Ano que vem, a máquina radioativa de clonar dinheiro faz um século. Uma criação do “conde” Victor Lustig (1890-1947), a máquina, se alimentada por uma nota legítima de qualquer denominação, um retângulo de papel em branco e uma combinação secreta de agentes químicos, produz, após um perídio de 12 a 16 horas, uma cópia exata da nota original.
Não se sabe exatamente quando Lustig teve a ideia – o golpe da “máquina de fazer dinheiro” existe desde tempos imemoriais –, mas uma das primeiras vendas documentadas de um de seus modelos, que segundo ele continha o elemento químico rádio, ocorreu no final de 1922. O negócio foi fechado pela soma de US$ 43 mil (mais de US$ 700 mil, hoje).
A máquina era na verdade uma caixa contendo pesos de chumbo e um pequeno estoque de notas reais de US$ 100, que desempenhavam o papel de “clone” da nota inserida no mecanismo para ser “duplicada”. O intervalo de 12 a 16 horas para a duplicação completa garantia ao golpista tempo mais do que suficiente para pôr vários quilômetros e divisas estaduais entre si mesmo e a vítima.
Vaidade e ganância
É fácil imaginar que os compradores da máquina de Lustig eram todos trouxas sem noção – mas também é errado. Profissionais do engodo, como Victor Lustig, trabalham manipulando a vaidade e a ganância de seus alvos, e o fazem misturando diferentes doses de verdade e algumas mentiras que soam plausíveis aos ouvidos do público-alvo escolhido.
(Este é um ponto importante: plausibilidade é contextual. Pessoas diferentes considerarão certas lorotas mais ou menos “verdadeiras” de acordo com seu histórico pessoal, seu sistema político favorito, sua fé religiosa, seu nível particular de compreensão dos fatos científicos...)
Para empurrar a copiadora de dinheiro, além de incluir o ingrediente de ciência “mágica” – sob forma da menção ao rádio, elemento químico descoberto apenas em 1910, doze anos antes da criação da máquina, e cujas propriedades alimentavam todo tipo de especulação –, Lustig contava a ainda a história de um gênio esquecido, Emil DuBray, encarregado pelo kaiser da Alemanha, em 1914, da missão de inventar uma forma de duplicar notas de dinheiro francês e britânico.
DuBray teria terminado a invenção tarde demais para ajudar os alemães a ganhar a 1ª Guerra Mundial e, fugindo do avanço dos aliados, acabara indo buscar refúgio na mansão dos condes de Lustig na Europa Oriental. E lá morreu, deixando papéis que descreviam o funcionamento da máquina, papéis descobertos por Victor.
Esse melodrama todo, ajudado pela lábia do “conde”, engabelou figuras acostumadas elas mesmas a enganar trouxas, como Billie Mae Scheible, que viria a se tornar uma das maiores cafetinas de Nova York (o FBI certa vez confiscou e lacrou seu livro de clientes) e Q.R. Miller, xerife corrupto da cidade texana de Eagle Pass, que desfalcou o município para comprar uma máquina Lustig na esperança de criar dinheiro suficiente para cobrir o rombo deixado por seus desfalques anteriores.
Exceto pelos adereços, é difícil ver muita diferença entre a máquina de Lustig e a maioria dos esquemas atuais de autoajuda que prometem, em troca de um “pequeno” investimento inicial, o segredo da fortuna infinita.
A única divergência maior está no fato de que, hoje em dia, a máquina de multiplicar dinheiro não é um objeto, mas um complexo de ideias, um construto da mente – algo com certeza mais seguro para o charlatão, que não deixa evidência concreta do intento de fraudar (sob a forma de uma caixa de madeira cheia de chumbada) nas mãos da vítima. Que, no entanto, pouco consolo tira do fato.
Torre Eiffel
Victor Lustig faz jus a várias entradas nas enciclopédias do crime: além de ficar milionário com o golpe da copiadora de dinheiro, também organizou um esquema de falsificação de dólares que, com a ajuda do talentoso artista gráfico William Watts, pôs em circulação mais de US$ 2 milhões em notas falsas de altíssima qualidade, extremamente difíceis de distinguir das verdadeiras.
Também foi o primeiro prisioneiro a escapar do Centro de Detenção Federal do FBI no sul de Manhattan, que na verdade não ficava muito longe de onde moro; diz uma biografia que a cela de Lustig tinha vista para o Rio Hudson e New Jersey além, exatamente como meu apartamento. Há ainda boatos de que teria aplicado um pequeno golpe em Al Capone – de menos de US$ 5 mil – só pela farra. Teria sido assim: Lustig pediu a Capone US$ 50 mil para investir numa nova fraude.
Depois de um tempo – semanas ou meses –, teria devolvido o dinheiro intacto ao gângster, dizendo que o investimento havia falhado, mas que fazia questão de honrar o compromisso. Capone, impressionado, teria deixado Lustig ficar com uma fração do capital (10% ou menos), para poupá-lo de parte do “prejuízo pessoal” em que teria incorrido.
