A influência do fundamentalismo cristão na cultura dos Estados Unidos, amplificada pela influência da cultura americana no resto do mundo, acaba projetando uma sombra nos hábitos mentais e na vida intelectual de parte significativa da Humanidade. Um efeito que costuma receber menos atenção do que deveria é o da análise exegética de discursos laicos — onde frases e palavras isoladas, muitas vezes pinçadas fora de contexto, são tratadas como mais significativas do que o argumento completo ou o sentido geral do que se diz. De repente, tudo são versículos.
Outro efeito pervasivo, mas que também tende a passar despercebido, é a incorporação da mitologia fundamentalista cristã sobre o fim do mundo — a escatologia, como se diz — em formas ideológicas ostensivamente seculares. Essa mitologia é composta por quatro elementos do Apocalipse bíblico que aparecem, disfarçados ou ressignificados, na narrativa de grupos políticos, análises jornalísticas e na estrutura de teorias de conspiração.
Os elementos são a Grande Tribulação, a Segunda Vinda, o Arrebatamento e o Milênio. A ordem dos fatores varia dependendo do gosto e da imaginação de cada grupo, mas A Grande Tribulação (um período de miséria e opressão) geralmente vem primeiro. A Segunda Vinda é a revolução seguida da vitória, o momento em que aqueles que “riam de nós” vão dar com a cara no chão e implorar misericórdia. É a apoteose do grande líder, ou a revelação da grande verdade. Ou ambos.
No formato das teorias da conspiração, representa a hora do “disclosure” (“divulgação”), quando o governo finalmente admite que tem discos voadores escondidos numa base secreta, ou da “tempestade”, quando os alienígenas pedófilos esquerdistas do “Estado Profundo” serão desmascarados e presos. No bolsonarismo, será o momento em que o presidente usará a “autorização” para fechar o STF e mandará os governadores de oposição para cadeia. Em termos das grandes narrativas políticas, é a vitória do Proletariado (ou do Empresário Cidadão de Bem) sobre as forças que o oprimem, sejam as do Capital ou do Estado.
O Arrebatamento representa a honra e o êxtase místico que a elite dos fiéis, cuja fé na Segunda Vinda jamais esmoreceu, merecem e, por fim, recebem. O Milênio é a utopia instaurada, ou a fase preparatória, já em si semi-utópica, que conduzirá a ela, após uma última tentativa do Mal de se restabelecer (porque “ao se completarem os mil anos, Satanás será solto de sua prisão” — Ap. 20:7).
Antecedentes
Claro, as pessoas já sonhavam com viradas mágicas da história e grandes utopias muito antes dos movimentos fundamentalistas bíblico-evangélicos surgirem nos Estados Unidos. O messianismo dos judeus, a espera dos muçulmanos xiitas pelo retorno do mádi, até a utopia comunista sem Estado de Karl Marx (1818-1883) antecedem a publicação dos “Fundamentos: Testemunho da Verdade”, série de panfletos de teologia evangélica conservadora lançada nos EUA entre 1910 e 1915 e que defende, entre outras coisas, a verdade literal dos relatos bíblicos.
Mesmo o catolicismo já havia produzido pelo menos um escatólogo notável, o monge Joaquim de Fiore (1135-1212), que via a história do mundo dividida em três fases: a do Pai (o mundo do Velho Testamento); a do Filho (do Novo Testamento, e que duraria, pelos cálculos de Fiore, até 1260); e a do Espírito Santo (a utopia em que toda a Humanidade viveria em harmonia e instituições repressoras não seriam mais necessárias).
A visão da Terceira Era do monge Joaquim (inspirada num verso do Apocalipse, 14:6, “e vi outro anjo, que voava alto no céu, anunciando aos habitantes da terra, a toda nação, tribo, língua e povo um evangelho eterno”) teria grande repercussão na história das ideias. Sua influência aparece, por exemplo, nas especulações esotéricas sobre a Era de Aquário e do movimento New Age. A esperança de uma Terceira Era onde, na síntese de Eric Hobsbawm (1917-2012), o “reino da lei” seria substituído pelo “reino da liberdade” é visível na utopia comunista clássica de abolição do Estado.
Embora a promessa de um futuro messiânico ou utópico anteceda o cristianismo, e a tentação de transpor o Apocalipse bíblico para as esferas da história e da política anteceda o cristianismo evangélico-fundamentalista, a mim parece que a forma atual dessas manifestações — principalmente em instâncias como a conspiração QAnon, a presente agitação ufológica e no bolsonarismo — tem um sabor típico das variedades especificamente norte-americanas do protestantismo conservador. Isso aparece, por exemplo, mas adesão ao roteiro de quatro fases que descrevi anteriormente. Também, Joaquim de Fiore e os comunistas viam a história progredindo numa perspectiva coletiva; já a visão atual é mais individualista e aponta mais para destruição do que progresso.
Tempos difíceis
A Grande Tribulação é citada num sermão apocalíptico de Jesus registrado no Evangelho de Mateus (24:9, 24:21 e 24:29), que fala em perseguição, falsos profetas e estrelas caindo do céu. O tema é retomado no Apocalipse propriamente dito (7:14), onde “os que vieram da tribulação” são homenageados.
