Vieses piramidais

Apocalipse Now
12 set 2021
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pirâmide

 

Semana passada, cometi, ao postar um comentário rápido numa rede social, um erro instrutivo de interpretação de probabilidade — instrutivo não só por me lembrar de que comentários rápidos em redes sociais, onde o teclado é mais rápido do que o cérebro, são perigosos e deveriam ser evitados, mas também porque o tipo de erro em si é bastante comum e aparece em vários contextos, levando a conclusões erradas sobre questões, muitas vezes, complexas e importantes.

E que erro foi esse? No grande catálogo de deslizes do raciocínio, costuma ser chamado de “falácia do promotor de justiça”, porque, de acordo com a lenda, é muito usado nos tribunais para fazer com que a evidência contra o réu pareça mais forte do que de fato é (advogados de defesa valem-se dela, também, para gerar o efeito oposto); tecnicamente, pode ser chamado de inversão da probabilidade condicional. Isso tudo pode soar meio complicado, mas não é. Vamos ao exemplo concreto do tropeço.

Ao comentar o dado, publicado em O Estado de S.Paulo, de que 70% das vítimas de esquemas de pirâmide financeira no Brasil têm curso superior completo ou pós-graduação, escrevi que isso seria indício de que as universidades brasileiras vêm falhando em ensinar pensamento crítico a seus alunos. Logo em seguida, no entanto, um amigo chamou a atenção para a possibilidade de eu estar olhando para o problema ao contrário — pela extremidade errada do telescópio, por assim dizer.

 

Viés de seleção

Na verdade, para poder usar a demografia das pirâmides financeiras para inferir algo sobre a educação superior no Brasil, o que interessa não é a proporção de vítimas de pirâmides que são universitários, mas o contrário, a proporção de universitários que são vítimas de pirâmides financeiras. O fato de 70% das pessoas que caem no golpe da pirâmide terem curso superior significará muito pouco em termos da (falta de) capacidade crítica dessa população se apenas, digamos, 0,00000001% dos graduados e pós-graduados convidados a integrar esse tipo de esquema morderem a isca.

Essa é a estrutura básica da falácia do promotor: confundir a probabilidade de as impressões digitais do réu estarem na cena do crime, dado que ele é culpado (que será sempre alta) com a de ele ser culpado, dado que suas impressões digitais estavam na cena do crime (que pode ser baixíssima, se a cena for a casa do réu, ou seu local de trabalho, por exemplo).

Mas, então, o que explica a alta proporção de universitários entre as vítimas de pirâmides? Um palpite que me parece muito bom (e que foi sugerido pelo mesmo amigo que me alertou para a falácia que eu estava cometendo) aponta para viés de seleção: basicamente, pirâmides “selecionam” pessoas que têm dinheiro disponível para investir (ou, no caso, perder), e o Brasil é um dos países onde a associação entre renda e anos de estudo é uma das mais fortes em todo o mundo. Assim, o que acontece é que a maioria das pessoas que entram numa pirâmide tem algum dinheiro guardado, e calha de acontecer que a maioria das pessoas que tem algum dinheiro guardado fez faculdade, ou faculdade e pós.

Agora, e sobre pirâmides financeiras — o que são, e por que um senso crítico desenvolvido seria proteção contra elas?

 

Golpe piramidal

Um esquema de pirâmide “puro” envolve um iniciador, ou “piloto”, ao qual os membros da primeira camada da pirâmide concordam em pagar uma taxa de entrada, ou “passagem”. Em troca dessa taxa, os membros da primeira camada, adquirem, cada um, o privilégio — se é que dá para usar essa palavra — de recrutar novos “passageiros”, cobrando a mesma taxa de entrada, mas repassando uma comissão sobre cada “passagem” vendida ao piloto original. Essa segunda rodada de recrutas forma a segunda camada da pirâmide, e cada integrante repete o procedimento, criando uma terceira camada e repassando comissões para os níveis superiores.

