A história do caso de amor entre política e pseudociência é antiga e certamente não cabe no espaço de um único artigo; mas, nestes tempos sombrios, talvez valha a pena relembrar pelo menos um episódio em que as consequências do flerte foram mais cômicas do que trágicas. Refiro-me ao projeto de lei 246 da Câmara Legislativa do estado de Indiana (EUA), proposto em 1897, oficializando uma “nova técnica para a quadratura do círculo”.
A “quadradura do círculo” é um problema da geometria clássica, o desafio de construir, usando apenas um compasso e uma régua não-graduada, um quadrado com área exatamente igual à de um círculo dado.
Durante séculos foram propostas soluções inválidas, incluindo uma publicada pelo filósofo político inglês Thomas Hobbes (1588-1679) em 1655. A proposta era tão absurda que Hobbes acabou humilhado nas mãos do matemático John Wallis (1616-1703). Humilhação, no entanto, que o filósofo jamais reconheceu: foi para o túmulo convicto de que sua prova era válida e correta. Duzentos anos mais tarde, em 1882, ficou provado, de uma vez por todas, que realizar a quadratura do círculo é impossível.
O problema da quadratura gira em torno de características especiais da constante matemática π (“pi”), que representa a razão entre o comprimento de uma circunferência e seu diâmetro: em um círculo qualquer, a circunferência, ou perímetro, é π vezes o diâmetro. Por causa disso, a história da lei 246 de Indiana é comumente citada como a de uma tentativa de fixar o valor de π por decreto. Mas a coisa é mais complicada do que isso.
Luas de Marte
A lei, na verdade, não estabelecia um valor para π, mas autorizava o estado de Indiana a usar a (suposta) técnica de “enquadramento do círculo” descoberta pelo médico Edward Johnston Goodwin (1828?-1902) “livre do custo do pagamento de royalties para tal, desde que aceita por ato oficial da legislatura”. Em outras palavras, se uma lei “aceitasse” formalmente o resultado de Goodwin, o bom doutor não cobraria por seu uso.
Isso sugere que os legisladores, na verdade, não avaliaram o mérito da proposta: o que viram foi alguém oferecendo algo de graça para o Estado, e pedindo em troca uma lei que lhes pareceu inócua. Afinal, ela não obriga, apenas reconhece e autoriza. Como escreveu o matemático Underwood Dudley num artigo sobre o caso, “a cavalo dado não se olha os dentes”.
E, para quem estivesse disposto a levá-lo a sério, Goodwin parecia, de fato, magnânimo: a um jornal local, ele garantia já ter obtido o “copyright” de sua prova em sete países europeus (Inglaterra, Alemanha, Bélgica, França, Áustria, Itália e Espanha) e que ela havia sido reconhecida pelo astrônomo Asaph Hall (1829-1907), descobridor das luas de Marte. Hall, segundo o doutor, teria usado o valor real de π, deduzido a partir da quadratura do círculo, para recalcular a circunferência da órbita da Terra.
Desnecessário dizer que a veracidade de ambas as alegações é, para dizer o mínimo, altamente questionável. Fica difícil ver sentido na ideia de se tirar o copyright de uma verdade matemática: qualquer um que a compreenda é capaz de aplicá-la e, em tese, de chegar ao mesmo resultado por outros meios. Quanto a Hall, não há registro de que um dia o astrônomo tenha usado um valor heterodoxo de π para recalcular a órbita terrestre.
Dudley pergunta-se como Goodwin poderia ter tido a cara de pau de mentir tanto. Conclui que ele talvez não acreditasse estar mentindo: é plausível que o bom doutor tenha apresentado seus resultados a Hall, por exemplo, e recebido alguma platitude – na linha de “maluco é melhor não contrariar” – em resposta, interpretando a caridade como endosso.
Mas nem toda a imprensa de Indiana foi tão condescendente. Der Tagliche Telegraph, jornal da colônia alemã do estado, publicou um editorial crítico, apontando que “apenas a grande massa dos pseudoeducados ainda se preocupa com a quadratura do círculo”.
