A recente onda de gourmetização da ufologia (de que já tratei em outro artigo) teve o efeito colateral de pôr em evidência, mais uma vez, uma série de velhos argumentos surrados — clichês, na verdade — a respeito de visitantes de outros mundos. Apesar de surrados, esses argumentos muitas vezes ficam sem resposta, e sempre há quem os esteja encontrando pela primeira vez. Vale a pena, portanto, repassar um pouco da retórica ufológica e suas fragilidades.
Pressão de algumas figuras da elite política americana está forçando os serviços de inteligência do país a preparar um relatório a respeito de avistamentos de óvnis, ou UFOs, agora rebatizados de UAPs (Unidentified Aerial Phenomena, “Fenômenos Aéreos Não-Identificados”). Reportagem recente sobre o andamento do relatório — que deve ser divulgado em breve — diz que as investigações “não confirmam, mas também não permitem descartar” uma origem alienígena para os avistamentos de coisas estranhas no céu, principalmente por parte de pilotos militares.
A mudança de acrônimo serve à dupla função de afastar a bagagem imagética e conceitual atada à sigla UFO (homenzinhos verdes com aquários enfiados na cabeça sequestrando loiras seminuas, essas coisas), e também chamar atenção para o fato de que nem toda coisa estranha vista no céu é, necessariamente, um “objeto”: reflexos de luz ou, no caso de observação por meio de instrumentos eletrônicos, bugs no sistema, erros de processamento ou de interpretação de sinais de radar ou de calor também contam.
“Não descarta”
O primeiro clichê a tratar é exatamente essa linguagem de “não confirma e nem descarta”. A rigor, com exceção de impossibilidades lógico-matemáticas — uma pirâmide esférica, digamos, ou um número natural sem sucessor — nada pode ser “descartado” com absoluta certeza. Como descartar a hipótese de que somos personagens numa série da Netflix de Marte?
O que podemos fazer (e fazemos o tempo todo, quase sempre de modo automático) é produzir juízos de plausibilidade e de responsabilidade: o fato de não haver nenhuma prova de que não vou ganhar na loteria nesta semana, ou de que não há nenhum bilionário à beira da morte que tenha me declarou seu herdeiro universal, não me autoriza a encomendar um iate hoje.
Esses juízos são feitos com base em nosso conhecimento de fundo — o que sabemos sobre como o mundo é e funciona. Não é possível descartar que, uma vez tendo comprado o bilhete, eu ganhe na loteria, mas o que sei sobre a realidade me informa de que não é razoável fazer despesas extravagantes contando com isso.
Do mesmo modo, embora “não se possa descartar” a hipótese alienígena para explicar o resíduo de casos de UAPs (ou UFOs, ou óvnis) que resiste a investigações sérias (historicamente, algo entre 2% e 5%), o que sabemos sobre a vida, o Universo e tudo mais faz com que essa seja uma das hipóteses menos razoáveis.
Mas por quê?
Outro clichê surrado é o que busca escorar a razoabilidade da hipótese alienígena apontando para a imensidão da galáxia, do Universo — afinal, não seria muito arrogância, um sinal de mentalidade provinciana e limitada, achar que somos o único mundo habitado?
Este é um argumento que embute um verdadeiro contêiner de pressupostos que precisam ser explicitados. Afinal, para considerar que seja “arrogante” quem levanta a hipótese de que a vida e a inteligência são exclusivas da Terra, é preciso antes ser “arrogante” e achar que vida e inteligência são especiais em algum sentido absoluto — e não apenas para os seres vivos e inteligentes, que têm razões egoístas e narcísicas para valorizar essas coisas.
Esse sentido absoluto, por sua vez, teria de emanar de algum ponto de vista absoluto, e você já viu para onde essa conversa está indo: de repente não é mais sobre ciência e as intenções de alienígenas hipotéticos, mas sobre teologia e as intenções de divindades hipotéticas.