Historicamente, o sermão atribuído à figura de Jesus parece ser uma “pós-dição” da desastrosa guerra dos judeus contra Roma, que culminou na destruição do Templo de Jerusalém, no ano 70 da Era Comum (embora a narrativa do Evangelho se passe por volta do ano 30, antes portanto da guerra, o texto final de Mateus é posterior ao ano 80).
Diferentes grupos cristãos têm projetado a Grande Tribulação em diferentes momentos da história, e para muitos nunca há momento tão bom quanto o presente: qualquer comunidade minoritária ou mal adaptada à cultura do entorno tende a se ver como “perseguida”, e a profecia de “nação contra nação”, “fome e terremotos” cumpre-se, em alguma parte do globo, quase que diariamente, há milênios.
Traduzida para o universo das preocupações seculares, num mundo altamente polarizado entre ideologias e lideranças políticas como o atual, e onde teorias de conspiração mobilizam multidões, a narrativa do caos que antecede a grande virada (“Aparecerá então, no céu, o Filho do Homem. Então todas as tribos na terra baterão no peito e verão o Filho do Homem vindo sobre as nuvem do céu, com grande poder e glória” — Mt. 24:30) anima todo tipo de diagnóstico e prognóstico.
O Filho do Homem pode ser a nave-mãe, o golpe de Estado ou a vitória nas eleições de 2022. Não é preciso aceitar o conteúdo específico da mitologia original que nos legou o fluxograma das quatro etapas do apocalipse para usá-lo como chave de leitura da realidade: a estrutura é como uma garrafa vazia, que pode ser preenchida com líquidos de diferentes cores, densidades e níveis de viscosidade; ou uma casa vazia, que cada um vai mobiliar como prefere.
Pré e pós
Uma divergência básica entre os que levam a sério o esquema das quatro fases do fim do mundo é a posição do Milênio em relação à Segunda Vinda. Para os pré-milenaristas, a Segunda Vinda precede o Milênio. No pós-milenarismo, o messias, o líder, a verdade só virão quando o mundo estiver preparado, e construir essa preparação e fazê-la durar é o dever dos fiéis. Nos Estados Unidos, o pós-milenarismo foi uma força que empurrava grupos protestantes para o ativismo social no século 19, já que seria preciso estabelecer “o reino de Deus na Terra” antes que Jesus pudesse voltar.
Já as crenças pré-milenaristas, como escreve o especialista em teorias da conspiração Thomas M. Konda em seu livro “Conspiracies of Conspiracies”, “levaram as pessoas a esperar a ascensão [iminente] do Anticristo e a resultante batalha apocalíptica entre o Bem e o Mal”. Na perspectiva pré-milenarista, Deus salvará o mundo não fazendo dele um lugar melhor, mas destruindo-o. Preocupações sociais são inúteis: o que importa é converter o maior número possível de fiéis para que muitos sejam salvos quando a guilhotina do Juízo Final cair.
Konda conecta essa expectativa de apocalipse iminente a uma suscetibilidade especial a teorias de conspiração, por “depender de uma visão maniqueísta do mundo”. Citando outro especialista, o historiador Richard Hofstadter (1916-1970), descreve a disposição criada: “a visão megalomaníaca de si mesmo como um dos Eleitos, totalmente bom, abominavelmente perseguido, mas com a garantia do triunfo final; a atribuição de poderes desmesurados e demoníacos ao adversário”.
É importante notar que o pré-milenarismo não se limita a aguardar, passivamente, o fim. É um apelo ao proselitismo agressivo e um estado de tensão e excitação permanente, aguardando o chamado para a batalha decisiva, que pode vir a qualquer momento e, quando vier, deverá ser atendido com prontidão e de forma drástica. Em termos seculares, é o que se vê em grupos como QAnon ou no movimento antivacinas. No bolsonarismo radical, é a espera pelo “sinal” para que os “cidadãos de bem” vão às ruas com suas armas para caçar comunistas.
Contaminação cruzada
Historiadores como James Webb (1946-1980) e Arthur Lovejoy (1873-1972), entre outros, já chamaram atenção para o fato de que certas ideias são capazes exercer uma enorme influência social, mesmo quando o número de seus aderentes — daqueles que, conscientemente, as abraçam e defendem — é pequeno ou, até, inexpressivo, em termos demográficos.
Isso porque os pressupostos e estruturas lógicas que as animam podem percolar, tornarem-se populares (em obras de ficção, na manifestação de celebridades ou por meio de conversas casuais) e prosperar mesmo quando seus conteúdos específicos seguem propriedade de uma minoria. Não é preciso, por exemplo, ser um iniciado hermético para ser influenciado pela (falsa) impressão, vaga que seja, de que algo que é parte de uma “sabedoria antiga” deve ter lá sua validade.
Ainda mais, então, quando as ideias de onde essas estruturas e pressupostos se originam são levadas a sério por parte significativa da sociedade. É um exercício projetivo que, muitas vezes, ocorre de modo inconsciente — o mapeamento de dificuldades reais num terreno mitológico pré-estabelecido e fartamente disponível.
Mas, num ambiente ideológico tão saturado quanto o atual, é importante saber distinguir o que é análise de conjuntura do que é ajuste narrativo ao mito. A vida é mais complicada do que um live-action role-playing do Fim dos Tempos.
Carlos Orsi é jornalista, editor-chefe da Revista Questão de Ciência e coautor do livro "Ciência no Cotidiano" (Editora Contexto)