O doutor
Mas, afinal, quem era esse médico? Uma biografia, publicada em 1975 nos Anais da Academia de Ciências de Indiana, diz que nasceu de família pobre, estudou Medicina graças à ajuda financeira de uma tia e que residiu por alguns anos, depois de formado, na cidade de New Harmony, famosa por ter nascido da tentativa (frustrada) do socialista galês Robert Owen (1771-1858) de criar uma utopia na América. É ainda possível que Goodwin tenha se ligado, por casamento, à família Owen.
O autor da biografia, o também matemático Arthur E. Hallerberg, especula que Goodwin pode ter sofrido algum tipo de perseguição social ou discriminação intelectual durante seu período em New Harmony, e que sua obsessão com problemas matemáticos impossíveis viesse da necessidade de se mostrar igual ou superior a seus detratores.
Pelas pistas deixadas em seus escritos e em entrevistas concedidas a jornalistas amigos, Edward Johnston Goodwin chegou a sua demonstração da quadratura do círculo entre 1888 e 1889, por meio de revelação divina. Num livreto publicado em 1892, intitulado “Desigualdade Universal é a Lei de Toda a Criação”, Goodwin afirma que “durante a primeira semana de março, 1888, a este autor foi ensinada, de modo sobrenatural, a verdadeira medida do círculo”.
Em 1893, o doutor tentou apresentá-la na Feira Mundial de Chicago, mas foi impedido; já em 1894, conseguiu publicar sua “prova” no American Mathematical Monthly, na época realmente o principal periódico de matemática dos Estados Unidos – mas que não fazia revisão técnica dos artigos: a prova de Goodwin aparece com a ressalva notável de que era “publicada a pedido do autor”.
Em 1897, convenceu o deputado estadual Taylor I. Record a apresentar o projeto de lei sobre a quadratura do círculo à Câmara Legislativa, que o aprovou em três rodadas de votação, no início de fevereiro. Quando o projeto chegou ao Senado estadual, alguns dias depois, a opinião pública tinha se voltado contra a proposta, principalmente graças aos esforços de matemáticos sérios, e ao ridículo imposto pela imprensa do restante do país. Como resultado, a votação foi “adiada indefinidamente”, lançando a proposta no limbo legislativo onde, ao que tudo indica, encontra-se até hoje.
Quando Goodwin morreu, aos 77 anos, o Times de New Harmony escreveu no obituário que o doutor “acreditava ter uma grande invenção, e desejava que o mundo se beneficiasse dela”.
Mas, e o valor de π?
O número π é irracional e transcendental. “Irracional” significa que é impossível expressá-lo corretamente sob a forma de uma razão entre números inteiros, como 22/7 ou 355/113. “Transcendental” significa que π também jamais aparecerá como resultado de uma equação com coeficientes racionais. A raiz quadrada de 2, por sua vez, é irracional, mas não transcendental (resolve, por exemplo, a equação x2-2=0).
A “prova” de Goodwin gera um valor racional para π, mas qual valor seria esse, exatamente, é algo aberto à discussão. O problema é que a prosa e a matemática do médico são tão convolutas, pomposas e recheadas de contradições que, dependendo do trecho que se escolhe para levar a sério, o resultado obtido é diferente. Entre os vários possíveis “πs” de Goodwin encontram-se os números 4; 3,2; 3,16; 3,56; 3,33; e outros.
Como o romance de Dom Quixote, a saga do doutor Goodwin tem graça, ao mesmo tempo em que carrega uma certa amargura. É fácil rir, estando de fora, mas também é bom perceber que o médico pseudo-matemático fez exatamente aquilo que hoje se vende como receita da felicidade: foi fiel a suas convicções, acreditou em si mesmo, estabeleceu metas ambiciosas para si, que perseguiu com seriedade e firmeza. Sua saga é quase um livro-texto de coaching aplicado.
A história também remete a um passado em que críticas de especialistas e alertas na imprensa eram capazes de matar políticas públicas desastrosas no berço, antes mesmo que fossem implementadas. Dá saudade.
Carlos Orsi é jornalista, editor-chefe da Revista Questão de Ciência e coautor do livro "Ciência no Cotidiano" (Editora Contexto)