Imaginar que quem se considera possuidor exclusivo de um dom especial é arrogante pressupõe aceitar a premissa de que o tal dom é mesmo algo de especial. Se eu sair por aí me gabando de ter impressões digitais diferentes das de todos os outros seres humanos, a probabilidade é que não me considerem arrogante, mas apenas idiota.
Existem argumentos científicos para pressupor, na ausência de evidências diretas, que a vida — no sentido de sistemas que extraem energia do ambiente, fazem cópias imperfeitas de si mesmos e capazes de sofrer evolução darwiniana — existe de forma abundante no Universo: processos biológicos parecem não ser nada mais do que extensões naturais de processos químicos comuns. Mas bactérias e espongiários não criam tecnologia interplanetária.
Inteligência
Se quisermos que visitantes extraterrestres sejam uma hipótese plausível para dar conta do resíduo de UAPs inexplicados, precisamos de razões para pressupor que não apenas vida, mas vida inteligente, capaz de desenvolver tecnologia avançada, exista de modo razoavelmente abundante no Universo (ou, pelo menos, nesta galáxia). Que essa vida, existindo, tenha tido a vontade e a capacidade de superar os problemas da viagem interestelar. Que, tendo-os superado, tenha decidido que valeria a pena vir dar as caras aqui neste sistema solar, um entre dezenas de bilhões. E que, chegando aqui, tenha decidido adotar uma curiosa estratégia híbrida de relações públicas, nem se mantendo totalmente em segredo, nem se revelando por completo.
A Via Láctea é velha o suficiente para que civilizações mais antigas (e, potencialmente, mais avançadas) que a nossa já tenham surgido e, caso quisessem, se espalhado pelo espaço. A questão é que não só não há evidência nenhuma de que isso tenha acontecido, como a própria ideia de “outras civilizações” é problemática. Aqui na Terra, só uma espécie desenvolveu uma civilização tecnológica com acesso ao espaço — a nossa. Por que pressupor que a evolução vá seguir o mesmo caminho em outros lugares?
Aqui o argumento da “arrogância” costuma reaparecer, mas, como já vimos, ele não é baseado em ciência, consiste apenas em teologia disfarçada: pressupõe algum tipo de “intenção” ou impulso universal rumo à inteligência — na verdade, a um tipo muito específico de inteligência.
Mesmo supondo que animais que operam máquinas voadoras sejam um produto comum da evolução, quando vista em escala galáctica, ainda continuamos amarrados a um sem-número de incertezas e improbabilidades: como venceram as distâncias interestelares? Por que aqui? Por que escondidos?
Ignorância
Tudo isso, para tentar explicar um resíduo de 2% a 5% de coisas vistas no céu, ou registradas em câmeras, que resistem à investigação. Levando em conta que muitas vezes as investigações começam tarde e têm como base dados insuficientes ou inadequados, parece um passo grande demais: se é para pressupor alguma coisa, faz mais sentido imaginar que uma explicação natural ou terrestre existe, mas fomos, até agora, incapazes de encontrá-la. É certamente mais parcimonioso do que imaginar uma civilização interplanetária que também somos incapazes de encontrar.
Repetindo aqui algo que escrevi em outra oportunidade, eventos inexplicados não são, necessariamente, grandes mistérios em si. A verdade é que a maioria das coisas da vida são assim, fugidias — quando você acha uma moeda perdida numa calçada movimentada, é virtualmente impossível saber quem a deixou cair, mas é muito mais plausível que tenha vindo do bolso de um Homo sapiens do que de um disco voador.
O clichê final é, precisamente, o argumento do apelo à ignorância: se ninguém sabe o que aconteceu, então todas as hipóteses que dão conta do fenômeno são igualmente válidas. Não são. Algumas serão mais plausíveis ou menos problemáticas do que outras, e o mais importante: ignorância (própria e dos outros) não é um salvo-conduto para tratar fantasia como fato.
Carlos Orsi é jornalista, editor-chefe da Revista Questão de Ciência e coautor do livro "Ciência no Cotidiano" (Editora Contexto)