O presidente Jair Bolsonaro é um homem profundamente idealista. Vidas humanas são apenas carne perecível, matéria bruta, obstáculos no caminho da obtenção de seu grande ideal do espírito, daquilo que é eterno, que o verme e a traça não roem, que o ladrão não leva, e dá para a sociedade, que é maior e vive além dos corpos adoentados e transientes.
Que a meta espiritual seja uma versão acanalhada do cristianismo mais tacanho e a social, uma distopia cinzenta, não importa: o homem tem um ideal e está disposto a dar a vida (dos outros) para atingi-lo, custe o que custar.
Comentaristas de inclinação mais conservadora têm o hábito de repetir que utopias são feitas de teorias brilhantes que levam, na prática, a desastres estrondosos. E não estão errados. A história da busca pela “sociedade ideal” percorre um espectro que vai do patético, como os falanstérios inspirados pelo visionário francês Charles Fourier (1772-1837), ao inominável dos gulags e do Holocausto.
O que parece escapar a muitos desses comentaristas é que a sensibilidade conservadora muitas vezes degenera numa utopia própria, a da “sociedade normal”.
Normalidade
O “mundo normal” é a utopia olavo-bolsonarista, uma Terra do Nunca modelada em algum filme arquetípico de Hollywood dos anos 50, talvez num mash-up inconsciente entre o cinema de Frank Capra (1897-1991) e os romances de Ayn Rand (1905-1982), um mundo idílico mas também altamente hierarquizado, onde cada um reconhece e aceita seu devido lugar, homens são homens, mulheres são mulheres, manda quem pode, obedece quem tem juízo e Deus, acima de todos, ajuda quem é puro de coração e trabalha duro.
A construção da utopia do normal pode ser tão opressiva, desumana e, até, sanguinária quanto a do Paraíso dos Trabalhadores (ou do Reich de Mil Anos), mas, como é “normal”, seu impacto dilui-se, suas atrocidades, afinal, “normalizadas” ou reduzidas a fenômenos “naturais” ou “inevitáveis”.
Casos aqui no Brasil incluem o escandaloso Hospital Colônia de Barbacena, onde pessoas que representavam ameaça ao “normal” (homossexuais, mães solteiras) eram presas e torturadas; ou o isolamento forçado de pacientes de hanseníase no estado de São Paulo no início do século passado, caçados pelo poder público e apartados, à força, de suas famílias.
Internacionalmente, pode-se falar nas lavanderias para “mulheres perdidas” da Irlanda, onde moças de conduta sexual “reprovável” ou apenas pobres eram submetidas a tortura e trabalhos forçados, e em toda a saga da segregação racial nos Estados Unidos. Exemplos multiplicam-se ad infinitum.
Pela fé ou pela ciência
A utopia do normal tem duas linhas principais de defesa: a mais antiga apela para uma certa sensibilidade mística, romântica, a ideia de que a sociedade atual representa um estado de queda em relação à organização social ideal e original, ordenada por Deus.
O fato de que esse passado do qual “decaímos” muda com o tempo ou com quem se fala (pode ser, por exemplo, Roma Imperial, ou o medievo dos cavaleiros andantes, ou a monarquia absoluta, ou a democracia liberal clássica) parece passar despercebido pelo utopista.
O que persiste, com força suficiente para aplainar todos os paradoxos, é a poderosa intuição de que o mundo já foi “bom”, e pode voltar a sê-lo, desde que cada um reconheça e aceite seu devido lugar, homens sejam homens, mulheres sejam mulheres, mande quem possa, obedeça quem tenha juízo e, por favor, deixem Deus cuidar do resto. O momento exato em que esse estado “bom” existiu — se na infância ou nas memórias do avô de alguém, ou num romance favorito de cavalaria — é, na prática, irrelevante.
A segunda linha de promoção da utopia do normal, adotada a partir do momento em que o prestígio das fantasias místico-religiosas como legitimadoras da sociedade desmoronou, é a que busca associar o “normal” à “natureza”, mais especificamente à “natureza humana”, tal como revelada pela “ciência” (e uso “ciência” entre aspas porque a maioria das alegações sobre o que haveria de cientificamente estabelecido a respeito da natureza humana são tremendamente exageradas).
Mas, enfim: o argumento é que há um estado ótimo de organização da sociedade, logicamente dedutível a partir da natureza humana, e que, mirabile dictu!, esse estado ótimo coincide com a utopia do normal.