O processo é insustentável porque, cedo ou tarde, acabam-se os novos recrutas: não há pessoas interessadas em número suficiente para compor a enésima camada da pirâmide, e o esquema entra em colapso. Enquanto o piloto original e os integrantes das primeiras camadas podem muito bem ter auferido lucros exponenciais, graças à venda de passagens e ao fluxo (crescente e sempre ascendente) de comissões, os integrantes das camadas inferiores ficam a ver navios.

Pessoalmente, tenho dificuldade em enxergar “vítimas” nesse tipo de esquema. Do meu ponto de vista, são todos golpistas ou, no mínimo, jogadores de cassino, torcendo para que o colapso não aconteça “bem na minha vez” e para que o mico inevitável estoure nas mãos do candidato a estelionatário que vier depois.

piramide

 

Há, claro, formas de disfarçar pirâmides para torná-las menos explícitas e, assim, atrair incautos talvez bem-intencionados. A mais comum são as operações de marketing multinível, em que os ganhos principais vêm não da venda de mercadorias, e sim do fluxo de comissões. Se recrutar novos revendedores dá mais dinheiro do que revender, há algo muito errado aí.

Esquemas multinível podem ser especialmente perversos porque, como geram muitos núcleos locais, distantes, até fisicamente, do “piloto” original — alguns são firmas multinacionais, com filiais por todo o planeta — o colapso, quando vem, nunca é generalizado: alguns ramos estouram, mas ao mesmo tempo outros estão apenas começando. Isso faz com que muitos participantes imaginem que o negócio fracassou não por ser insustentável estruturalmente, mas por falta de “talento” ou “comprometimento”. 

E há os esquemas de Ponzi.

 

O mito

Carlo Ponzi (1882-1949), também conhecido como Charles Ponzi, Charles Bianchi e outros pseudônimos, foi o golpista italiano que deu nome a um tipo de esquema que, embora funcione, em essência, como uma pirâmide, é muito menos transparente do que a pirâmide clássica e até, do que os negócios multinível. Ao contrário das pirâmides mais simples, onde é de conhecimento geral que os lucros no topo dependem das contribuições da base, e portando todos são cúmplices, nos Esquemas de Ponzi faz, sim, sentido falar em vítimas.

Um Esquema de Ponzi é um “fundo de investimento” que promete pagar juros exorbitantes, e que por algum tempo cumpre essa promessa, usando o capital aplicado pelos novos investidores para honrar os compromissos com os mais antigos. Mas o operador do Esquema de Ponzi não diz isso: ele cita algum tipo de ativo misterioso ou especulação financeira incrível que permitiria gerar os rendimentos assombrosos.

Ponzi não foi o inventor desse golpe: na verdade, ele aprendeu a técnica com o banqueiro Luigi Zarossi, que operava uma fraude do tipo entre imigrantes italianos no Canadá. Ponzi havia imigrado da Itália para os EUA em 1903, e chegara ao Canadá em 1907, onde obteve um emprego no banco de Zarossi. Em 1908, o patrão de Ponzi passou a mão no caixa do banco e fugiu para o México, deixando o funcionário sozinho para lidar com a polícia e os depositantes fraudados.

Ponzi teve mais algumas aventuras, incluindo dois períodos na prisão (um no Canadá, um nos EUA), e em 1920, em Boston, ele estava com seu “plano de investimento” pronto para rodar.

Ostensivamente, era espécie de corretagem de tarifas postais: na época, vigia um acordo internacional pelo qual uma carta enviada, por exemplo, da Itália para os EUA tinha a opção de incluir um cupom postal que poderia ser usado para obter os selos necessários para mandar uma resposta dos EUA para a Itália. O que Ponzi notou é que o cupom, comprado na Itália em liras (uma moeda então desvalorizada) seria trocado por selos postais americanos, com preço em dólares (uma moeda valorizada). Uma transação dessas podia render um lucro nominal de mais de 200%.

