interpretação torta do balanço das probabilidades, sua aceitação de hipóteses pouco embasadas e o truque de transformar ignorância em certeza, segue sendo mobilizada, de novo e de novo, em torno de assuntos que vão de discos voadores a tratamentos mágicos de saúde.
Mesmo de forma involuntária, “The Coming of the Fairies” é um fantástico livro-texto que, cem anos depois de sua publicação original, segue trazendo lições que não deveríamos mais nos dar ao luxo de ignorar.
Carlos Orsi é jornalista, editor-chefe da Revista Questão de Ciência, autor de "O Livro dos Milagres" (Editora da Unesp), "O Livro da Astrologia" (KDP) e coautor de "Ciência no Cotidiano" (Editora Contexto), ganhador do Prêmio Jabuti, e "Contra a Realidade" (Papirus 7 Mares)