Natureza da natureza
A ideia de que existe um teorema da sociedade ideal, que pode ser deduzido a partir de postulados e axiomas dados pela ciência natural, como o teorema de Pitágoras decorre do sistema de Euclides, já foi abraçada por praticamente todo o espectro político: socialistas utópicos, socialistas “científicos” e comunistas, nazistas e, também, capitalistas dos mais variados matizes: do darwinismo social mais caricato ao pessoal do almoço grátis inexistente. A utopia do normal é, nesse aspecto, uma recém-chegada.
Debates acalorados sobre “o que a natureza realmente diz” a respeito das possibilidades humanas e sociais tendem a degenerar em guerras de espantalhos, com um lado acusando o outro de “negar a ciência” quando, muitas vezes, o que se disputa é — descontadas premissas falsas ou pseudocientíficas que buscam passar-se pela coisa real — uma determinada interpretação ou extrapolação feita a partir da ciência. Debates sobre diferenças “naturais” entre sexos e grupos étnicos caem com muita facilidade nessa armadilha.
Para dar um exemplo relativamente neutro: a capacidade de fazer coordenação fina e precisa entre o movimento das mãos e o que está diante dos olhos provavelmente tem base hereditária, biológica, mas se a pessoa dotada dessa coordenação vai se tornar um artista plástico, um protético, um datilógrafo ou um bancário depende de inúmeros outros fatores. Dizer que a cultura em que vivemos emana da natureza humana é um truísmo. O que fica de fora é que o mesmo vale para incontáveis outras culturas, reais ou hipotéticas.
Também é interessante notar a forma rígida e pouco imaginativa com que os geômetras da sociedade “natural” tendem a interpretar as leis científicas (reais ou imaginárias) que, segundo eles, ditam os limites da sociedade: dizer que esta ou aquela meta é irrealizável por causa da “natureza humana” é uma anomalia na forma como a natureza é, em geral, tratada pela ciência. Um engenheiro não encara a lei da gravidade como garantia absoluta de que voar é impossível, mas como algo que precisa levar em consideração ao projetar aviões.
Fatos científicos até podem interditar a realização de determinados desejos ou a implementação de certos sistemas de valor, mas isso ocorre com frequência bem menor do que muitos imaginam. Na maior parte das vezes, o que a ciência faz é explicitar o preço de realizar certos objetivos – se um homem quer voar, é preciso um balão, um helicóptero, um avião. Decidir que o preço vale a pena ou não, ou se é aceitável do ponto de vista ético, vai depender de considerações extracientíficas, ainda que provavelmente informadas por mais ciência.
Mortes naturais
A utopia do normal é a distopia cinzenta do Brasil contemporâneo. É importante notar que nem todo conservador está comprometido com essa monstruosidade: o melhor conservadorismo é aquele que enxerga a sociedade como um corpo dinâmico, orgânico, que não se move em nenhuma direção em especial, mas evolui — no mesmo sentido em que espécies “evoluem” — em resposta a dinâmicas internas difusas e a pressões vindas de fora. A visão torna-se especificamente conservadora na medida em que essas evoluções são vistas com cautela, quando não com hostilidade e ceticismo.
Mas essa mistura de hostilidade e ceticismo degenera com certa facilidade numa paixão desenfreada pela utopia do normal, paixão que move o idealismo extremo de nossos líderes. É um idealismo que precisamos reconhecer: sim, eles perseguem um sonho, buscam sua pátria espiritual. Obstáculos são meros detalhes.
O caráter mais perverso da busca por uma utopia do normal é, como já foi dito, a normalização — ou naturalização — da atrocidade. Há tempos que as ciências sociais vêm restringindo o uso do conceito de “desastre natural”: a destruição de uma vila construída na encosta de um vulcão ativo não pode ser considerada “obra da natureza”, mas seus moradores, imersos na própria ilusão de “normalidade”, talvez vejam assim: foram os deuses, foram os deuses.
Para os nossos utopistas do normal, são naturais os milhares de mortes a cada dia, o suplício de Tântalo entre o vírus e a fome. Não há nada a fazer senão dar de ombros diante dos desígnios dos deuses da peste, cujo sumo-sacerdote reside no Planalto.
Carlos Orsi é jornalista, editor-chefe da Revista Questão de Ciência e coautor do livro "Ciência no Cotidiano" (Editora Contexto)