Ponzi, então, passou a vender títulos de uma companhia dedicada a importar cupons postais de países de moeda fraca e redimi-los nos EUA, em selos denominados em dólares. Zarossi havia seduzido os trabalhadores italianos do Canadá com a promessa de juros de 6% na liquidação dos títulos que dizia estar adquirindo. Ponzi prometia lucros de 50% em 45 dias, ou 100% em três meses

O problema, que deveria ter parecido óbvio para qualquer um com um mínimo de senso crítico, é que o investimento em cupons postais jamais poderia funcionar em larga escala. Talvez fosse uma forma esperta de transformar, digamos, US$ 1 em US$ 3, mas não havia cupons postais suficientes no mundo para redimir investimentos da ordem de milhares, que se dirá de milhões, de dólares. Para complicar o caso ainda mais, não era possível converter os cupons estrangeiros diretamente em dólares: Ponzi teria de trocá-los por selos americanos primeiro, e então revender esses selos, a fim de gerar receita e pagar os juros devidos.

 

O “sucesso”

Charles Ponzi abriu seu negócio em janeiro de 1920. Em julho, já estava recebendo investimentos da ordem de US$ 1 milhão ao dia, e acabou comprando o controle acionário do banco em que depositava o dinheiro de seus clientes.

Ao mesmo tempo, dúvidas sobre a honestidade e a solidez do negócio se multiplicavam; várias corridas contra a empresa de Ponzi — com multidões de investidores em pânico buscando resgatar seu capital ao mesmo tempo — aconteceram, mas Ponzi foi capaz de debelar todas, pagando religiosamente os primeiros a aparecer, e usando de muita lábia para afastar os demais.

Mas nem a melhor lábia do mundo funciona para sempre, e o esquema todo veio abaixo na segunda semana de agosto, quando Ponzi se entregou às autoridades, confessando ser incapaz de honrar os compromissos de sua firma, e foi preso. Quando a liquidação da companhia finalmente terminou, dez anos mais tarde, cerca de 20 mil investidores lesados haviam conseguido recuperar menos de 40 centavos para cada dólar aplicado no esquema.

Ponzi foi julgado várias vezes, por diferentes aspectos de seus crimes, preso, depois deportado para a Itália como um “estrangeiro indesejável”. Em 1939, numa sinecura arrumada por um amigo de Bento Mussolini, filho do ditador Benito Mussolini, veio parar no Brasil como funcionário de uma companhia aérea italiana. Em 1941 perdeu o emprego, e em 1949 morreu num hospital de caridade do Rio de Janeiro, cego e com parte do corpo paralisada por um derrame.

 

Guerra civil

Charles Ponzi, hoje em dia, é comumente lembrado como uma figura romântica, novelesca, um grande embusteiro mais simpático do que perigoso, imagem que ele mesmo se dedicou a cultivar, em entrevistas e cartas à imprensa: incluindo uma divertida correspondência enviada, diretamente da cadeia, para a revista Time, queixando-se de um perfil biográfico publicado em 1930.

Mas fraudes financeiras, sejam pirâmides explícitas, com “pilotos” e “passageiros”, operações multinível ou esquemas de Ponzi, estão longe de ser inofensivas. O colapso de uma série de fraudes do tipo Ponzi na Albânia, em 1997, quase levou o país à guerra civil. Segundo o Fundo Monetário Internacional, as dívidas contraídas pelos diferentes operadores equivaliam a quase metade do PIB do país, e os prejuízos atingiram cerca de dois terços da população. Quando as firmas que operavam os esquemas finalmente estouraram, o governo caiu e a violência nas ruas deixou cerca de 2 mil mortos.

O Brasil teve uma onda de pirâmides explícitas nos anos 1990, e um monte de esquemas de Ponzi (Fazendas Reunidas Boi Gordo, TelexFree…) desde então, e o marketing multinível consolidou-se como um dos “modelos de negócios” favoritos da classe C. É meio desengonçado fechar artigo com frase-clichê, mas enfim: se a oferta parece boa demais para ser verdade, é porque é.

 

Carlos Orsi é jornalista, editor-chefe da Revista Questão de Ciência, autor de "O Livro dos Milagres" (Editora da Unesp) e coautor de "Ciência no Cotidiano" (Editora Contexto) e "Contra a Realidade" (Papirus 7 Mares)

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