Mas sua fama definitiva foi conquistada pela venda da Torre Eiffel a um empresário francês de ferro-velho, em 1925.
Esse foi um golpe antológico por vários motivos – a ousadia da concepção, o uso de fatos reais para construir uma narrativa convincente, a manipulação das expectativas da vítima e, por último mas não menos importante, o uso do medo do ridículo para evitar que a vítima buscasse a polícia.
Construída para a Exposição Universal de Paris de 1889, em 1925 a Torre Eiffel havia se tornado uma presença polêmica na capital francesa: os custos de manutenção eram altos, os turistas não pareciam mais tão interessados e muitos amantes da paisagem parisiense achavam que destoava dos demais monumentos da cidade. Havia um debate público sobre o que fazer com ela.
Como escreve o especialista em fraudes R. Paul Wilson, esse cenário permitiu a Lustig “construir uma mentira poderosa com base em fatos verificáveis”.
Com a ajuda de um cúmplice, ele alugou uma suíte em um luxuoso hotel de Paris e, usando papel timbrado do hotel e também versões falsificadas do papel de carta do governo francês, convidou seis empresários do setor de ferro-velho para uma reunião secreta.
Na reunião, apresentou-se como funcionário público e disse que o governo já havia decidido desmantelar a torre e vender seu material como sucata. Para evitar polêmicas desnecessárias, o destino da obra só seria anunciado depois que o negócio estivesse concluído. Os seis empresários foram convidados a submeter lances por escrito, mas Lustig já havia escolhido de antemão seu “ganhador”, um empresário cujo verdadeiro nome provavelmente perdeu-se na história, mas que os biógrafos do grande estelionatário chamam de “Andre Poisson”.
Como escreve o jornalista britânico Jeff Maysh em sua biografia de Lustig, “Handsome Devil”, Poisson foi escolhido por ser “grande, mas não muito grande. Ele ainda não se move nos círculos mais altos da sociedade, mas gostaria de estar lá”. Em outras palavras, Poisson era um novo-rico cheio de ambição e capital, ansioso para “fazer parte” da alta roda.
A sós com Poisson, Lustig informou-o de sua vitória e lhe pediu um suborno. Ainda de acordo com muitas biografias do grande vigarista, foi aí que o empresário “teve certeza” de que o negócio era legítimo e decidiu fazer os pagamentos – da torre e da propina. Mal o dinheiro havia sido depositado, Lustig correu de volta para o hotel e fugiu com o cúmplice para a Áustria. De acordo com a maioria de seus biógrafos, ele aplicou o mesmo golpe pelo menos uma vez mais, antes de retornar aos Estados Unidos.
Alcatraz
Lustig fugiu da prisão federal em Nova York no início de setembro de 1935, mas no fim do mês já havia sido recapturado. Suas atividades tinham chamado a atenção de duas agências policiais poderosas e eficientes, o Serviço Secreto (que combate falsificação de dinheiro) e o FBI.
Condenado, foi mandado para a Ilha de Alcatraz, em San Francisco, onde ficou até ser transferido para um hospital, para tratamento médico de emergência, em 1946. Morreu em 1947, mas sua única parente viva, a filha, não divulgou a informação. Obituários só foram publicados dois anos depois.
Assim como outro grande golpista dos anos 1920, Charles Ponzi, criador da primeira grande pirâmide financeira, Lustig teve um fim patético e solitário. E assim como Ponzi, sua história ensina algo sobre a natureza humana – suas fragilidades, e os meios pelos quais essas fragilidades são exploradas.
Atribui-se a Lustig uma relação dos Dez Mandamentos do Vigarista. São eles:
I. Ouça com paciência
II. Nunca pareça entediado
III. Espere que a vítima expresse uma opinião sobre política, e concorde
IV. Espere que a vítima expresse uma opinião sobre religião, e concorde
V. Lance insinuações sexuais, mas pare se a vítima não embarcar
VI. Nunca fale de doença, a menos que a vítima pareça especialmente interessada
VII. Nunca faça perguntas pessoais; espere a vítima se abrir espontaneamente
VIII. Nunca se gabe, sua importância deve parecer óbvia
IX. Nunca esteja desarrumado
X. Nunca se embebede.
Exceto pela parte da gabolice – a única falsidade de que o vigarista contemporâneo mostra-se incapaz é a falsa modéstia – todos os “mandamentos” ainda parecem em vigor. E resumem algumas necessidades humanas básicas: queremos alguém que nos ouça, que nos ache interessantes e que concorde com a gente em temas polêmicos. Quando um desses aparece, baixamos a guarda – e compramos a Torre Eiffel.
E este foi o último Apocalipse Now do ano. Se Cthulhu e o Grande Pássaro da Galáxia permitirem, voltamos em 23 de janeiro.
Carlos Orsi é jornalista, editor-chefe da Revista Questão de Ciência, autor de "O Livro dos Milagres" (Editora da Unesp), "O Livro da Astrologia" (KDP) e coautor de "Ciência no Cotidiano" (Editora Contexto), ganhador do Prêmio Jabuti, e "Contra a Realidade" (Papirus 7 Mares)