Negacionismo, suas causas e história, em novo livro

Apocalipse Now
14 ago 2021
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Em seu artigo clássico de 1983 “The Demise of the Demarcation Problem” (“A Morte do Problema da Demarcação”), o filósofo Lary Laudan usa, entre outros argumentos para defender sua tese de que separar “ciência” de “pseudociência” seria uma luta quixotesca, o de que a palavra “pseudociência” havia sido reduzida, pela aplicação exacerbada, a um reles pejorativo – uma ofensa oca, lançada contra ideias ou sistemas intelectuais de que não gostamos, um xingamento desprovido de sentido ou substância, inútil para fazer filosofia.

Há quem acuse um processo semelhante em curso com a palavra “negacionismo”, que começa a ser usada com uma liberalidade espantosa, num sentido genérico de “negar o óbvio” em situações em que a, digamos, “obviedade” que se nega está realmente longe de ser tão óbvia assim. Mas, como notaram os críticos da moção de Laudan para que se abandonasse o uso de “pseudociência”, não é porque uma palavra é mal utilizada, em certos contextos, que deixam de existir os contextos em que ela é aplicada de modo pertinente.

“Pseudociência”, é preciso notar, sofre com ambiguidades importantes. Ao mesmo tempo em que é um termo que se aplica com grande precisão a casos extremos (a Astronomia é uma ciência, a Astrologia, uma pseudociência), também encontra uma ampla zona cinzenta: nunca tente mediar um debate entre físicos defensores e detratores da Teoria das Cordas, por exemplo.

Já negacionismo, por sua vez, denomina a rejeição, explícita e sem base razoável, de fatos concretos e de consensos científicos bem estabelecidos. A palavra começou a ser usada na negação do Holocausto conduzido por nazistas durante a Segunda Guerra Mundial, um fato histórico sobejamente bem documentado.

Mas a atitude negacionista não se restringe a esse episódio único da história: uma vez de posse do conceito, podemos projetá-lo no passado e aplicá-lo, por exemplo, à rejeição das observações de Galileu pela Igreja Católica ou, no presente, à recusa de se aceitar as evidências do aquecimento global.

Esse é o exercício a que Natalia Pasternak e eu nos propomos no livro “Contra a Realidade”, que deve chegar às livrarias ao longo desta semana que se inicia. É um livro de história e de ciência – começa na Pérsia de Xerxes e chega ao governo Bolsonaro. O que segue abaixo é baseado no material que pesquisamos para escrever a obra.

 

Consequências

O negacionismo, na maioria das vezes, tem menos a ver com o fato ou consenso científico específico que é negado e liga-se mais fortemente às consequências, reais ou presumidas, desse fato/consenso. Se a pessoas não tivessem problemas em lidar com as consequências do real, não haveria motivos para brigar com a realidade, tal como ela é. A lista de exemplos é enorme. Uma pequena amostra:

Se o aquecimento global é real, então precisamos reduzir o consumo de combustíveis fósseis. Se fumar causa câncer, então as pessoas deveriam parar de fumar. Se transgênicos são seguros para o consumo e tão nutritivos quanto as variedades não modificadas, então não há motivo relacionando à saúde humana para preferir alimentos orgânicos. Se a Terra gira em torno do Sol (e/ou se o ser humano é produto da evolução por seleção natural), então a Bíblia está errada.

Os negacionismos surgem porque grupos poderosos ou comunidades com forte senso de identidade – étnica, religiosa, política, ideológica – veem-se ameaçados por o que quer que venha depois do “então”. Esses são os grandes negacionistas históricos, incluindo a Igreja Católica (que só derrubou as últimas restrições ao modelo heliocêntrico do Sistema Solar no século 19, quase duzentos anos após o julgamento de Galileu, e só reconheceu formalmente que estava errada sobre o caso no século passado!), o movimento criacionista, a indústria do cigarro e a do petróleo.

Como os exemplos anteriores sugerem, o incômodo laço “se... então” pode ser tanto ideológico quanto prático. Um fato ou consenso científico pode desagradar porque supostamente implica uma crença (“a Bíblia está errada”) ou um gesto, uma atitude (parar de fumar, gastar menos gasolina).

A indústria do cigarro literalmente “escreveu o livro” sobre a negação e a relativização desonesta de riscos reais. Entre os documentos internos dessas empresas, divulgados em meio a ações judiciais movidas nos Estados Unidos, destacam-se o memorando de 1969 que contém a famosa frase “dúvida é nosso produto, e o meio de estabelecer uma controvérsia” – delineado a contestação da ciência como estratégia – e um guia chamado, talvez ironicamente, Bad Science – A Resource Book (“Ciência Ruim: Um Livro de Fontes”), uma coletânea de frases, artigos e argumentos que podem servir de modelo para tentativas de desacreditar consensos científicos. Essa obra foi compilada em 1993.

O livro está recheado de frases feitas que ressurgem de tempos em tempos, como “a ciência frequentemente é manipulada para atender a objetivos políticos” ou “este relatório, mais uma vez, permite que metas políticas guiem a política científica”.

 

Dúvida

Uma vez instilada a dúvida e estabelecida a percepção pública de que há uma  controvérsia – não importa se os especialistas no assunto realmente discordam entre si, nem se essa discordância, caso exista, é relevante, ou seu escopo – a voz negacionista ganha legitimidade midiática e pode ser amplificada por jornalistas que, ao pé da letra, estão apenas “fazendo seu trabalho”.

Um caso histórico concreto é o do fumo passivo. A hipótese de que o fumo passivo ou, para usar o termo técnico, a fumaça ambiental de tabaco (FAT), poderia causar danos à saúde de não-fumantes sempre teve plausibilidade biológica, mas era especialmente difícil de testar: como seria possível medir o grau de exposição de um não fumante ao tabaco, para depois comparar os muito expostos aos pouco expostos? Durante décadas, afinal, a fumaça de tabaco era uma constante em praticamente todos os ambientes, de ônibus a restaurantes e locais de trabalho.

Isso mudou em 1981, quando a revista médica British Medical Journal (BMJ) publicou um artigo de autoria do pesquisador japonês Takeshi Hyraiama (1923-1995) mostrando que mulheres não-fumantes, casadas com homens fumantes, corriam um risco elevado – significativamente maior do que o de mulheres casadas com não-fumantes – de contrair câncer de pulmão. Hyraiama determinou ainda que era possível estabelecer uma relação de dose-resposta: quanto maior o consumo diário de cigarros pelo marido, maior a chance de a mulher desenvolver câncer de pulmão.

Hyraiama tinha sido meticuloso: o estudo incluiu dados de mais de 90 mil mulheres não-fumantes, casadas com homens fumantes ou não-fumantes, em 29 diferentes distritos do Japão. O acompanhamento havia durado 14 anos, de 1966 a 1979. Ele também controlou para outros fatores, como o consumo de álcool pelo marido, e viu que nenhum deles afetava o risco de câncer de pulmão nas esposas não-fumantes.

A indústria reagiu com um ataque à reputação de Hyraiama. Um importante epidemiologista, Nathan Mantel (1919-2002), foi contratado para criticar o trabalho japonês, e as críticas de Mantel foram disseminadas na imprensa. A repercussão das críticas de Mantel em jornais e revistas foi então usada na formulação de um anúncio publicado nos maiores jornais e revistas. A roda da falsa controvérsia girava e girava.

Documentos internos da indústria, porém, reconhecem que Hyraiama provavelmente estava certo, e que as críticas a seu trabalho deram indevidas. Memorando enviado a um vice-presidente da B&W, seis meses após a publicação original no BMJ, afirmava que cientistas e consultores contratados pela indústria para avaliar o estudo japonês “assumiram a posição de que Hyraiama está certo e Mantel, errado” e “acreditam que Hyraiama é um bom cientista e que sua publicação sobre esposas não-fumantes é correta”.

 

Fachada

Com o avanço, ao longo da década de 80, de leis e regulamentações para proteger os não-fumantes dos perigos da FAT, a indústria passou a financiar – muitas vezes de modo sigiloso, quando não confidencial – indivíduos e grupos dispostos a promover a ideia de que a ciência havia sido pervertida, sequestrada por fanáticos esquerdistas dispostos a tudo, inclusive produzir “ciência lixo” (“junk science”, expressão popularizada por Steve Milloy, um jornalista financiado pela indústria do tabaco) para ampliar o papel do Estado e, assim, privar os cidadãos do Ocidente de suas sagradas liberdades individuais.

Uma ONG, The Advancement for Sound Science Coalition (Coalizão pelo Avanço da Boa Ciência), foi criada por uma empresa de relações públicas a serviço da fabricante de cigarros Philip Morris para criticar trabalhos científicos apontando os perigos do fumo passivo. A estratégia é chamada em inglês de “astroturfing”, em referência ao gramado artificial usado em quadras esportivas – num contraste irônico com outra expressão da língua inglesa, “grassroots” (literalmente, “raízes de capim”), que denota organizações surgidas da agitação popular, efetivamente “de baixo para cima”.

O truque da ação por “astroturfing” e o mote do “Estado babá repressor” seriam reutilizados em campanhas posteriores.

A mesma estratégia é vista na contestação do aquecimento global antropogênico, e o argumento da “tutela estatal” ressurge nas controvérsias sobre vacinação e uso de máscaras. Talvez jamais saibamos quanto de “astroturfing” esteve, ou ainda está, envolvido nos vários negacionismos que cercam a pandemia atual, especialmente na defesa fanática dos inúmeros “tratamentos precoces” para COVID-19. A recente detecção de fraude num importante estudo que indicava efetividade da ivermectina certamente abre espaço para especulação.

O alvo do negacionismo, enfim, não é “a ciência” como um todo, nem mesmo as instituições e autoridades que, em nossa sociedade, falam em nome da ciência – é só ver como os negacionsitas enchem a boca para citar os “fatores H” de seus cientistas aliados. O alvo são consensos científicos específicos, e quase nunca pelo que dizem, mas pela implicação daquilo que dizem – seja para o conforto espiritual, a visão de mundo ou os interesses políticos e econômicos dos negacionistas.

Carlos Orsi é jornalista, editor-chefe da Revista Questão de Ciência, autor de "O Livro dos Milagres" (Editora da Unesp) e coautor de "Ciência no Cotidiano" (Editora Contexto)

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